Arte sobre foto de Luciano Pontes/Agência Senado

Mesmo com cenário desfavorável, imigrantes haitianos seguem buscando o Brasil. Por quê?

Política externa brasileira, interesses de empresas nacionais e imagem acolhedora do País são alguns dos fatores responsáveis pela manutenção do fluxo migratório, aponta estudo

21/09/2021
Por Sebastião Marcos Moura

Pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou os motivos que fizeram a população haitiana imigrar para o Brasil, mesmo com a crise econômica e política no País. Nos anos que se seguiram ao terremoto que assolou o Haiti em janeiro de 2010, houve uma grande intensificação da migração para o Brasil. Segundo dados da Polícia Federal, aproximadamente 93 mil haitianos entraram em território brasileiro entre 2010 e 2017.

Autora do estudo, Priscila Pachi cita entre os fatores envolvidos o interesse do governo e das empresas brasileiras em explorar a mão de obra barata haitiana na construção civil, muito aquecida devido aos grandes eventos (como a Copa do Mundo em 2014 e a Olimpíada 2016). Ainda, a política externa brasileira de abertura aos refugiados após o terremoto, que facilitou que adquirissem visto e documentação para trabalhar. A perspectiva de usar a migração para o Brasil como etapa intermediária para chegar aos Estados Unidos ou ao Canadá e uma imagem absolutamente equivocada do Brasil como um lugar sem racismo também foram atrativos importantes, diz.

Priscila Pachi estudou a questão em sua dissertação de mestrado A precarização na base da mundialização contemporânea: a imigração haitiana na metrópole de São Paulo, orientada pelo professor do Departamento de Geografia da FFLCH César Simoni Santos.

Ela explica que a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) foi uma intervenção militar da Organização das Nações Unidas (ONU), comandada pelo Brasil, que levou 37,5 mil militares brasileiros ao Haiti durante o período de 2004 a 2017. Seu legado foi uma série de violações de direitos humanos, incluindo mais de centenas de casos de abuso sexual e uma epidemia de cólera – doença jamais registrada no país até então e que chegou a ele por meio de uma base nepalesa da missão, segundo relatório de epidemiologista francês– que matou milhares de pessoas.

Priscilla Pachi – Foto: Arquivo Pessoal

Ao Jornal da USP, a pesquisadora conta que a violenta presença de tropas brasileiras durante a Minustah, independentemente de tudo de negativo que representou para o país caribenho, fez parte de um processo de intensificação das relações entre os dois países que acabou contribuindo para a vinda de imigrantes haitianos para o Brasil.

Como explica o sociólogo haitiano Franck Seguy, que estudou a missão em sua tese de doutorado pela Universidade de Campinas (Unicamp) A catástrofe de janeiro de 2010, a “Internacional Comunitária” e a recolonização do Haiti, a Minustah serviu como uma vitrine para os países sul-americanos envolvidos, principalmente aquele que a liderou, o Brasil. O estabelecimento das Forças Armadas brasileiras no território não só influenciou o rumos da política haitiana, mas também da cultura e da economia.

O Brasil já tinha uma presença forte no imaginário haitiano desde os anos 1960, por causa do futebol. Seguy afirma que o primeiro grande evento a ser transmitido logo após a chegada da televisão no país foi a Copa de 1958 e, desde então, existe uma grande comunidade de torcedores haitianos da Seleção Brasileira. Durante a Minustah, o Consulado Brasileiro investiu em fortalecer esses laços e, em 2008, é fundado o Centro Cultural Brasil-Haiti (CCBH), com o propósito de difundir a cultura brasileira, por meio de aulas de português, capoeira e samba, entre outras atividades.

A partir de 2004, os mercados no Haiti passam a importar muitos produtos de empresas brasileiras, que também investem em propaganda e incentivos para atrair haitianos a virem trabalhar no Brasil.

“O migrante era o trabalhador ideal para as empresas brasileiras. Não falava a língua, não podia se sindicalizar, não tinha uma rede de apoio e, logo, era muito fácil de se explorar”, explica Seguy. Em sua tese, o sociólogo chama a atenção para um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgado em 2013, segundo o qual a porcentagem de desempregados brasileiros com mais de 11 anos de estudo saltou de 20%, em 1992, para 50% em 2012, indicando que “o que o Brasil sofre é com a escassez de mão de obra desqualificada.”

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Ele questiona se o fluxo de imigrantes a partir de 2010 não serviu também como uma ferramenta para suprir essa falta, considerando que mesmo muitos haitianos com ensino superior acabam em trabalhos extremamente precarizados ao chegarem aqui. 

Esse conjunto de fatores políticos, econômicos e culturais contribuiu para um novo fluxo de imigrantes vindos do Haiti provocado pelo terremoto de 2010, e para que o Brasil fosse um dos principais destinos visados.

Foto: Gleilson Miranda/Secom Acre

Missão Paz

Priscila Pachi entrou em contato com o tema da migração entre 2013 e 2014, quando começou a atuar como voluntária na Missão Paz, organização ligada à Igreja Católica, dando palestras interculturais em língua francesa para os imigrantes acolhidos pela instituição na cidade de São Paulo. 

Em sua pesquisa, ela buscou entender o porquê do fluxo de migrantes vindos do Haiti para o Brasil seguir aumentando mesmo com a situação de crise econômica e política pela qual o País passava na época. Para isso, analisou registros e dados do OBMigra, da Polícia Federal e do Eixo Trabalho da Missão Paz, e fez entrevistas com imigrantes haitianos na região central da cidade de São Paulo.

