De “jovem monstro” a delicado bibelô: A Pequena Bailarina de 14 Anos

Livro de Ana Gonçalves Magalhães explora as complexidades da escultura de Edgar Degas

 13/08/2024 - Publicado há 3 meses

Texto: Lara Paiva*

Foto: Divulgação/Edusp

O pintor, gravurista, escultor e fotógrafo francês Edgar Degas (Paris, 1834 – 1917) conquistou o epíteto “o pintor das bailarinas” devido às suas várias pinturas e pastéis de bailarinas ensaiando. Sua visão dos bastidores da ópera de Paris com cores delicadas, movimentos dinâmicos e sutis cenários alcançou a celebridade e é reproduzida assiduamente por todo o mundo – em cadernos, quadros, roupas, entre outros. Mas quando Degas revelou A Pequena Bailarina de 14 Anos (1878) na Exposição Impressionista de 1881 – a única escultura que o artista expôs em vida – a reação foi diferente. A recepção crítica chamou-a de “um jovem monstro”, “aterrorizante”, “uma flor precocemente depravada”.

A Pequena Bailarina de 14 Anos (1878), Edgar Degas - Fotos: Masp

Pequena Bailarina, originalmente modelada em cera, mas postumamente fundida em bronze, faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) junto de outros 72 bronzes de Degas, adquiridos em 1950 por Pietro Maria Bardi. Além do Masp, apenas três museus no mundo possuem a coleção escultórica completa do artista: Glyptotek, de Copenhague; Metropolitan, de Nova York; e Musée d’Orsay, de Paris. Todas as coleções foram reproduzidas em bronze a partir dos originais em cera. A figura inquietante reflete a realidade indecente de sua época e é tema do novo livro da Coleção Prismas, A Pequena Bailarina de 14 Anos, de Edgar Degas (Edusp, 2024), da historiadora de arte, professora livre-docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP) Ana Gonçalves Magalhães. De forma acessível a todos os públicos, Magalhães expõe as principais características da obra e o contexto na qual se insere – tanto da sociedade de seu tempo quanto na produção artística de Degas.

Ana Gonçalves Magalhães - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O livro é o quarto da Coleção Prismas da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), que, em cada edição, traz o estudo de uma obra de arte nacional ou internacional pertencente às coleções brasileiras. “Ela não se dirige apenas a um público de conhecedores, mas àqueles que pretendem se aprofundar na história da arte, para além das etiquetas, dos movimentos, dos estilos ou das escolas”, escreve Jorge Coli, coordenador da coleção, crítico da arte e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O lançamento de A Pequena Bailarina de 14 Anos ocorre às 19 horas da quinta-feira, dia 15, na unidade Pinheiros da Livraria da Travessa. O evento conta com uma roda de conversa com Magalhães, Coli e Sergio Miceli, diretor-presidente da Edusp.

Quatro Bailarinas em Cena (1885-1890), óleo sobre tela, Edgar Degas - Foto: Masp

Hilaire Germain Edgar Degas tornou-se célebre ao retratar o universo feminino do balé, mas mais que isso, era um “artista complexo, contraditório, muitas vezes acometido por um olhar moralista, misógino e racista na abordagem da figura feminina em geral”, aponta Magalhães. A ex-diretora do MAC-USP pesquisou em sua tese de doutorado as 73 esculturas de Degas pertencentes ao catálogo da mostra Degas: Dança, Política e Sociedade (2021) do Masp, que abordou a produção do artista aristocrata por meio de uma perspectiva política, social e crítica. Um dos mais importantes impressionistas, Degas fez do movimento o motivo principal de sua obra. Aficionado pelo universo da ópera e do balé, o pintor retratou a decadência da dança nos anos 1870, “caracterizada pela degeneração” e “culminando na imagem icônica de A Pequena Bailarina de 14 Anos”, escreve Magalhães.

As “ratinhas da Ópera”

Na pintura a óleo sobre tela A Aula de Dança (1874), por exemplo, Degas representa o fim da era do “balé romântico”: o velho mestre de balé Jules Perrot (1810-1892) contrasta com suas jovens alunas. Segundo Magalhães, as composições de Degas reafirmaram a beleza feminina ao mesmo tempo que tornavam a pintura impressionista popular e de fácil apreciação para o público. Mas a realidade das jovens bailarinas se aparta da beleza e delicadeza da tela.

A Aula de Dança (1874), óleo sobre tela, Edgar Degas - Foto: Museu Metropolitano de Arte

Em sua escultura, Degas retrata o que chamava de “ratinhas da Ópera” (petits rats de l’Opéra), meninas entre 6 e 14 anos de idade que iniciavam na Escola de Balé da Ópera Nacional de Paris. As “ratinhas” eram filhas de operários, lavadeiras e outros membros empobrecidos da sociedade parisiense que, em busca de um futuro melhor, viravam dançarinas do corpo de balé. Nos bastidores da ópera, eram incitadas a seduzir e se prostituir com burgueses ricos para assegurar seu sustento. “A Pequena Bailarina de 14 Anos é, portanto, expressão e sintoma de um momento em que meninas que se inscreviam para receber formação de bailarinas adentravam um ambiente de depravação, de degeneração e do uso de seu corpo para o deleite da alta burguesia parisiense, no palco e na cama”, explica Magalhães.

