No Estado de São Paulo, as estratégias para enfrentar a pandemia em março de 2021 foram menos rígidas e menos consistentes do que as adotadas em março e no início de abril do ano passado, aponta nota técnica elaborada pela Rede de Pesquisa Solidária. Segundo os pesquisadores, a implementação das políticas de distanciamento social segue um padrão exacerbado de oscilações que prejudica a compreensão e a força das medidas adotadas, e a maioria das limitações é ainda bastante permissiva em relação às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os autores da nota ressaltam que a insistência de manter um plano de contenção com medidas mais flexíveis, juntamente com a falta de um programa consistente de testagem de casos ativos, rastreamento de contatos e apoio para o isolamento de pessoas com testes confirmados e suspeitos no atual momento, contribui para que São Paulo continue sendo o epicentro da pandemia no País.
A nota pode ser lida na íntegra aqui. O estudo trata dos indicadores de monitoramento desde o início da pandemia até abril de 2021, que é parte do projeto COVID-19 Government Response Tracker for the Brazilian Federation (CGRT-BRFED). As intervenções analisadas na nota incluem fechamento de escolas, comércios e indústrias, ordens de permanência domiciliar (stay at home orders), proibições de aglomerações em eventos públicos e privados e uso de máscaras em espaços públicos. Também foi avaliado o Plano São Paulo, suas fases e a maneira como o Estado tem agido para limitar o funcionamento de comércios, escolas, a realização de eventos, sejam eles públicos ou privados, e a restrição às saídas das pessoas de suas residências nos diferentes horários do dia e da noite.
De acordo com a nota, a adoção de medidas pouco articuladas e as constantes e bruscas oscilações entre flexibilizações e enrijecimento das políticas de distanciamento social marcam a resposta governamental à pandemia no Estado de São Paulo em 2020. Foram mantidas nos primeiros meses de 2021, mesmo com a piora na progressão da doença nas últimas semanas. O fato é que o governo do Estado não tem conseguido alinhar e sustentar um pacote de medidas capaz de aumentar a proteção da saúde da população de maneira eficiente. Comparadas a março de 2020 (primeiro mês em que medidas de distanciamento social foram implementadas), as medidas em vigor em março deste ano são bem menos rígidas, apesar do crescimento do número de pessoas infectadas e vidas perdidas por covid-19.
Plano São Paulo
As políticas de distanciamento social passaram a vigorar no Estado de São Paulo em março de 2020, logo após o primeiro caso de infecção por sars-cov-2 ser detectado em 26 de fevereiro de 2020, na mesma semana em que a primeira morte por covid-19 no Estado foi registrada. Essas políticas foram adotadas através de decretos e informadas pelo Comitê de Contingência do Coronavírus. Nesta fase, os decretos se aplicavam, de maneira uniforme, ao território em sua totalidade. Na figura abaixo, é mostrado o grau de rigidez das políticas decretadas pelo governo do Estado de São Paulo para fechamento de ensino presencial, restrições impostas sobre as operações de comércio e serviços, restrições sobre operações de indústria, proibição de aglomerações, políticas de isolamento domiciliar e uso obrigatório de máscaras entre fevereiro de 2020 e março de 2021. As notas do Índice de Rigidez das Políticas de Distanciamento Social (RPDS) variam de 0 (nenhuma rigidez) a 100 (rigidez máxima).
Com o avanço da pandemia, o pacote de medidas foi direcionado para um nível moderado-baixo de rigidez. A maior nota atingida pelo Estado no Índice de Rigidez das Políticas de Distanciamento Social (RPDS) foi 61.1, de um máximo de 100, no mês de julho de 2020. A média RPDS do ano de 2020 foi de 34.72 de 100. Os menores escores mensais foram registrados em março (16.66), novembro (18.0) e dezembro de (18.0) em 2020. Nos primeiros três meses de 2021, a média do RPDS foi de 38. O menor escore mensal foi registrado em fevereiro de 2021 (18.0). Enquanto medidas decretavam o fechamento do setor comercial e de serviços, mesmo que em escala relativamente moderada, o Estado não emitiu decretos fechando setores relevantes, como o setor industrial, por exemplo. Da mesma forma, as medidas de suspensão das atividades de ensino presencial em escolas e universidades foram sistematicamente mais rígidas do que aquelas limitando as atividades dos setores de comércio e serviços.
