Livro indicado pela Fuvest, “O Cortiço” retrata o Brasil de hoje

Lançado em 1890, romance de Aluísio Azevedo relata mistura de raças, crise de valores e desigualdade social

 19/09/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 17/01/2022 às 18:42
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Os varais de roupa eram uma característica comum dos cortiços, onde costumavam morar lavadeiras e outros prestadores de serviço, expondo as questões sociorraciais – Foto: Augusto Malta/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

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No primeiro parágrafo do romance O Cortiço, o escritor Aluísio Azevedo já apresenta o protagonista aos leitores. A saga do português João Romão, em seu “delírio de enriquecer”, explora os empregados e a amante Bertoleza, furta e não mede esforços para a sua ascensão econômica e social. Em 23 capítulos, o romance lançado em 1890 conta uma história que bem se insere na sociedade brasileira contemporânea.

“João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro…”

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O professor Emerson da Cruz Inácio, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“O livro é muito atual ao opor universos distintos de uma maneira tão descritiva”, observa o professor Emerson da Cruz Inácio, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “O Cortiço é um universo vivo. O vestibulando observa questões que continuam atuais, como a da luta de classes, a luta financeira que se revela através dos explorados e do explorador. Há todo um arranjo político em torno desse espaço. João Romão é um pseudoabolicionista que ‘escraviza’ Bertoleza, sua amante, que trabalha dia e noite.”

Edição da Ateliê Editorial com apresentação e notas dos críticos literários Paulo Franchetti e Leila Guenther – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O Cortiço resgata o drama da transição do trabalho escravo para o trabalho livre. João Romão aproveita o momento, como outros capitalistas em ascensão, para submeter os trabalhadores e especialmente os ex-escravos a um outro tipo de dominação, igualmente dramática. O rapaz português que dormia em uma esteira com travesseiro composto de um saco de estopa cheio de palha tornou-se taverneiro, proprietário do cortiço e da pedreira.
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É uma reflexão irônica sobre um determinado
extrato da sociedade carioca do século 19.

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O Cortiço assume um papel significativo. Surge em um momento de mudanças significativas na produção literária do Brasil”, explica o professor Inácio. “Importante lembrar, nessa mudança, o nosso mais importante autor, que é Machado de Assis. Porém, diferente do que Machado talvez fosse propor, Aluísio Azevedo faz uma incrível e irônica reflexão sobre um determinado extrato da sociedade carioca do século 19. Ele opta por fazer um recorte mais pontual.”.

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Ilustrações de Carlos Clémen, edição de O Cortiço da Ateliê Editorial – Fotos: Reprodução

Enquanto Machado de Assis tem o seu lugar fortalecido no Realismo, Aluísio Azevedo busca uma diferença no mesmo movimento, porém com base no Naturalismo proposto pelo francês Émile Zola. Ou seja, os personagens têm as suas ações influenciadas pelo meio social e econômico onde vivem. São movidos por instintos naturais, como os sexuais e os de sobrevivência. “No Brasil, a prosa naturalista não teve muita repercussão ou, pelo menos, não causou aqui o incômodo acontecido em outros panoramas culturais, como em Portugal e na França. Há algumas obras desse período, mas O Cortiço é a que ganha mais relevo”, esclarece o professor. “O vestibulando vai poder notar as características dos personagens. Rita Baiana é o contraponto de Bertoleza, a encarnação estereotipada do imaginário sobre a mulata brasileira. Há um personagem homossexual que não é representado a partir da questão eminentemente estereotipada. Ele tem funções de mulher, lava roupa com outras lavadeiras e tem uma vida integrada ao espaço. Tem também o português Jerônimo, que trabalha na pedreira e passa a habitar em uma das casas do cortiço, com a família. Lá, ele vai deixando de ser português para ser um brasileiro estereotipado, preguiçoso, gosta de modinhas e do calor que alquebranta.”.

As diversas edições de O Cortiço, de Aluísio Azevedo – Fotos: Reprodução

A história se passa em Botafogo. “Apesar de hoje ser uma região privilegiada, na época era um grande sertão”, observa o professor. “No prédio ao lado do cortiço, com aquelas casinhas de uma única porta e única janela, há um outro universo. Ao contrário da ambiência do cortiço, está o sobrado de outro português, o comerciante Miranda. Era um espaço aburguesado, fino, e o proprietário ainda mantinha hábitos de sua terra.”
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O romance fornece inúmeras ferramentas para a
compreensão do mundo.

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Aluísio Azevedo – Foto: via José Veríssimo / História da Literatura/ Wikimedia Commons

A linguagem pode ser um desafio, que a leitura atenta é capaz de enfrentar. “O romance em termos ideológicos, políticos e sociais fornece ferramentas para a compreensão do mundo”, destaca Inácio.

O professor afirma que a lista de livros indicados pela Fuvest para o vestibular, que inclui O CortiçoVidas Secas, de Graciliano Ramos, e Mayombede Pepetela, não é uma seleção feita apenas por uma política de gosto. “É muito significativo o fluxo das obras exigidas pela Fuvest”, destaca. “É importante que o vestibulando perceba o compromisso da prosa realista da denúncia e as pequenas mazelas da sociedade. Ao mesmo tempo, também deve observar modelos de paixão, como o de Jerônimo e Rita Baiana, que são muito semelhantes ao de Iracema e Martin no romance de José de Alencar.”

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O livro O Cortiço, de Aluísio Azevedo, está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00021a.pdf

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