Por Janice Theodoro da Silva
Os eleitores de Donald Trump e Jair Bolsonaro não foram enganados. Eles sabiam em quem votavam. Exerceram o direito à sua cidadania de forma consciente, apoiaram a violência em suas diferentes modalidades e concordaram com a destruição do planeta e de diferentes formas de vida.O que motivou a escolha?
74 milhões de pessoas escolheram para presidente Donald Trump e 57 milhões, Jair Bolsonaro. De forma direta ou indireta encontraram alguma identidade com o perfil pessoal e com os projetos dos dois candidatos. O impulso preponderante foi: Apenas o presente importa.
65,8 milhões de pessoas votaram em Hillary Clinton e 47 milhões Fernando Haddad por considerar o perfil pessoal dos candidatos e os projetos capazes de resgatar alguma humanidade na relação entre as pessoas e atenuar a destruição do planeta a médio e longo prazo. Avaliaram o presente e o futuro por meio de números, probabilidades e abstrações. O impulso preponderante foi: O futuro e a vida importam.
Os dois candidatos vitoriosos, do ponto de vista pessoal, não apresentavam as virtudes historicamente atribuídas ao bom governante. Não eram prudentes, nem aparentavam ser. Faltava equilíbrio e moderação. Apostaram e incentivaram os conflitos e desequilíbrios nacionais e internacionais. Diante da justiça optaram pelo uso cinematográfico da força e da violência contra as minorias. Consentiram e estimularam, por meio de suas políticas públicas, a construção de muros, a morte (no contexto das epidemias) e o uso de armas.
De Maquiavel até os dias de hoje é comum vincular a figura de um governante à presença de virtudes como moderação, probidade e benevolência, ainda que apenas na aparência. Segundo o autor citado o Príncipe deve antes preferir ser temido do que amado e evitar ser odiado pela maioria dos seus súditos e pelos potentados estrangeiros.
Os dois presidentes, em meio a um clima de mudanças de costumes, lançando mãos das novas tecnologias resolveram utilizar uma mistura extravagante de novas tecnologias com pitadas de força, violência, perversidade, vulgaridade e parcialidade.
A estratégia retórica utilizada foi o reverso daquelas empregadas pelos políticos tradicionais: Causar impacto invertendo o significado das coisas. A formula foi negar verdades aceitas por consenso, empregar o “humor destrutivo” , o sarcasmo, naturalizar a morte, (talvez por incapacidade de viver bem e amar), defender a sobrevivência apenas dos mais fortes (seleção natural) e desestabilizar as relações pessoais e políticas, estimulando o medo e a submissão.
Todos os meios de comunicação foram pegos de surpresa. Negar o holocausto! É possível alguém dar ouvido? Afirmar ser a terra plana. Alguém acredita nisto! Tomar vermífugo? Quanta aberração.
Ocorreu o impossível muita gente começou a repetir absurdos e gostar de ser notado ao expressar o reverso do que diz a história, a ciência ou mesmo as provas. Finalmente, um grupo de violentos invisíveis ganharam espaço nas mídias veiculando absurdos e compondo metáforas sugestivas sustentadas por ameaças e violências entremeadas com ações insólitas: fogos contra o STF, agressões a profissionais da saúde e propaganda de vermífugos para combater a epidemia.
Qual a raiz desta estranha armadilha?
Diante do espanto causados pelos absurdos ditos pelos presidentes uma boa parte dos cidadãos das duas repúblicas, dos cientistas e dos jornalistas foi explicar e provar na imprensa e em outros meios de comunicação, serem as afirmações repletas de falsidades, mentiras e distorções da realidade.
Esforço inútil.
O alvoroço criado pelas insanidades gerou polemicas acirradas. Atentos as novas formas de comunicação os violentos invisíveis transformaram o absurdo em notícia reforçando as maluquices dos presidentes e de seus asseclas. Ficou claro o fato dos protagonistas das insanidades estarem conscientes das mentiras e, estimulados pela repercussão, decidiram engraxar a máquina digital para difundir o ódio.
Por que?
O artigo de Moises Naím (Estado de S. Paulo, 23 de novembro de 2020) trata deste tema intrigante. Como ele diz, não faltam fatos para comprovar as mentiras, declarações de assédio sexual ou evidencias de descaso com a saúde, mortes, barbaridades nas políticas de combate a imigração (separação de crianças de suas mães) e desonestidade com o pagamento de impostos, no caso do Brasil, com o uso da rachadinha. Não há como não saber, não ver as evidencias e provas apresentadas. As mentiras são mentiras comprovadas, o desrespeito a mulher é fato, e as rachadinhas são um episódio de transferência de dinheiro filmado nos terminais bancários.
Moisés Naim, escritor Venezuelano e eu estamos igualmente intrigados. Não há dúvida: as pessoas que votaram em Trump e Bolsonaro sabem que a terra não é plana, que a cloroquina não cura Covid e que é uma barbaridade matar pessoas por sufocamento ou tiro.
O desafio é explicar o despertar da barbárie?
