André Martins, professor da EACH e autor do livro Arguments, cognition and science – Fotos: Reprodução/Discovery Channel Ícones: Canva

Uma ciência que se afasta dos vieses e incertezas - sem nunca ficar livre deles

Livro discute métodos que a ciência aprimorou para conhecer a realidade e propõe abordagem probabilística do conhecimento que permite reduzir as incertezas, sem deixar de reconhecer limitações

27/11/2020
Por Luiza Caires

O livro Argumentos, cognição e ciência – no título original, Arguments, cognition and science – need and consequences of probabilistic induction in science – é o novo trabalho do físico André Cavalcanti Rocha Martins, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Pesquisador em áreas que vão da física estatística à sociofísica, com a simulação de sistemas sociais e biológicos, o autor reúne informações sobre nossa maneira de pensar, tirar conclusões e construir o conhecimento que conseguem ser interessantes a qualquer público curioso. Mas o alvo visado por Martins é bem delimitado: a ciência e os cientistas que não só a praticam, como a pensam e aprimoram diariamente.

No livro, o físico relativiza nossa capacidade de tirar conclusões sobre a realidade a partir do simples raciocínio. Uma boa parte das nossas decisões rotineiras são tomadas assim: pensando os fatos a partir das informações que temos disponíveis. E não há nada errado com isso – para as pequenas decisões do dia a dia, a serem tomadas rapidamente, muitas vezes esse é o único método disponível. Mas também pode nos ajudar saber que, apesar da nossa confiança em nossos palpites, o raciocínio humano é permeado por vieses que nos fazem tirar conclusões parcial ou totalmente erradas. Assim, para decisões mais delicadas, pensar no assunto não é, sozinho, um bom meio de chegar à melhor resposta.

Se o raciocínio feito observando um conjunto de dados não funciona tão bem para questões mais cotidianas, para a construção do conhecimento científico serve ainda menos como método confiável. Os cientistas sabem disso, e sempre houve na ciência um processo de busca incessante por técnicas melhores e que sejam independentes de nossos vieses. A receita final para se chegar ao conhecimento “verdadeiro” talvez seja inalcançável como algo absoluto – mas a busca precisa se manter. Leia, a seguir, a entrevista com o professor André Martins.

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Jornal da USP: Uma parte grande do livro é dedicada a mostrar por que não podemos confiar apenas na nossa capacidade natural de raciocínio. Por que então, se cada vez mais evidências disso se acumulam, continuamos agindo desconsiderando nossos vieses e outras falhas, mesmo em campos associados à ciência, como a medicina?

André Martins: Nós achamos que podemos confiar em nossas habilidades naturais de raciocínio. Mas elas falham em problemas novos e falham bastante quanto temos motivos para preferir uma ideia. Assim, precisamos de técnicas formais, que permitam checar erros mais facilmente. O desenvolvimento de novas técnicas matemáticas permite que estabeleçamos mais cuidadosamente a relação entre ideias e obter o que realmente são as consequências de um conjunto de ideias, postulados ou axiomas. Da mesma forma, novas tecnologias de medição permitem que nós possamos medir o que acontece com mais cuidado e precisão. E, em ambos os casos, é possível criar receitas que mesmo as pessoas que discordam de nós podem seguir e replicar o que estamos dizendo. Esse teste por pessoas de fora do grupo, que teriam interesse em mostrar que estamos errados, é fundamental e permite uma maior confiança no que descobrimos. E, mesmo em áreas onde a matemática penetrou menos, a análise estatística de dados já é fundamental e usada constantemente. Modelagem matemática ainda está começando em várias disciplinas, mas analisar os dados, em medicina e mesmo em ciências humanas, já é feito com algum cuidado matemático.

A busca incessante por técnicas melhores e que sejam independentes de nossos vieses pode acabar introduzindo problemas novos, como o uso de testes de hipóteses tem causado. Testes já são complicados por serem uma tentativa errada de se rejeitar ideias quando não sabemos realmente se elas são falsas. Mas, mal utilizados como uma receita, são ainda mais comprometedores. Mas isso não quer dizer que não foram um avanço.

No entanto, conforme aprendemos mais e a fazer melhor, precisamos identificar os limites que vamos observando e corrigir. Então, parte da resposta é que temos agido, sim, para superar esses vieses e falhas. A tentativa de eliminar o subjetivo – ou diminuir, eliminar pode ser impossível – sempre existiu.

Por outro lado, faz parte dos nossos vieses defender nossos pontos de vista. Mesmo os cientistas provavelmente não estão cientes dos vieses que eles mesmos cometem, apenas dos vieses dos outros. Isso ajuda a perpetuar o problema com atitudes do tipo: “Mas do jeito que eu faço está certo”. E, quando uma pessoa tem interesse em defender uma ideia, se os antigos métodos ajudarem, é natural que ela se apegue a eles. Os vieses atrapalham e atrasam. Mas há um longo processo histórico de melhorar a metodologia.

JUSP: Qual o papel do que você chama de poder e pertencimento nisso?

André Martins: Há as evidências de que nossas mentes são capazes de enganar até a nós mesmos, criando narrativas onde os dados se ajustem ao que queremos acreditar. Mas, mais do que isso, nossa habilidade de argumentar não se desenvolveu para auxiliar na busca pelas respostas mais corretas. Argumentar é uma atividade que necessariamente implica a existência do outro, ou seja, é uma atividade social. E, do ponto de vista dos nossos ancestrais, encontrar respostas corretas tinha sim importância, mas pertencer a um grupo social era absolutamente fundamental à sua sobrevivência. Ou você pertencia ou não tinha muitas chances de deixar descendentes. A pressão evolucionária seria intensa.

Suponha um grupo que tenha ideias que não sejam claramente destrutivas (como “pule de um precipício”). Coisas como rituais para curar uma doença ou para apaziguar um vulcão. Mesmo que essas ideias não tivessem nenhum resultado prático, se o seu grupo exigia que os seus membros a aceitassem, era melhor você aceitar. Mas o jogo social não se encerra aí. Pertencer a um grupo é fundamental. Mas ascender socialmente nesse grupo também. Ou seja, a evolução da nossa argumentação deve ter seguido dois objetivos principais: aceitar o que é necessário para pertencer ao grupo e ser persuasivo o suficiente para poder convencer os outros e ganhar status social. Estar certo pode ter sido um benefício menor.

JUSP: Como, diante das falhas, incertezas e complexidades, manter a nossa crença na possibilidade do conhecimento?

André Martins: É possível aprender sobre o mundo desde que estejamos dispostos a aceitar e medir as incertezas. O livro, no fundo, é sobre isso. Há inúmeras fontes de incerteza e temos de conhecê-las. Mas, ainda assim, é frequentemente possível dizer que uma determinada ideia é muito pouco provável como descrição correta. Há ideias que podemos dispensar como erradas, de tão improváveis que são. Ou podemos às vezes dizer, em outras circunstâncias, que, comparando dois conjuntos completos de descrição de um problema (teoria mais todas as hipóteses auxiliares que sejam necessárias), um deles é absurdamente melhor na descrição dos experimentos que conhecemos do que o outro. Esse absurdamente melhor pode ser tão forte que seria mais fácil ganhar na loteria 10 vezes do que a avaliação estar errada.

Em sistemas mais complicados, como os sociais, a incerteza pode (e deve) ser avaliada, mas ela vai tender a ser muito grande, restando inúmeras dúvidas. Ainda assim, conforme se aprende mais, tais incertezas podem lentamente diminuir. Não ter certeza não impede tomadas de decisão nem de avaliarmos quais ideias parecem não estar certas. O que é um tipo de conhecimento. Mas não é saber. Saber, não sabemos nada mesmo, exceto dentro dos mundos artificiais que criamos, como a matemática.   

 André Martins – Foto: Reprodução/ Discovery Channel

JUSP: Quais então seriam os melhores recursos para buscar o conhecimento?

André Martins: Os recursos continuam os mesmos, basicamente. O que inclui, como sempre incluiu, somar todas as novas técnicas e métodos que vamos descobrindo. O que se altera aqui é o entendimento de que o conhecimento é algo que não é possível de ser separado de algum grau de incerteza. Esse grau de incerteza pode ser bastante baixo. Teorias muito bem estabelecidas, por exemplo, podem ser falsas, mas a forma mais provável, de longe, é que sejam substituídas por coisas que ainda ninguém pensou. Há muitas teorias antigas que podemos descartar com algo que é incrivelmente próximo da certeza. Apenas um matemático diria que um valor como 0 vírgula seguido de mais 400 zeros e depois 1 não é zero. Para todos os efeitos práticos é. As vezes, é essa a incerteza que sobra. Mas, às vezes, não. Então aprender a lidar com essas incertezas e identificar onde elas aparecem e os casos em que, não importa o quanto você goste de uma ideia, a única coisa competente a fazer é admitir que não sabemos é fundamental.

