Florestan Fernandes, em outubro de 1928, como aluno no curso primário (o terceiro da direita para a esquerda, sentado no banco) – Fotos: Reprodução/Wilson Melo/Folhapress via Revista Fapesp e Reprodução  via Revista Fapesp

Educação no Brasil ainda vive problemas apontados por Florestan

Artigo escrito pelo sociólogo em 1960 alerta para o "alheamento" a que professores foram relegados

22/07/2020

Por: Roberto C. G. Castro
Arte: Moisés Dorado

A educação no Brasil precisa ser vista como um problema social, a fim de que as deficiências educacionais sejam enfrentadas através de técnicas sociais adequadas. Sem isso, a sociedade sofre as consequências negativas de um ensino insatisfatório, sem ter para combatê-lo o necessário comportamento coletivo organizado. “Não existe um mínimo de consenso, sequer, no reconhecimento das necessidades educacionais prementes e na escolha das soluções que elas parecem impor de forma inevitável.”

Esse é o teor de um artigo do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995) publicado em 1960 na revista Comentário, do Rio de Janeiro. Intitulado A Educação como Problema Social, o artigo é um exemplo da atualidade do pensamento de Florestan sobre um dos temas a que ele mais se dedicou – a educação. Nesta quarta-feira, dia 22, completa-se o centenário de Florestan Fernandes – data que o Jornal da USP está comemorando com uma série de reportagens.

No artigo escrito há seis décadas, Florestan expõe problemas ainda presentes na educação brasileira. Um deles se refere ao “alheamento” a que os professores foram relegados no País. “O mestre-escola (professor de instrução primária) e o professor constituem a verdadeira mola-mestra de qualquer sistema de ensino. Por maiores que sejam os progressos alcançados nas esferas da teoria da educação e da reforma educacional, tudo não passará de letra morta se os resultados não se evidenciarem no campo do trabalho do mestre-escola e do professor”, defende o sociólogo. Apesar de sua importância fundamental, continua Florestan, os professores foram convertidos numa espécie de “formiga-operária”, da qual se espera apenas uma produção estereotipada, obtida por vias rotineiras. “Enquanto perdurar essa situação, será impossível imprimir novos rumos à educação brasileira. Haverá sempre um abismo intransponível entre os objetivos educacionais, definidos pela teoria pedagógica posta em prática através das reformas do ensino, e os processos pedagógicos reais.”

Segundo Florestan Fernandes, a educação no Brasil precisa ser vista como um problema social, a fim de que as deficiências educacionais sejam enfrentadas através de técnicas sociais adequadas – Foto: SDE /GDF/GOV/BR

Dotados de um conhecimento “técnico”, que percebe a escola como um todo e as exigências educacionais não atendidas, os professores poderiam dar efetivas contribuições para a solução dos problemas da educação, especialmente aqueles relacionados mais diretamente ao funcionamento das escolas – escreve ainda Florestan. Entretanto, esse conhecimento tem sido inoperante, porque não conduz ao aperfeiçoamento das instituições educacionais e das práticas pedagógicas e porque não se difunde fora dos círculos restritos dos professores e mestres-escolas. “Nas circunstâncias atuais isso é inevitável, na medida em que ambos ocupam, na estrutura da escola tanto quanto na da sociedade, posições que não lhes asseguram uma soma de poder à altura de suas responsabilidades e de seus papéis intelectuais”, considera o sociólogo. “Uma das fontes de consciência objetiva e crítica dos elementos qualitativos mais complexos da situação educacional brasileira é, portanto, silenciada e neutralizada no próprio nascedouro, permanecendo mais ou menos inútil para o resto da sociedade.”

Florestan aborda, no mesmo artigo, a importância dos teóricos da educação, que através da pesquisa científica elaboram as análises e as críticas “mais penetrantes e completas” sobre o funcionamento das instituições escolares e o sistema educacional brasileiro. “Promovem, assim, a lenta substituição dos critérios e valores pedagógicos obsoletos, que herdamos do passado, assumindo os papéis de agentes responsáveis de inovação cultural na esfera da educação”, escreve o sociólogo, lembrando que é preciso “estimular a produção pedagógica original, que leve em conta as peculiaridades das instituições educacionais brasileiras e as nossas possibilidades de explorar modelos pedagógicos modernizados”. Ele alerta, porém, para uma “limitação” do conhecimento pedagógico: os “mecanismos irracionais de avaliação” produzidos pelo “influxo poderoso das camadas conservadoras na vida educacional”. “Em consequência, o conhecimento mais positivo que possuímos sobre a situação educacional brasileira é impotente, por si mesmo, para alterar a qualidade e a eficácia da reação societária aos problemas educacionais.”

“O mestre-escola e o professor constituem a verdadeira mola-mestra de qualquer sistema de ensino. Por maiores que sejam os progressos alcançados nas esferas da teoria da educação e da reforma educacional, tudo não passará de letra morta se os resultados não se evidenciarem no campo do trabalho do mestre-escola e do professor”, escreveu Florestan Fernandes – Foto: Agência Minas / SECGERAL/MG/GOV/BR

Os cientistas sociais de áreas diferentes da educação também são necessários para o aperfeiçoamento do ensino no Brasil e devem ser valorizados, defende Florestan no artigo. Segundo ele, o conhecimento produzido por esses cientistas mostrou a variedade das necessidades educacionais não atendidas pelo sistema de ensino, a tendência ao mau aproveitamento dos recursos educacionais disponíveis, a persistência de critérios antidemocráticos na distribuição das oportunidades educacionais e as razões psicossociais e socioculturais do mau funcionamento das instituições escolares. Para Florestan, os cientistas sociais perceberam, melhor do que os educadores, que os problemas educacionais são também problemas sociais – e por isso devem ser tratados através de técnicas sociais apropriadas – e que a solução desses problemas depende, em grande parte, da transformação da estrutura das instituições escolares e do sistema nacional de ensino. “Não obstante, estamos longe de ter alcançado condições reais de aproveitamento efetivo da contribuição dos cientistas sociais”, lamenta Florestan. “A sua colaboração construtiva depende, diretamente, da organização do trabalho dos educadores e da realização de planos de reconstrução educacional, de objetivos bem definidos.”

“Já se admite, sem relutância, que os anseios de crescimento econômico e de desenvolvimento social não passam de miragens enquanto não se amparam também em planos de reconstrução educacional. Nada se tenta fazer de positivo, todavia, no sentido de pôr em prática tal ideia”, escreve Florestan – numa frase que parece tristemente tão atual – em A Educação como Problema Social, artigo que está publicado também no livro Florestan Fernandes – Leituras & Legados, lançado em 2010 pela Global Editora.

O texto acima faz parte da série de reportagens Florestan 100 Anos, produzida pelo Jornal da USP em comemoração ao centenário de nascimento do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), completado nesta quarta-feira, dia 22.

A próxima reportagem da série, “A formação do ‘jovem Florestan’, segundo Antonio Candido”, será publicada nesta quinta-feira, dia 23.

Leia nos links abaixo as outras reportagens da série Florestan 100 Anos já publicadas:


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