Nos depoimentos coletados por ela, os haitianos continuaram a vir para o Brasil depois de 2014 por dois grandes motivos. O primeiro é que os imigrantes que estavam no Brasil não compartilhavam com os seus contatos no Haiti as reais dificuldades que enfrentavam, como uma forma de não assumirem o fracasso migratório que é também um projeto familiar. O outro é que mesmo os que sabiam, viam atrativos em algumas facilidades e serviços gratuitos que não tinham no Haiti, como é o caso das escolas públicas e do atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

“A pessoa que fica no Haiti também sonha em sair do país em busca de uma vida melhor. E a situação no Brasil é melhor que no Haiti, mesmo do ponto de vista econômico, de oportunidades de trabalho, etc. Às vezes, a gente não fala mesmo para a família porque ela depende da gente. Se você conta que está enfrentando dificuldade, sofrendo racismo, o impacto psicológico é muito grande”, relata ao Jornal da USP Fedo Bacourt, coordenador da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), organização sem fins lucrativos que presta apoio a imigrantes na cidade de São Paulo.

A realidade vivida por esses migrantes ao chegar ao Brasil é marcada por precariedade e vulnerabilidade social. Estando aqui, eles se deparam com o despreparo do poder público para acolhê-los, e a maioria depende do auxílio de organizações religiosas como a Missão Paz. O choque do racismo também é uma experiência de opressão muito marcante: um dos entrevistados por Priscila conta como se descobriu negro no Brasil, sofrendo com o preconceito no transporte público, por exemplo.

Fedo Bacourt – Foto: Arquivo Pessoal

“No Haiti a gente fala mais em preconceito do que em racismo, até porque todo mundo no país é negro. Mas é algo que a gente encontra nos outros países, incluindo o Brasil. Está presente nas redes sociais, no trabalho, nos espaços públicos”, diz Bacourt.

Além da precariedade no trabalho, muitos recebem ofertas de abrigo ou emprego até de outros imigrantes, que acabam prendendo-os a dívidas exorbitantes. Como precisam mandar dinheiro para a família, vivem com o mínimo possível, em alojamentos disponibilizados por instituições religiosas, pela prefeitura, ou ocupações, mudando-se com frequência para manter o custo de vida baixo.

Entre 2005 e 2014, o dinheiro enviado por imigrantes trabalhando fora do país representou mais de 20% do PIB do Haiti. Mas as remessas não só vão dos imigrantes no Brasil para o Haiti, também vêm dos familiares (no Haiti e em países do Hemisfério Norte como Canadá, EUA e França) para quem está aqui. É comum vários integrantes da mesma família estarem espalhados pelo mundo, e os que têm mais sucesso na empreitada migratória auxiliam os que não tiveram tanta sorte.

A vulnerabilidade dessas pessoas acaba sendo vantajosa para a iniciativa privada: além das empresas brasileiras de construção civil, que podem explorar sua mão de obra barata, as empresas financeiras, corretoras e bancos que lidam com as transferências entre esses imigrantes e seus familiares no Haiti e em outros países também lucram com as taxas que cobram pelo grande volume de dinheiro  movimentado nas transações.

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Diversas pautas dos movimentos de imigrantes no Brasil ganharam muita força com esse imenso fluxo de pessoas vindas do Haiti a partir de 2010, o que culminou na promulgação da nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), que substituiu o antigo Estatuto do Estrangeiro, resquício da ditadura militar.

“A partir dessa nova lei, é garantido ao migrante o direito à reunião familiar, organização sindical, participação em protestos, abertura de conta bancária e o amplo acesso à justiça, à educação e à saúde pública. Além disso, considera crime a discriminação motivada pela nacionalidade ou condição migratória”, explica a pesquisadora.

Protesto em prol da reformulação da Lei de Migração em 2017 – Foto: Leandro Uchoas

Mas a efetividade da legislação na realidade concreta da comunidade imigrante é questionável, como afirma Bacourt: “A lei migratória existe, mas não cobre a maioria das coisas das quais o imigrante precisa. Até porque poucos sabem da lei. Se nem o próprio presidente reconhece os direitos dos imigrantes, quem é que vai respeitar?”, diz o ativista, mencionando a saída do presidente Bolsonaro do Pacto de Migração da ONU, logo no começo de seu mandato.

Ele também explica que a maior necessidade dos imigrantes haitianos é a regularização de documentos. Quando chegou, em 2013, conseguiu fazer o CPF em uma semana, mas nos últimos anos o processo está cada vez mais burocrático. “Se retirar um documento básico é difícil, imagina conseguir a validação de um diploma?”, conta, citando o caso de muitos haitianos com ensino superior que, ao chegar no Brasil, não têm sua formação reconhecida no mercado de trabalho, e acabam tendo que se contentar com empregos precarizados.

Durante a pandemia, o organização tem recebido muitos pedidos de ajuda de imigrantes que não estão conseguindo pagar o aluguel, contas de luz, água, ameaçadas de despejo e sem dinheiro para comprar comida. E a ONG não tem os meios para oferecer suporte a todas essas pessoas. Interessados em ajudar como voluntários ou fazer doações podem encontrar instruções na página da USIH no Facebook.

Mais informações: Priscila Pachi, no e-mail priscilla.pachi@usp.br, Franck Seguy, no e-mail franckseguy2@gmail.com


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