No século 21, época em que o capitalismo tem se dedicado com fervor à colonização do inconsciente -uma das tarefas da indústria cultural -, a psicanálise resgata a potência dessa instância psíquica, ao mesmo tempo fábrica de sonhos e caldeirão de pulsões, promovendo uma prática “descolonizadora” e livrando o sujeito da alienação.
Esse é um dos motivos para se ler, ainda hoje, as obras do criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), segundo a psicanalista Maria Rita Kehl. Ela é autora de um dos 14 artigos que compõem o livro Por que Freud Hoje?, organizado pelo professor do Instituto de Psicologia da USP Daniel Kupermann e lançado no dia 30 de novembro passado pela Editora Zagodoni. Com 294 páginas, o livro está organizado em duas partes. Na primeira, os artigos destacam aspectos do pensamento freudiano. Na segunda parte, os textos exploram a influência da psicanálise em diferentes áreas do conhecimento, como a neurociência, a filosofia, a pedagogia, a arte e a literatura. No final, o volume ainda traz uma longa biografia de Freud.
Em seu artigo, intitulado “Três motivos (pelo menos) para se ler Freud hoje”, Maria Rita apresenta ainda outros argumentos em favor da atualidade do pai da psicanálise. Ela cita o ensaio O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur), publicado originalmente em 1930, em que Freud afirma que “é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida”. Para a psicanalista, não há nada mais moderno do que essa afirmação. “Estamos vivos com a finalidade de proporcionar prazer ao corpo e à mente; todo o resto é contingente, é invenção humana para se viver melhor. Ou, no mínimo, ‘menos pior’.”
Por que Freud Hoje? mostra que as descobertas de Freud podem ser verificadas no cotidiano do leitor. Abordando a principal delas – o inconsciente -, a psicanalista Glaucia Leal, que assina o artigo “Freud nosso de cada dia – escolhas, deslizes e adoecimento”, destaca que as pessoas fazem escolhas sem terem pensado sobre as opções de modo consciente. “As decidirmos sobre questões cotidianas – como o que vestir, o que comprar no mercado, onde passar as férias e centenas de outras coisas, incluindo a escolha de parceiros amorosos -, conteúdos inconscientes de que sequer temos noção desempenham papel relevante”, escreve Glaucia. “Mais de um século depois de Freud apresentar a polêmica ideia de que habita em nós uma instância sobre a qual não temos controle – mas se mostra em ações, pensamentos, naquilo que esquecemos e nos processos de adoecimento -, essa proposição ainda é bastante perturbadora. Basta recordar quantas vezes nos surpreendemos com nossos próprios desejos, ideias, emoções, reações e palavras – e estranhamos esses conteúdos, quase como se não fossem nossos. Ou constatamos o quanto percepções cognitivas, visuais, auditivas ou mesmo memórias (que tendemos, aliás, a crer que sejam mais confiáveis do que realmente são) podem nos enganar.”
Outros artigos publicados em Por que Freud Hoje? são “Freud em Frankfurt: a função da psicanálise no pensamento de Theodor Adorno”, de Vladimir Safatle, “Linguagem, história e desejo – Sobre a atualidade de Freud”, de Pedro de Santi, “Discurso freudiano e contemporaneidade”, de Joel Birman, e “O quarto golpe e a virtude freudiana”, de Daniel Kupermann. O livro traz artigos também de psicanalistas, professores e pesquisadores como Renato Mezan, Pedro de Santi, Sidarta Ribeiro e Leandro de Lajonquière, entre outros.
Por que Freud Hoje?, de Daniel Kupermann (organizador), Editora Zagodoni, 294 páginas, R$ 69,00.