Além da ausência de decretos que estabelecem a interrupção total das atividades nesses setores, serviços e estabelecimentos comerciais considerados essenciais permaneceram abertos durante toda a pandemia. Vale ressaltar que a definição de serviços essenciais do Estado de São Paulo não está em conformidade com as recomendações da OMS, que especifica apenas a abertura de setores imprescindíveis à alimentação e à saúde como forma de manter o bem-estar básico da população. Nesse sentido, a inclusão como serviços essenciais das lavanderias, das lojas de material de construção, lotéricas, entre outras, indica que as medidas de suspensão das atividades implementadas no Estado de São Paulo nem sempre estiveram alinhadas às recomendações da OMS.
Efeitos
Ao mesmo tempo, as medidas foram revistas muitas vezes sem tempo suficiente para que seus efeitos pudessem ser comprovados em sua eficiência. Esse tipo de oscilação pode ser observado sobretudo no caso dos fechamentos de escolas, comércio, serviços e eventos com geração de aglomeração: os picos seguidos e descidas bruscas nas notas atribuídas indicam que medidas bastante rígidas foram aplicadas e logo em seguida flexibilizadas. Outra medida com potencial limitado de adesão e implementação foi o adiantamento de feriados, realizado pelo governo estadual em diferentes momentos da pandemia. Esses tipos de estratégias trazem uma série de problemas. A principal é a falta de compreensão do seu sentido para as pessoas e segmentos, necessária para a adesão e incorporação das medidas mais rígidas, e as subsequentes dificuldades de fiscalização. Ademais, a rapidez com que as flexibilizações foram implementadas (em alguns casos depois de dois dias), e posteriormente revogadas, representa também um potencial obstáculo à implementação eficaz das políticas e compromete a comunicação sobre o que é de fato relevante para combater a pandemia.
A testagem deveria ser parte da primeira linha de defesa contra a covid-19 e, portanto, entendida como pilar fundamental da estratégia de contenção. No Estado de São Paulo, mesmo com uma ampla cobertura de laboratórios públicos, próprios ou contratados pelo Estado, o volume de testes realizados foi inferior aos níveis recomendados pela OMS. Por exemplo, usando a recomendação da OMS de realizar 1 teste por 1.000 pessoas por semana, o Estado somente realizou 5% do nível de testes necessários em março de 2021. Os testes RT-PCR foram utilizados, portanto, em uma escala muito inferior às recomendações da OMS ao longo de 2020 e no início de 2021. Mesmo com um aumento progressivo na quantidade de testes RT-PCR realizados ao longo da pandemia, o volume é insignificante relativo à demanda. O Estado de São Paulo não implantou a realização de RT-PCR para investigação de contatos, deixando esta ação tão importante no controle da transmissão sem a devida prioridade.
Os gráficos apresentados abaixo confirmam que os primeiros meses de 2021 foram marcados pelo aumento de casos tanto na capital, como nas demais regiões do Estado. Com a chegada do mês de março, o Estado passou a bater recordes consecutivos em relação ao número de casos. No dia 20 de março de 2021, a capital superou a maior média móvel já registrada anteriormente, de 27,1 casos por 100 mil habitantes, que havia ocorrido no dia 11 de agosto de 2020, chegando à marca de 27,4 novos casos por 100 mil habitantes. A partir de então essa taxa apresenta um aumento rápido, com valor máximo no dia 29 de março com média de 39,6 novos casos por 100 mil pessoas. Seguindo a mesma tendência do aumento no número de casos de covid-19, as médias móveis das taxas de ocupação de leitos de UTI covid-19 apresentaram um rápido aumento a partir da metade de fevereiro de 2021, chegando a valores superiores a 90% de ocupação. No mês de março de 2021, o Estado ultrapassou a marca de 73 mil mortes, quando, em 26 de março de 2021, foi registrado o primeiro de alguns recordes que vieram a ser superados: 1.193 mortes. Nas semanas seguintes, novos patamares foram alcançados, com 1.209 mortes registradas no dia 30 de março e 1.160 no dia seguinte. Finalmente, o recorde atingido no mês de março foi novamente superado no dia 6 de abril, quando foram registrados 1.389 óbitos.