Renda insuficiente, competição nos empregos e conflitos raciais históricos são sempre parte da história. Apenas parte. Segundo dados divulgados na imprensa, os apoiadores de Bolsonaro, são majoritariamente pessoas com renda superior a 5 salário mínimos e parte deles portadores de diploma universitário, portanto, aptos a acionar os circuitos cerebrais da razão. No caso dos EUA muitos dos eleitores de Trump possuem altos índices de escolaridade. Portanto, não se pode reduzir o fenômeno a acesso à riqueza.
Ser insensível a separação de crianças das suas mães, pôr fogo no mato para ver a floresta e os bichos queimarem, ser indiferente a morte de milhares de pessoas não se comover nem com a criança nem com a pata queimada da onça pintada, nem com os milhares de mortos é um problema que exige reflexão, compreensão apurada e estratégias para sugerir mudanças.
A nossas sociedades estão doentes. A doença é grave. A observação dos fatos de pequenas e grandes proporções evidenciam a perda de humanidade entre os seres humanos nas sociedades contemporâneas.
Como explicar as razões da escolha, do consentimento para mentiras, para as violências, qual é a origem da insensibilidade e do profundo distanciamento, prático e teórico, em relação ao Outro ser humano, ou ser vivo?
Sintomas da barbárie.
Existe uma vingança embutida na linguagem. Ódio e vingança com origem em comunidades com hábitos tradicionais e rígidos, hábitos não raro grosseiros sustentados por uma profunda indiferença pela vida (especialmente do Outro) fruto da sociedade que nós criamos. Uma sociedade repleta de seres invisíveis onde a força e a vontade de vencer inclui a destruição do concorrente (Trump/Biden). Força e violência são atributos centrais geradores de uma estética, uma forma de ver o mundo, de falar, comer, de se relacionar com o corpo, com os cheiros, com a sexualidade, com a música, roupa, de hierarquizar de acordo com a cor da pele, o gênero, o pais de origem, com a vida-dinheiro, com a qualificação/desqualificação profissional, com o prazer-lazer, com o esporte, músculos, com a morte e com a eternidade entre outros tantos detalhes. Competir, competir, competir é o lema.
Os violentos invisíveis ganharam visibilidade por meio de uma revanche contra um “estilo Nova-Iorquino”, sofisticado, erudito, cheiroso, liberal nos costumes. Existe uma desforra diante do velho hábito das elites em explicar e justificar o inexplicável, fazendo perpetuar uma sociedade profundamente desigual do ponto de vista econômico e principalmente do ponto de vista cultural e estético.
As marcas da desigualdade, aquelas que doem mais, nem sempre são as do dinheiro. Algumas, invisíveis, são acentuadas e perpetuadas por meio de uma linguagem marcada por um estilo prudente, ameno e erudito. Falam que a justiça é igual para todos. Ela não é igual. Falam que o Congresso, eleito pelo povo, garante o funcionamento do Estado de Direito. Ele garante? Falam que a monarquia acabou. Mas a hereditariedade na política, pelo menos no Brasil, é fato. Tudo mudou, para continuar igual, como diria Tomasi di Lampeduza.
O fato novo é a entrada em cena do “homem branco raivoso” que votou em Trump (um matador vitorioso) e os desencantados amantes do grotesco, eleitores de Bolsonaro. A indiferença diante da morte, defendida por milhões de pessoas, é sempre um grito de dor. Alguma coisa degenerou, desagregou, alguma coisa agoniza nestas sociedades, uma rica outra pobre, uma na América do Norte e outra na América do Sul.
Dois textos me fizeram pensar. Um texto do Economista Edmar Bacha, onde por meio de uma fábula O rei da Belíndia ele introduz o debate sobre desigualdade e renda desvendando a retórica dos economistas e propondo uma outra forma de calcular o PIB, capaz de impedir os ricos ficarem mais ricos e beneficiando os mais pobres. Para além dos cálculos percebemos o encobrimento da desigualdade feito pelas elites, por meio da linguagem matemática muitas vezes mentirosa e dos indicadores utilizados, gerando um descrédito profundo no falatório das elites dirigentes formadas por políticos, cientistas e artistas esteticamente diferenciados.
O segundo texto é o de Mikhail Bakhtin, a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, sobre a linguagem popular. Ele trata (entre tantas reflexões) do “humor destrutivo” que se insurge contra toda uma realidade, carregando uma vontade demolidora. Os líderes, Trump e Bolsonaro, expressam o cansaço de uma parte da sociedade, a dor de pessoas que não são vistas, qualificadas na sua existência modesta, compreendidas no seu estilo grosseiro, na sua gesticulação não raro obscenas, apegados ao corporal e ao material, ao excesso, a comida, a natureza em seu estado primitivo e ao baixo corporal, negando uma linguagem abstrata, de difícil compreensão, recheada de nomes, autores, citações, renovadora dos costumes e da estética.
Talvez o ódio expresso de forma jamais imaginada tenha origem em todos nós. Somos todos agentes da desigualdade e das instituições que as mantem. Somos nós amantes da hierarquia invisível que separa. Optamos pela desigualdade miúda entre o homem e a mulher, entre o branco e o preto, entre o objeto que eu posso ter e o outro não pode, entre a grife verdadeira e a falsa, entre a maneira falar, diferenciando uns de outros, e mesmo entre o crente e o ateu.
Resumo da ópera: Antes de jogar a pedra é bom perguntar: quem foram e quem são os artífices destas duas sociedades.
Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP