Oscilações na distribuição de testes podem ter prejudicado resposta à pandemia no Brasil

Não houve aumento na distribuição de testes moleculares e foi intensificado o uso de testes de antígenos, menos precisos, e sem a criação de uma política para registro de casos positivos

 28/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 29/08/2023 as 18:34

Texto: Júlio Bernardes

Arte: Joyce Tenório

Testes moleculares do tipo RT-PCR detectam material genético do vírus da covid a partir de amostras das secreções da garganta e nariz dos pacientes; teste é considerado padrão-ouro, com maior sensibilidade e especificidade, o que permite aumentar segurança dos resultados - Foto: prostooleh/Freepik

Durante as três ondas da pandemia de covid-19 no Brasil, entre os anos de 2020 e 2022, os testes moleculares eram o meio mais seguro não apenas de identificar novos casos da doença, mas de orientar ações para tratar os pacientes e reduzir o contágio. No entanto, estudo conduzido por pesquisadores da USP e de outras instituições brasileiras mostra que, apesar dos esforços do Ministério da Saúde em ampliar o número de laboratórios capacitados para fazer os exames, não houve aumento no número de testes moleculares distribuídos, em especial na transição da primeira para a segunda onda, no final de 2020.

Na terceira onda, em 2022, houve uma elevação significativa do uso de testes rápidos de antígenos, menos precisos para rastrear a transmissão do vírus e organizar a assistência aos doentes, sem ampliar o sistema de registro e as orientações de coleta e interpretação dos resultados. As conclusões do estudo foram publicadas em artigo da revista PLOS Global Public Health.

O teste molecular do tipo RT-PCR para diagnóstico de pessoas com covid-19 foi desenvolvido por um grupo de pesquisa na Alemanha em janeiro de 2020 e distribuído pela Organização Mundial de Saúde (OMS) antes mesmo do registro do primeiro caso da doença no País. “Este teste é considerado padrão-ouro, com maior sensibilidade e especificidade”, explicam ao Jornal da USP a pesquisadora Tatiane Moraes e a professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que participaram da pesquisa. O teste detecta o material genético do vírus da covid a partir de amostras das secreções da garganta e do nariz dos pacientes. “Ele permite maior segurança quanto a resultados positivos e também negativos, sendo realizado, em geral, por profissionais capacitados e encaminhados a laboratórios registrados, o que aumenta a qualidade da coleta da amostra e a segurança no registro de testes efetuados e de casos positivos.”

Lorena Barberia - Foto: Léo Ramos Chaves/Revista Fapesp

De acordo com as pesquisadoras, os testes moleculares são essenciais para o controle de doenças, principalmente transmissíveis, e em epidemias e pandemias.

“[Os testes moleculares] permitem o diagnóstico durante o período de transmissão, o que além de garantir a adoção de tratamento específico para a doença, permite o controle do espalhamento do vírus, com medidas como o isolamento de pessoas doentes, possibilitando ainda identificar novas variantes do vírus e suas características, o que pode alterar a resposta à pandemia.”

“Especificamente no Brasil, os testes rápidos de antígenos foram autorizados sem que houvesse uma ampliação do sistema de registro destes testes e campanhas de orientação sobre coleta e interpretação dos resultados, principalmente quando realizados por pessoas que não são profissionais de saúde”. Este tipo de teste detecta proteínas que são produzidas durante a replicação do vírus, e pode ser processado fora de laboratórios por pessoal especializado.  Outro tipo de teste rápido de antígenos é o autoteste, vendido em farmácias, no qual o próprio usuário coleta a amostra nasal ou de saliva, faz a testagem seguindo as instruções na bula e interpreta o resultado. Esta modalidade não foi incluída na pesquisa porque não há notificação dos resultados.

O Ministério da Saúde adotou testes moleculares como critério de diagnóstico desde o primeiro guia de vigilância da covid-19 emitido pelo órgão, em 21 de fevereiro de 2020, quando nem todos os estados possuíam laboratórios habilitados para processar esses exames. “Principalmente entre abril de 2020 e março de 2021, eles foram mantidos como critério para diagnóstico da doença em todas as cinco versões do documento, mas em conjunto com os testes de antígenos [sorológicos]”, relatam as pesquisadoras. “Ainda na primeira onda, entre fevereiro e outubro de 2020, os exames sorológicos foram amplamente usados, embora, ao contrário dos testes moleculares, não permitam identificar pessoas recentemente infectadas e com maior potencial de transmissão, o que reduz a capacidade do sistema de saúde em controlar o espalhamento do vírus.”

Média semanal de testes RT-PCR distribuídos e número de laboratórios credenciados por Estado nas três ondas da pandemia de covid-19 no Brasil; em cada onda, o primeiro mapa representa os testes distribuídos à rede laboratorial do SUS e o segundo, os entregues a laboratórios credenciados para testagem durante a pandemia - Imagens: extraídas do artigo

Laboratórios de referência

As primeiras doações de testes moleculares de covid-19 foram recebidas pelo Ministério da Saúde em janeiro de 2020. Os laboratórios de referência nacionais haviam sido treinados para processar estes testes em fevereiro e todos os Estados possuíam ao menos um laboratório habilitado no mês de março. “Ainda durante a primeira onda, o Ministério adotou algumas medidas para ampliar o processamento de testes moleculares RT-PCR no País, com a criação de quatro Centros de Alta Testagem (CATs), no Ceará, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo”, descrevem Lorena Barberia e Tatiane Moraes. “Além disso, houve habilitação de outros laboratórios capazes de processar estas amostras, mesmo que não fizessem parte do sistema de vigilância laboratorial do Ministério, associados a diversas instituições, como a Embrapa e universidades federais.”

