Fotomontagem com machetes da Lava Jato - Arte: Ana Júlia Maciel/ Jornal da USP
Questionamentos sobre a Lava Jato mudaram visão da imprensa internacional sobre a operação
A série de reportagens publicadas em 2019, e que ficou conhecida como Vaza Jato, levou parte da imprensa estrangeira a apontar abuso de poder e perseguições políticas associados às investigações da Operação Lava Jato
As diferenças e as mudanças no posicionamento de jornais da Argentina, Estados Unidos e Peru sobre a Operação Lava Jato no Brasil entre 2014 e 2020 são reveladas em pesquisa realizada no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. A partir da análise de 773 textos publicados em órgãos de imprensa dos três países, o estudo mostra que, nos Estados Unidos, havia consenso sobre os benefícios da Lava Jato no combate à corrupção no Brasil. Parte da mídia da Argentina criticava fortemente os procedimentos da operação e, no Peru, o mais afetado pelo caso, os jornais defendiam as investigações brasileiras como referência para a justiça do país. Depois da prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2018, e dos questionamentos sobre a forma com que a operação atuava, surgidos em 2019 com a série de reportagens que ficou conhecida como Vaza Jato, veículos na Argentina e Estados Unidos começaram a apontar abuso de poder e perseguições políticas associados às investigações.
“A pesquisa avaliou de que forma a Lava Jato foi enquadrada pela imprensa internacional desde o início das investigações, em 2014, até o surgimento da Vaza Jato, em 2019, quando as investigações anti-corrupção começaram a ter seus procedimentos mais questionados por segmentos da imprensa”, aponta Gustavo Jordan Ferreira Alves, que realizou a pesquisa em seu mestrado no IRI. “Procuramos saber se a imprensa internacional poderia apresentar possíveis posicionamentos políticos por meio da cobertura sobre as investigações e o escândalo de corrupção através desses enquadramentos.”
O pesquisador explica que a Lava Jato foi uma série de investigações que vieram a público a partir de 2014, por meio de autoridades como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, tendo como foco uma rede de corrupção em que um cartel de grandes empreiteiras brasileiras fraudavam licitações e superfaturavam contratos com a administração pública, especialmente com empresas como a Petrobras, em uma ação que envolvia executivos e funcionários públicos do alto escalão, além de empresas de fachada e doleiros responsáveis pelo processo de lavagem de dinheiro. “O termo lava jato é proveniente de um dos primeiros locais que as autoridades brasileiras investigaram no caso, um posto de combustível em que os doleiros atuavam”, explica. “A partir da investigação de autoridades brasileiras e estrangeiras, descobriu-se que essas companhias atuavam fraudando contratos em obras estatais de outros países latino-americanos e africanos, usando uma rede de subornos para obter vantagens ilícitas, sendo esse um dos eixos internacionais do escândalo, juntamente com toda a rede de lavagem de dinheiro da Lava Jato.”
Sobre a Vaza Jato, Alves explica que se trata de uma série de reportagens publicadas pelo jornal investigativo The Intercept, em 2019, envolvendo as autoridades responsáveis por investigar e julgar essa rede de corrupção no Brasil, especialmente procuradores e juízes federais. “Autoridades como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol são expostas em diálogos por meio de aplicativos de mensagens, em que a parte acusatória e o juiz responsável pelos processos decorrentes da Lava Jato aparentemente articulam estratégias que pudessem dar maior viabilidade para a aceitação das denúncias provenientes do Ministério Público, assim como discutir a viabilidade de provas no decorrer dos processos”, relata. “A publicação trouxe uma onda de críticas à atuação dessas autoridades, que já vinham tendo seus procedimentos questionados por segmentos da opinião pública, especialmente após a prisão de Lula.”
O trabalho analisou seis jornais através de suas publicações on-line, dois da Argentina (La Nación e Página 12), dois dos Estados Unidos (New York Times e Wall Street Journal) e dois do Peru (El Comercio e La Republica). “É Importante ressaltar que, para o estudo, eram necessários dois jornais que, em tese, tivessem perspectivas políticas diferentes. No caso argentino, por exemplo, o Página 12 é reconhecidamente de esquerda, enquanto o La Nación, de direita”, explica Alves. “Os seis jornais foram analisados em dois cortes temporais. O primeiro abrange o início da operação Lava Jato, de 2014 a 2018. O segundo corte temporal ocorreu a partir da Vaza Jato, entre 2019 e 2020. Visamos identificar as diferenças nas abordagens desses veículos antes e depois das publicações do The Intercept.”
