Livro homenageia a Professora Emérita Walnice Nogueira Galvão

Discípula de Antonio Candido, Walnice tem entre seus trabalhos estudos fundamentais sobre Guimarães Rosa e Euclides da Cunha

 31/05/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Luiz Prado

Arte: Joyce Tenório

Walnice Nogueira Galvão entre as imagens de Euclides da Cunha (esquerda) e Guimarães Rosa (direita) - Fotomontagem do Jornal da USP com imagens de domínio público, Secretaria de Cultura de Goiás e veraholera/Freepik

Palavras para Walnice, publicação organizada por Antonio Dimas e Ligia Chiappini, professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é uma homenagem às contribuições e ao legado da crítica literária Walnice Nogueira Galvão para a cultura. Professora Emérita da FFLCH, Walnice é uma “intelectual múltipla”, nas palavras de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, que assina a Apresentação da obra. O livro será lançado nesta sexta-feira, dia 2, às 17 horas, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, com a presença de Walnice e dos organizadores. A publicação é das Edições Sesc, com apoio da BBM Publicações, o braço editorial da BBM.

Com uma carreira que se estende por sete décadas, iniciada nos anos 1960, Walnice – nascida em 1937, na capital paulista – se multiplicou em leitora, pesquisadora, analista, crítica e escritora, destacando-se como intérprete da literatura brasileira, com mais de 50 livros no currículo. Palavras para Walnice representa uma homenagem em vida a essa trajetória.

Coletânea de testemunhos, lembranças e comentários da intelectualidade que conviveu e foi inspirada pela pesquisadora, o volume, que começou a ser montado em 2018, abarca ainda uma revisão de suas contribuições fundamentais sobre a obra de autores do quilate de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. Além disso, o livro conta com uma série de textos e ensaios que elaboram temas ligados à diversidade de interesses investigados pela homenageada. As referências ao crítico literário e professor da USP Antonio Candido (1918-2017), mestre de Walnice, também marcam presença na publicação.

“O livro espelha a variedade da personalidade de Walnice e é uma homenagem a uma colega querida, que teve e ainda tem uma presença intelectual muito forte na Universidade”, comenta Dimas em entrevista para o Jornal da USP. O professor explica que procurou fundir no livro o tom profissional e o lado pessoal, capaz de trazer a marca de personalidade de Walnice, sem deslizar para o laudatório. De acordo com Dimas, a intenção foi elaborar uma obra multifacetada, para ilustrar a diversidade de interesses e contribuições da pesquisadora. Por isso, os autores tiveram liberdade para compor seu ensaios. “Por trás de cada texto elaborado há uma certa percepção em relação à homenageada”, conta o organizador.

Os números da carreira intelectual da professora impressionam, conforme registra Dimas em artigo publicado em Palavras para Walnice. Além dos mais de 50 livros, Walnice acumulou em torno de 70 capítulos em obras organizadas por outros autores e cerca de 500 artigos em periódicos, acompanhados por mais de 25 anos de ensino na USP, instituição na qual se graduou em Ciências Sociais em 1961. Foi na USP também que obteve seu doutorado, em 1970, com a tese As Formas do Falso: Um Estudo sobre a Ambiguidade no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, e sua livre-docência, em 1972, com um trabalho sobre Euclides da Cunha, No Calor da Hora: a Guerra de Canudos nos Jornais.

“É uma carreira que eu conheço de perto, sempre admirando duas coisas. Primeiro, uma certa linguagem aparentemente solta e à vontade”, conta Dimas. O organizador destaca que Walnice sempre orientou seu trabalho preocupada com o leitor. “Não se trata de baratear o texto, mas de entender a crítica como sedução do leitor. Ela não tem uma linguagem crítica empolada, não escreve para pessoas da Universidade, mas para as pessoas que têm gosto pela leitura.”

O outro ponto de admiração de Dimas envolve sua multiplicidade temática. “Walnice começa como professora de Literatura e crítica literária, mas, cada vez mais, foi se firmando como uma crítica cultural.” Para o organizador, o presente volume procura dar a dimensão justa para esse trabalho que não cessa. “Fico fascinado com a versatilidade de Walnice para pular do tempo presente para o passado, de uma geografia brasileira para uma estrangeira. Tempo e espaço não são limites para ela.”