Esse recurso é novo. A vasta maioria dos cientistas não reconhece plenamente a incerteza que realmente existe em suas ideias e teorias preferidas e deveriam. No mais, o trabalho de observar o mundo, coletar dados e ver o que aprendemos continua o mesmo. Destacaria também a importância do trabalho puramente teórico. A geração de ideias, em geral, deveria ser desacoplada da busca pelos dados que comprovam essas ideias. O motivo é permitir que a comprovação seja feita por outras pessoas que não tenham tanto interesse em afirmar que a ideia é verdadeira quanto seu criador tem. A forma como em várias áreas espera-se que um artigo defenda uma ideia e traga dados para apoiar essa afirmação, na verdade, cria um sério risco moral. Algumas barreiras entre o trabalho teórico e o experimental deveriam ser bem-vindas.

JUSP: Isso serve para todas as áreas do conhecimento igualmente? A física, como descrição humana da realidade material, por exemplo: como ela consegue livrar-se dos vieses? Dá para adaptar seus métodos para outras áreas?

André Martins: O que tenho descrito aqui se aplica a qualquer área. No entanto, é possível e até provável que, em muitas áreas, ainda demoremos até sermos capazes de realmente fazer um trabalho teórico completo, assim como de sermos capazes de entender e quantificar as incertezas. A física teve mais êxito até agora, primeiro, porque os problemas são mais fáceis. Partículas se comportam de maneiras bastante simples e é fácil realizar experimentos com material não vivo. Não há considerações éticas, como quando lidamos com seres vivos, é possível testar todas as condições. Para sociedades e seres vivos temos de trabalhar com dados mais indiretos. Mas isso não quer dizer que formalizar cada argumento seja impossível, através da sua expressão em uma linguagem lógica como a matemática. A formalização pode mostrar de forma mais clara quais são realmente os pressupostos que estamos usando, de que forma esses podem estar limitando nossas conclusões e verificar se não há coisas que não consideramos.

Pegando um exemplo do meu próprio trabalho: havia um argumento em evolução das espécies de que o envelhecimento, com animais se tornando mais fracos com a idade, não poderia ser explicado pela evolução. Isso porque o envelhecimento claramente prejudica o indivíduo e diminui o número médio de filhos que cada animal pode ter. E tal argumento foi convertido há décadas em uma demonstração matemática. Mas, ao olhar a demonstração, fica claro que há elementos não realistas. Ela pressupunha, por exemplo, que todos os animais interagem com todos os demais ao mesmo tempo, ou seja, eles não estariam espalhados pelo espaço. Naquela demonstração, o mundo também não se alterava com o tempo. Introduzindo esses efeitos em um modelo, eu fui capaz de provar que o argumento anterior estava errado. Em um sistema mais realista, havia condições sob as quais a competição entre indivíduos podia levar à escolha de envelhecimento pela evolução.

Dito só em linguagem humana, ninguém iria acreditar. A matematização do problema permitiu várias coisas. Primeiro, o argumento inicial de impossibilidade pode ser considerado extremamente forte. Argumentos em linguagem humana, sujeitos a nossa manipulação (nós evoluímos para isso, lembre), nunca seriam aceitos com a mesma força. Mas ao deixar claro quais as premissas básicas para se fazer a conta, o mesmo argumento também permitiu que investigássemos como ele poderia ser alterado para uma representação mais realista do problema. Essa representação, por outro lado, mostrou que há casos em que o argumento inicial não se aplica. E qualquer um pode fazer as contas e verificar.

Mesmo esse modelo mais completo que eu criei é ainda uma representação bastante aproximada e crua do mundo real. Mas deixa claro o que está sendo incluído e o que não. Modelos de agentes já exploram questões de sociologia, há pesquisadores procurando regularidades matemáticas em eventos históricos e assim por diante. Não significa que a matemática seja algo especial como a linguagem do universo. Ela apenas é uma ferramenta onde detectamos erros mais facilmente e que nos força a dizer com clareza quais são os pressupostos, os axiomas iniciais de nossas análises, diminuindo fortemente a chance de cometermos vieses.

Arguments, cognition and science –
need and consequences of probabilistic induction in science

André C. R. Martins (Rowman & Littlefield, 2020)


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