“Até o final da primeira onda, em outubro de 2020, muitos testes foram distribuídos aos CATs e a outros laboratórios públicos, mas a grande maioria foi encaminhada aos laboratórios que já faziam parte da rede de vigilância do Ministério da Saúde, os chamados LACENs”, observam as pesquisadoras da FFLCH. “Na segunda onda, que se estendeu até dezembro de 2021, houve o maior número de testes distribuídos a todos os laboratórios, mas com maior colaboração dos CATs, quando 44% dos testes distribuídos no País foram destinados a estes quatro centros, ao contrário dos 14% do total de testes recebidos na primeira onda.”

Na terceira onda, ocorrida no primeiro semestre de 2022, e período com maior registro de casos de covid-19, houve o menor número de testes moleculares recebidos. “Neste período, o CAT de São Paulo foi desativado, assim como muitos laboratórios de universidades federais e de outras instituições públicas usados nas ondas anteriores, havendo uma redução de 80 laboratórios públicos na segunda onda para 23 na terceira onda, entre janeiro e junho de 2022”, enfatizam Lorena Barberia e Tatiane Moraes. “É importante notar que não identificamos nenhuma associação entre o volume de testes distribuídos na segunda e na terceira onda com o número de casos e óbitos registrados nos períodos anteriores.”

Além da criação dos CATs, o Ministério da Saúde apresentou outras políticas voltadas à ampliação do diagnóstico da covid no Brasil, como os programas Diagnosticar para CuidarConfirma COVID-19 e Testa Brasil, lançados em maio de 2020, na primeira onda da doença, e o Plano Nacional de Expansão de Testagem de COVID-19, em outubro de 2021, no período final da segunda onda. “Nosso estudo aponta que estes lançamentos não foram acompanhados pela ampliação no número de testes distribuídos, principalmente durante a primeira e a segunda onda de covid-19”, afirmam as pesquisadoras. “Já em 2022, na terceira onda, o Ministério da Saúde adotou políticas de expansão do uso dos testes rápidos sorológicos e a redução na distribuição de testes para laboratórios moleculares públicos.”

Disponibilidade desigual

Os laboratórios não vinculados ao SUS, assim como laboratórios de universidades públicas e da Embrapa, apresentaram importância local, principalmente na segunda e na terceira onda, apoiando o processamento de testes RT-PCR nos Estados. “Embora tenham representado somente 1,3%, 5,4% e 11% do total de testes distribuídos em cada uma das ondas, alguns estados mostraram agilidade na habilitação e uso desses laboratórios, como Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo”, salientam Lorena Barberia e Tatiane Moraes. “Ainda que tenha sido identificada como uma estratégia positiva, ela ainda se mostrou muito dependente de estruturas prévias à pandemia, evidenciando uma desigualdade na disponibilidade de laboratórios moleculares no País, uma vez que estes Estados já possuíam maior número de universidades e instituições públicas.”

A pesquisa verificou que, após as políticas de expansão do uso de testes antígenos no Sistema Único de Saúde (SUS) adotadas no segundo semestre de 2021, houve redução na distribuição de testes moleculares na terceira onda de covid-19 no Brasil, no início de 2022.

“A expansão de testes rápidos de antígenos facilitou o acesso a testagem de pessoas com suspeita de estarem com covid-19, entretanto, não foi acompanhada de uma política de registro de testes e casos positivos”, afirmam as pesquisadoras, “de modo que pudessem ser adotadas medidas de controle do espalhamento do vírus e organização dos serviços de saúde para garantir a assistência de pessoas infectadas, principalmente com maior vulnerabilidade, como idosos e pessoas com comorbidades, como diabetes e doenças cardiovasculares”.

As pesquisadoras da FFLCH observam que as principais limitações identificadas no trabalho se referem às próprias limitações dos dados disponíveis referentes à realização, compra e distribuição de testes de covid-19 no Brasil. “Nosso estudo se baseou no número de testes moleculares distribuídos pelo Ministério da Saúde. Embora os laboratórios estivessem espalhados pelo País, não foi possível identificar o número de testes realizados por estado brasileiro, de modo que pudesse ser avaliado o esforço local de testagem e o fluxo de testes distribuídos e realizados”, destacam. “Apesar dos governos estaduais e municipais também terem investido em expandir o diagnóstico molecular da covid-19, esses programas não foram analisados, assim como os montantes investidos em diagnóstico laboratorial antes, durante e após a pandemia.”

Participaram do estudo as pesquisadoras Lorena Barberia, Tatiane Moraes e Marcela Zamudio, do Departamento de Ciência Política da FFLCH, Alexandra Boing, da Universidade Federal de Santa Catarina, Fábio Miyaiama, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Ceará, e João Gusmão, da Fiocruz, em Brasília. Profissionais ligados ao setor de vigilância de doenças infecciosas em São Paulo também colaboraram com o trabalho, como Brigina Kemp, do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo e Adriano Abbud, do Instituto Adolfo Lutz. A pesquisa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Mais informações: e-mails lorenabarberia@usp.br, com a professora Lorena Barberia, e tatiane.sousa@usp.br, com Tatiane Moraes

*Sob supervisão de Moisés Dorado


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