O professor Antonio Dimas - Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP

O interesse por literatura já acompanhava Walnice antes mesmo das Ciências Sociais. Seu primeiro ingresso na USP foi no curso de Línguas Neolatinas, que ficou inconcluso. E, em 1961, ano de sua formatura, Antonio Candido iniciava a disciplina de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade, com influência decisiva na trajetória da pesquisadora. Nas palavras da própria, conforme escreveu em seu Memorial para o concurso de Professor Titular: “Devido ao impacto desse curso, que era o que almejava e nunca tinha encontrado em nenhuma de suas opções, a candidata abandonou suas atividades, regressou definitivamente à literatura, entrou na carreira docente e jamais conseguiu se desvencilhar de um interesse básico por prosa”.

Os primeiro ensaios de Walnice ganharam espaço no prestigiado Suplemento Literário, do jornal O Estado de S. Paulo, nos quais se pode encontrar relações com os conteúdos das aulas do mestre Candido. Mas a própria pesquisadora faz questão de vocalizar seu cosmopolitismo bibliográfico, que além de Candido inclui a influência de outros medalhões do pensamento brasileiro, como Florestan Fernandes, Gilda de Mello e Souza, Gioconda Mussolini, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Sérgio Buarque de Holanda.

Com esses “ombros de gigantes”, Walnice forjou uma carreira nas quais tratou não apenas de literatura, mas também de cinema, artes plásticas, música, vida editorial e política, entre outros temas. Um conjunto de assuntos que encontra coerência graças ao que Dimas identifica como “militância intelectual” da homenageada, uma conjugação de atuações no ensino e na pesquisa, o interesse em novidades e uma atenção central às indagações sobre um “Brasil arruinado”, oriundo da prosa de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha.

“Em relação a Euclides da Cunha, a grande contribuição de Walnice esteve em revirar os arquivos, as bibliotecas e os jornais da época para trazer um Euclides menos convencional”, explica Dimas. “Esse trabalho junto às fontes revitalizou o autor. Ela não se limitou ao clássico Os Sertões, mas ultrapassou os limites do texto.”

Dimas vê essa mesma atitude de Walnice no trato com o autor de Grande Sertão: Veredas. “No caso de Guimarães Rosa, ela não ficou deslumbrada, como é a atitude corrente da crítica em relação a esse autor. Como disse Antonio Candido, a crítica de Walnice não decorre de uma mera convivência bibliográfica, ela vem misturada com uma convivência existencial com o autor.”

Antonio Candido, um dos grandes influenciadores de Walnice Nogueira Galvão, na década de 1970 - Foto: Arquivo IEB-USP

Mãe, amiga, colega e intelectual

Palavras para Walnice é organizado em quatro partes. Na primeira, são apresentados relatos de convivência, aprendizado e amizade com a pesquisadora, revelando suas dimensões como mulher, mãe, amiga, colega, estudiosa da cultura e intelectual cidadã. Contribuem na seção Afonso Galvão Ferreira, Flávio Aguiar e Ligia Chiappini.

“Mãe desquitada desde que comecei a falar, Walnice muito se empenhou para que eu tivesse uma relação serena e próxima com meu pai”, escreve Afonso Galvão Ferreira, diretor de Pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França, e filho da homenageada. “Crucialmente, fez malabarismos mil para prover uma educação moderna e feminista no Brasil dos anos 1960, onde Woodstock era coisa de ‘comunista’ e o AI-5, a resposta nativa às aspirações da juventude da qual ela fazia parte. Na logística, teve muita ajuda de parte de meus avós, de ambos os lados, e no conteúdo proporcionou-me inúmeros contatos afetivos e intelectuais com seus irmãos, primos, amigos, colegas e com sua imensa biblioteca pessoal, sem contar ensino e escolas progressistas como O Pequeno Príncipe e Gabriela Mistral, que ela escolheu a dedo.”

“Encontrei Walnice pela primeira vez em 1969, logo depois de ter-me transferido da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde eu cursara Letras até o terceiro ano, para a Universidade de São Paulo”, escreve Flávio Aguiar, professor aposentado de Literatura Brasileira da FFLCH. Esse primeiro encontro foi apenas uma apresentação, mas um ano e meio depois Aguiar estava novamente diante da professora, agora em busca de orientação para seu mestrado. “Procurei, primeiro, o professor Antonio Candido. Diante do meu interesse manifesto por ‘arte e sociedade’, ele me sugeriu procurar Walnice. Diante dela – já transmudada, tendo abandonado seu antigo severo coque por um cabelo à Gal Costa –, desfiei meu interesse algo abstrato por ‘literatura’, ‘América Latina’, ‘sociedade’, coisa que ela cortou me perguntando o que eu já fizera de fato.”