Recomendações
Os autores da nota recomendam que as políticas de distanciamento físico para reduzir a velocidade de transmissão do sars-cov-2 devem ser modificadas para garantir maior coerência e coordenação. É urgente adotar medidas para apoiar a restrição e a segurança da mobilidade das pessoas. Ao mesmo tempo, as políticas de distanciamento físico para reduzir a velocidade de transmissão devem ser mantidas na classificação de maior rigidez considerando-se o nível atual de risco de transmissão comunitária da covid-19. Essas medidas devem ser implementadas com duração suficiente para gerar resultados de redução na proporção de testes positivos, número de novos casos, óbitos e taxa de ocupação de leitos ambulatoriais e de UTI covid-19 que sejam sustentados por um período mínimo de 14 dias seguidos de queda. A testagem por RT-PCR e testes de antígeno deve ser incorporada como medida ampla de controle da pandemia, e não deve ser limitada ao uso da investigação caso a caso. A testagem para diagnóstico da doença deve ocorrer em maior volume, as pessoas devem ser testadas com maior frequência, e deve haver uma política de testagem para contatos.
Os pesquisadores apontam que os esforços de testagem de covid-19 por RT-PCR e antígeno devem ser intensificados em segmentos da população que vivem em alta vulnerabilidade social à infecção que ainda não contam com cobertura vacinal. Simultaneamente, a oferta de testes RT-PCR para casos em pessoas vacinadas deve ser oferecida sempre que estas apresentem sintomas. O Estado deve coletar, investigar e informar os casos de testagem positiva para sars-cov-2 em indivíduos vacinados. A investigação destes casos também deve ser informada nos boletins epidemiológicos do Estado e da capital. Os esforços da rede pública do estado para testar casos ativos de infecção devem ser ampliados com a introdução da oferta de testes de antígeno integrados à rede estadual e utilizados em conjunto com os testes do tipo RT-PCR. Por fim, salienta a nota, atualmente o Plano São Paulo não contempla dados de testagem para classificar as regiões do Estado. Na próxima versão do plano, os resultados dos esforços devem ser inseridos como indicadores para avaliar o risco, tal como orienta a OMS.
A Rede de Pesquisa Solidária conta com pesquisadores das Humanidades, das Exatas e Biológicas, no Brasil e em outros países. Ao todo, são mais de 100 pesquisadores mobilizados para aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas do governo federal, dos governos estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise de covid-19 para salvar vidas.
A nota técnica foi coordenada por Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Tatiane Moraes, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Brigina Kemp (COSEMS/SP), Vera Paiva, do Instituto de Psicologia (IP) da USP e Maria Amélia de Sousa Mascena Veras, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Participaram do estudo os pesquisadores da USP Dara Pinto, Isabel Seelaender, Marcela Mello Zamudio, Pedro Schmalz, Natalia de Paula Moreira, Maria Letícia Claro de F. Oliveira, Luiz Guilherme Roth Cantarelli, João de Oliveira Gusmão, Felipe Vilela, Rebeca de Jesus Carvalho, Maíra Meyer, Gustavo Fernandes de Paula e André Garibe.
As notas anteriores estão disponíveis neste link.
Rádio USP
As pesquisadoras Tatiane Moraes de Sousa, da Fiocruz, a pós-doutoranda da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e Isabel Seelaender, aluna de mestrado do Departamento de Ciência Política da FFLCH, responsáveis pela nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária , falaram ao Jornal da USP no ar 1ª edição, 26/4, falando sobre a nota Técnica que aponta que o agravamento da situação em São Paulo exige políticas mais rígidas para enfrentar a covid-19, mas o ziguezague do governo não interrompe a expansão do vírus e mantém o estado de SP como o epicentro da pandemia no país
atualização em 26/04 às 8h11