A crítica se torna mais contundente ao levar em conta as escolhas materiais de Degas ao conceber a escultura. A escultura foi modelada em cera, mas A Pequena Bailarina veste tutu, corpete e sapatilhas reais, com uma peruca e um laço de cetim, que “correspondem exatamente ao que se via nas meninas da Ópera Garnier”, informa Magalhães. Ao invés de fundir sua obra, Degas a expôs em cera, colocando a peça dentro de uma vitrine ao lado de um conjunto de retratos de criminosos. O crítico Charles Baudelaire, em 1846, defendeu que a cera revelava a “beleza suja” da modernidade, e Degas fez sua bailarina com pele escurecida (dando um aspecto inacabado e putrefato), um queixo elevado, quase em desdém, a cabeça achatada e os olhos repuxados. “A Bailarina é uma menina degenerada, fadada à desonra e à prostituição”, escreve a autora. A fisionomia da menina – cuja modelo foi a filha de lavadeira e alfaiate Marie van Goenthem, dançarina de balé e prostituída – reforçava as teorias de fisionomia propensas à criminalidade do médico psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1835-1909).

A Pequena Bailarina de 14 Anos (1878), original em cera, Edgar Degas - Foto: National Gallery of Art

Ao vestir sua bailarina com roupas de tecido e uma peruca de cabelos humanos, Degas incorporou técnicas da taxidermia. Análises técnico-científicas da National Gallery de Washington indicam que as roupas originais também possuíam uma camada de cera, dando a elas um aspecto envelhecido. Tudo contribui ao aspecto de um espécime genuíno de ratinha da Ópera fossilizada. Magalhães explica que a crítica não a via como ingênua e nem como vítima em um jogo de poderes: “Os testemunhos são sempre atravessados pelo escândalo e pelo choque provocado na exibição dessa ‘menina-moça degenerada’”.

Mas, atualmente, essa camada de contexto perde-se e as bailarinas de Degas são associadas à ingenuidade e à inocência. As esculturas foram descobertas no ateliê do pintor após sua morte por seus herdeiros e seu galerista, Joseph Durant-Ruel. Em 1954, após a morte do escultor, sua produção escultórica foi redescoberta e a casa de fundição de Adrien Hébrard foi responsável por reproduzi-las em bronze. Quando chegaram ao Brasil, as figuras foram expostas em vitrines giratórias, como dançarinas em uma caixa de música, contrastando as dimensões de inocência e perversão presentes na obra. “O fato de que as versões em bronze de A Pequena Bailarina de 14 Anos tenham servido de modelo para a fabricação de bibelôs esconde o que o original exprime e representa: o espécime degenerado de uma menina bailarina prostituída da Ópera de Paris”, escreve Magalhães.

A produção escultórica de Degas

Edgar Degas explorou diversas técnicas, criando novas possibilidades nos meios em que trabalhou. Magalhães defende que, mesmo pré-moderna (devido ao uso de materiais convencionais, procedimentos consagrados e função de monumento público ou retrato), sua produção escultórica era altamente experimental e inovadora. Tidas como estudos pela historiografia da arte devido ao caráter “esboçado” e rugoso de sua superfície, as 72 esculturas são testemunho da busca do pintor pela representação de movimentos estudados de “forma exata, equilibrada”.  “Não parece fazer muito sentido categorizá-las como ‘acabadas’ ou não. Sua fruição e compreensão emanam do próprio fazer artístico”, aponta Magalhães.

As pequenas figuras se vinculam à tradição da escultura dos egípcios, gregos e romanos, tidos por ele como artistas “primitivos”. Degas, assim como mais três escultores do seu período – Auguste Rodin, Aimé-Jules Dalou e Medardo Rosso – estavam ligados às tânagras, figurinhas em terracota descobertas em sítios arqueológicos gregos.

A serialização por meio da fragmentação dos gestos e dos ângulos de visão faz parte da pesquisa. “A mecânica do movimento aparece de modo explícito no trabalho de Degas, em séries de natureza sequencial”, escreve Magalhães. “O gesto é analisado em todos os mínimos intervalos, como nas versões do Grande Arabesco, onde vemos explícitos o primeiro, o segundo e o terceiro tempo deste gesto de bailarina. As seis variações de Bailarina Olhando a Planta de Seu Pé Direito também representam diferentes fragmentos de um mesmo gesto”.

A Pequena Bailarina de 14 Anos, de Edgar Degas, de Ana Gonçalves Magalhães está disponível no site da Edusp. O lançamento do livro e roda de conversa ocorrem na quinta-feira, 15 de agosto, às 19 horas, na Livraria Travessa, Rua dos Pinheiros, 513 – Pinheiros, São Paulo

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg


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