A segunda parte do livro focaliza as leituras e releituras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, cerne dos trabalhos literários da pesquisadora. Uma das contribuições é da antropóloga Betty Mindlin, que relembra a amizade com a homenageada, as leituras conjuntas das Mitológicas de Claude Lévi-Strauss, os aprendizados sobre mitologia ameríndia e a presença do elemento indígena na obra de Guimarães Rosa.

“Segundo sou capaz de aquilatar, pois ignoro a vasta bibliografia sobre Guimarães Rosa, quase nenhum decifrador, além de Walnice, estudou as marcas do universo indígena na obra do grande autor”, escreve Betty. “Tradições bíblicas ou gregas, que ela também inclui em vários trabalhos, aparecem, por exemplo, nos lindos livros de Adélia Bezerra de Menezes e Luiz Roncari. Sobre os nossos povos Walnice é rainha, ninguém aprofundou tanto.”

Quem também aparece na obra é a Professora Emérita da FFLCH Marilena Chauí. Em sua contribuição, Marilena lembra a ideia de livro interpelante, de Merleau-Ponty, no qual a escrita “priva a linguagem instituída de centro e de equilíbrio, reordena os signos e o sentido e ensina tanto ao escritor como ao leitor o que sem ela não poderiam dizer nem pensar”. Para a professora, é justamente Walnice quem indica o caminho para a leitura das “obras interpelantes” Grande Sertão: Veredas e Os Sertões.

“Como ler um livro interpelante? A resposta a essa indagação é a obra de Walnice Nogueira Galvão, pensadora em que o conhecimento profundo das humanidades – filosofia, teologia, história, antropologia, psicologia, psicanálise – e das artes – literatura, teatro, pintura, escultura, arquitetura, música, cinema – se volta para a compreensão do que são as letras brasileiras e que, ao fazê-lo, transforma seu saber em meditação, numa tecelagem que puxa os fios do imaginário mesmo quando (ou especialmente quando) o escritor se quer tecelão do real, mas tece realmente as formas do falso.”

Cabe à terceira parte do livro ensaios dedicados a outros temas estudados por Walnice. Neles, surge uma homenagem menos à pessoa da professora e mais ao seu trabalho, manifestada através de textos que dão continuidade aos seus interesses de pesquisa. É o caso, por exemplo, do ensaio de Antonio Dimas sobre o romance Gabriela, de Jorge Amado, com suas torções de nariz por parte da crítica e as indagações a respeito da brusca mudança de rumo na pena do escritor baiano, que deixava uma prosa mais explicitamente militante em favor de uma escrita temperada de sensualidade e galhofa.

Está presente também na seção o texto de João Roberto Faria, professor aposentado da FFLCH, sobre os traços da sociedade escravista brasileira vislumbrados nas comédias narrativas do teatrólogo Martins Pena. Outro ensaio, escrito pelo professor de Literatura Luso-Brasileira da Universidade Yale, nos Estados Unidos, K. David Jackson, aborda a poesia concreta brasileira. Já Šárka Grauová, docente da Faculdade de Letras da Universidade Carolina, de Praga, trata da obra de Lima Barreto.

A quarta parte, por sua vez, coloca no centro do palco a figura de Antonio Candido, de quem a homenageada foi a primeira assistente e também uma das pessoas que mais estiveram presentes ao seu lado em seus últimos anos de vida. Beth Brait, professora aposentada da FFLCH, procura, em sua contribuição, salientar a importância e atualidade da escrita crítica, acadêmica e didática de Candido.

“E foi isso que Walnice me ensinou naquele momento, e continuou a me ensinar pela vida afora. Uma leitora crítica é sinônimo de muita pesquisa, muita leitura disciplinada, mas especialmente de disponibilidade para enxergar o movimento de diferentes manifestações artísticas (e não artísticas), suas formas de produção, circulação e recepção. Arregalar olhos e espichar as orelhas para a vida e suas formas de se fazer arte.”