Por meio de um método de raspagem de dados (web scrapping), foi montada uma base de dados contendo todas as publicações possíveis cobrindo os acontecimentos no Brasil ligados à Lava Jato, chegando a um total de 773 textos. “Usamos em nosso banco de dados desde reportagens atualizando o caso até editoriais e artigos de opinião”, relata o pesquisador. “Depois, aplicamos uma metodologia de análise quantitativa de dados chamada wordfish, analisando como as palavras dessa base de dados poderiam ter um teor político a favor ou contra a Lava Jato.” A pesquisa contou com orientação do professor Feliciano Guimarães, do IRI, e bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Enquadramentos diferentes
“Na Argentina, por exemplo, a palavra lawfare esteve atrelada à cobertura feita pelo jornal Página 12, que apresentou um teor mais anti-Lava Jato, questionando os procedimentos utilizados na investigação”, observa Alves. Lawfare é uma expressão em inglês que designa o uso das leis para combater um opositor, sem respeitar seus direitos e os procedimentos legais. “Podemos dizer, com base nessa palavra e em outros termos utilizados pelo jornal, que o Página 12 deu um ‘enquadramento’ negativo à operação, acusando-a de ser um instrumento de perseguição contra políticos de esquerda, especialmente o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.”
De acordo com o pesquisador, na Argentina e nos Estados Unidos existiram enquadramentos diferentes entre os veículos analisados. “Mesmo que em certo nível a imprensa norte-americana concordasse que a Lava Jato trazia benefícios ao Brasil, o vocabulário dos jornais e as conclusões sobre os desdobramentos da operação foram diferentes entre si”, ressalta. “O New York Times criticou a prisão de Lula e a considerou, em parte, como um abuso de poder. O Wall Street Journal apoiou de forma incondicional a prisão, considerando-a uma vitória das instituições brasileiras e da Lava Jato. Dessa forma, a pesquisa acaba captando de forma quantitativa o processo de polarização desses jornais.”
Tal processo se repetiu e foi mais intenso na Argentina, diz Alves. “O Página 12 sempre foi crítico à Lava Jato, enquanto o La Nación considerava os procedimentos judiciais adotados na operação uma referência que deveria ser seguida pelas autoridades argentinas”, enfatiza.
“A questão do Peru está muito atrelada ao fato de que esse é o país mais afetado pelo caso entre os analisados pela pesquisa. Todos os presidentes depois de Alberto Fujimori, que governou entre 1990 e 2000, estiveram, de alguma forma, implicados na Lava Jato“, diz o pesquisador. “Com base nesse fato, acreditamos que a imprensa peruana defendeu de forma conjunta as investigações no Brasil por considerá-las uma referência para o próprio Judiciário e Ministério Público do Peru, que carece de autonomia investigativa e esteve constantemente procurando informações do Ministério Público do Brasil, porém é necessário investigar melhor as razões desse comportamento”, afirma o pesquisador. “O trabalho não faz um paralelo direto com a mídia brasileira, embora possamos especular que a narrativa da Lava Jato como uma solução para a impunidade no Brasil, presente na mídia local, possa ter influenciado esses veículos internacionais.”
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Segundo Alves, a pesquisa demonstra que a imprensa não é uma mera correia transportadora de notícias, agindo de forma neutra, conforme já era afirmado pela literatura sobre o tema. “Ela também pode apresentar suas perspectivas políticas através do enquadramento que dá a um determinado assunto, inclusive podendo rever sua abordagem, conforme o desenrolar dos fatos”, declara. “Nesse sentido, a Vaza Jato representou um momento de virada, em que veículos como o New York Times passam a criticar abertamente a Lava Jato e os seus procedimentos investigativos e judiciais, um processo que havia começado de forma mais tímida a partir da prisão de Lula e vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018.”
O pesquisador lembra que, tradicionalmente, os estudos nesse ramo abordavam assuntos que interessavam à política internacional de países como os Estados Unidos, analisando a reação da mídia e da opinião pública diante de guerras e assuntos de geopolítica. “Nós conseguimos trazer essa literatura para um contexto mais próximo da realidade da política externa e doméstica de países sul-americanos, abordando temas regionais que podem gerar preocupação, como corrupção e instabilidade democrática”, conclui. “Por fim, também demonstramos a potencialidade de análises que aplicam textos como dados nas ciências sociais. As ferramentas de análise computacionais podem ser importantes aliadas em pesquisas que envolvem grandes quantidades de texto, desde que aplicadas com o treinamento adequado.”
Mais informações: e-mail gustavojordansf@gmail.com, com Gustavo Jordan Ferreira Alves
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