“Isso significa olhar sua escrita e reiterar a inigualável capacidade desse pensador, cujo traço marcante é a sabedoria de articular detalhes linguísticos, enunciativos, discursivos, componentes de um texto literário, a uma fina, singular e iluminadora interpretação”, escreve Beth.

É de Candido, ainda, um dos textos que encerram a obra. Trata-se de um prefácio escrito originalmente para o livro Desconversas – Ensaios Críticos, de 1998, no qual o mestre discorre a respeito dos melhores ensaios da pupila.

“Quando Walnice Nogueira Galvão prestou concurso para o cargo de professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, eu, já aposentado, fiz parte da banca examinadora”, escreve Candido. “Tive então a oportunidade de dizer, adaptando uma frase famosa de Juscelino Kubitschek, que Deus me poupou o sentimento da inveja, salvo quando esta é uma forma de admiração pelo trabalho melhor dos outros. Assim, quando leio certos estudos de alta qualidade, lamento não os ter escrito, e foi o que se deu depois da leitura de um admirável de Walnice sobre Meu Tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa, que me parece um dos momentos mais bem realizados da crítica brasileira. Para mim, é o exemplo perfeito do que o nosso trabalho pode ter de mais satisfatório, porque, fundindo saber e intuição, reúne a pesquisa erudita à percepção analítica. Desconversa mais penetrante, transfigurando o texto na medida em que o desvenda por meio de uma escrita certeira.”

Palavras para Walnice, Antonio Dimas e Ligia Chiappini (organização), Edições Sesc, 392 páginas, R$ 72,00.
Palavras para Walnice, Antonio Dimas e Ligia Chiappini (organização), Edições Sesc, 392 páginas, R$ 72,00.

“Assim, este livro estava mais do que na hora de ser produzido e publicado. Demorou, mas valeu a pena, porque não é nada pequeno. Autoras e autores, de diversas proveniências geográficas e espaços de vida e profissão, pelo Brasil e mundo afora: Alemanha, França, Itália, República Checa, Estados Unidos. Suas diferentes especialidades e o seu desempenho nelas o comprovam, pela solidez de seus trabalhos, seja em literatura e cultura, teoria literária, filosofia, antropologia, direito, teoria e prática da tradução, na maior parte das vezes, abertos a uma produtiva interdisciplinaridade.”

Palavras de Walnice

Em entrevista por telefone para o Jornal da USP sobre o lançamento de Palavras para Walnice, a professora Walnice Nogueira Galvão contou que ficou honrada e gostou muito do livro, elogiando a inclusão de uma série de tópicos caros à sua trajetória intelectual. Walnice destacou o texto de abertura, escrito por seu filho Afonso, como um dos pontos altos do volume: “Todos estão dizendo que é o melhor texto do livro”, brinca a professora.

Questionada sobre a “convivência existencial” estabelecida com os autores sobre os quais se debruçou, conforme cita o professor Antonio Dimas, Walnice relembra: “Para mim, literatura sempre foi vida. Nunca a considerei como algo separado. E isso desde criança, quando comecei a ler aos 5 anos e nunca mais parei”.

Ao falar sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP e sua sucessora, a atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), as instituições nas quais Walnice se formou e permaneceu ligada por toda a vida, a professora fez um balanço de sua importância e lembrou sua resistência diante de interferências políticas que marcaram sua história.

Walnice Nogueira Galvão - Foto: Reprodução/IEA-USP

“Desde a sua fundação, a Faculdade de Filosofia foi uma escola de vanguarda. Era mais moderna e avançada que qualquer escola do Brasil, seja de qual ramo fosse”, afirma a pesquisadora. “O fato de ter sido fundada por professores europeus – os idealizadores não admitiram professores brasileiros para não permitir politicagens locais – fez uma diferença enorme. E ainda faz. Sempre que possível, a política corta as asas da Faculdade de Filosofia, mas ela sempre renasce e retoma seu papel essencial na cultura e na educação brasileira.”

Walnice segue hoje com uma rotina de reflexões e intervenções públicas, colaborando regularmente em três sites: Jornal GGNA Terra é Redonda e a revista eletrônica Teoria e Debate. Além disso, teve seu livro mais recente lançado em 2019 e tem duas novas obras já entregues aos editores. “Tenho que escrever toda semana para esses sites, de modo que essa é minha principal atividade nos últimos anos. Mas de vez em quando lanço um livro”, comenta, com modéstia.


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