IA é definida como construções capazes de ter atitudes e decisões originalmente tomadas por seres vivos e tem como influências decisivas para seu avanço o imaginário humano sobre seres artificiais, a produção científica e tecnológica, as políticas dos governos e os interesses das empresas - Imagem: Montagem sobre fotos Wikimedia Commons

Evolução da inteligência artificial tem limitado a compreensão sobre a humana, alerta pesquisa

Psicólogo aponta problemas no entendimento da inteligência artificial (IA) limitado a aspectos lógicos, matemáticos e instrumentais

 23/02/2023 - Publicado há 2 anos

Texto: Júlio Bernardes

Arte: Joyce Tenório

As implicações psicológicas e sociais surgidas ao longo da evolução da inteligência artificial (IA) são discutidas em pesquisa realizada no Instituto de Psicologia (IP) da USP. O estudo define IA como construções capazes de ter atitudes e decisões originalmente tomadas por seres vivos e aponta como influências decisivas para seu avanço o imaginário humano sobre seres artificiais, a produção científica e tecnológica, as políticas dos governos e os interesses das empresas. O trabalho reflete sobre o quanto esse progresso tem banalizado a compreensão sobre a inteligência humana, limitando-a aos aspectos lógicos, matemáticos e instrumentais, mostrando que a desinformação e a falta de debate sobre a interação com as máquinas trazem riscos ao bem-estar humano e à eficiência da tecnologia.

“Apesar dela assumir formas bem diferentes, a gente pode definir a inteligência artificial como construtos que tomam decisões ou atitudes por conta própria, sendo essas decisões ou atitudes originalmente tomadas por seres vivos”, diz ao Jornal da USP o psicólogo Luiz Joaquim Nunes, que estudou o tema em sua dissertação de mestrado. “Ela pode ser mecânica, como um robô, ou apenas digital, em forma de algoritmo, ter como objetivo dar uma resposta a alguém ou realizar uma operação por conta própria, e pode funcionar de modo que imite um ser vivo ou não. Cada uma dessas formas surgiu em um contexto e por um motivo diferente, mas todas são IA.”

De acordo com o pesquisador, chamou a atenção durante a pesquisa que a ideia de seres artificiais é tão antiga, presente desde as nossas religiões e mitologias, que esse imaginário é replicado ainda na forma como a tecnologia é desenvolvida. “Máquinas são cada vez mais construídas à imagem humana, inclusive porque é a partir da inteligência humana que imaginamos o que seria uma inteligência artificial. Esse imaginário em torno de seres artificiais afetou tanto a percepção pública sobre o tema quanto serviu como base para o que se tentaria produzir em tecnologia”, afirma. “Quanto mais entendemos sobre nós mesmos e o mundo à nossa volta, mais material temos para tentar ou não replicar para uma máquina. Ao mesmo tempo, nós desenvolvemos a IA a partir do que entendemos sobre como resolver problemas e dos mecanismos lógicos e estruturais que disponibilizamos à tecnologia. A inteligência artificial, em termos de inteligência de fato, está limitada à humana.”

Luiz Joaquim Nunes. Foto: Arquivo pessoal/Reprodução

Influências

Nunes afirma que é possível traçar a evolução da IA como o resultado da interação entre quatro influências: o imaginário humano sobre seres artificiais e tecnologias; a produção científica e tecnológica; os governos e políticas sociais; e os interesses das organizações privadas.

“O imaginário tem sido a base de todas as ideias que temos sobre o que criar em tecnologia – dificilmente hoje uma tecnologia de grande impacto é produzida sem que alguém tenha escrito uma ficção científica décadas atrás sobre algo similar”, afirma.

“A produção científica e tecnológica define o que é factível e razoável, e é a partir dela que de fato o avanço acontece, mas os recursos necessários para que ele aconteça têm dependido da atenção de governos ou de organizações privadas.”

“O que se produziu em IA, então, e o trajeto que sua história seguiu, foi de acordo com o que atendesse a uma dessas duas últimas: quando governos se envolveram mais, houve maior foco em objetivos de segurança, privacidade, educação e pesquisa; quando isso dependeu de organizações privadas, o foco foi a lucratividade”, ressalta o psicólogo. “Por fim, é comum que as tecnologias em geral, não apenas inteligências artificiais, só se tornem mais acessíveis à população em geral depois de terem sido mais experimentadas a partir do investimento público ou privado.”

A pesquisa discute o quanto a inteligência artificial tem banalizado a compreensão pública sobre o que define inteligência. “Conseguimos replicar fielmente apenas atividades que dependem de lógica e, em parte, da matemática, e assim temos uma ‘emulação’ da inteligência humana, sem qualquer perda ao resultado. Mas a inteligência em um ser humano não é estritamente racional, pois interage com a subjetividade, o afeto, a criatividade ou a moral para chegar a certas conclusões ou realizar certas tarefas”, observa Nunes. “Então, enquanto falamos abertamente sobre o quanto inteligências artificiais são admiráveis, acabamos, seja por inocência ou intenção, discutindo pouco as limitações e riscos causados por estas. Desse modo, pessoas são incentivadas a valorizar apenas a inteligência lógico-matemática e o conhecimento que seja instrumental, assim como incentivadas a acreditar que máquinas sejam capazes de fazer qualquer coisa no lugar de um ser humano.”

O psicólogo destaca que a forma como lidamos com IA hoje ainda é regada a muita desinformação e, assim como no caso de outras tecnologias, é dessa interação humano-máquina pouco refletida que surgem riscos ao bem-estar humano e à efetividade da própria tecnologia. “Mais ainda, a utilização inadequada e desavisada de uma tecnologia cria riscos de deformação da ética, o que na atualidade também impacta as pautas de riscos ESG, ou seja, ambientais, sociais e de governança [da sigla em inglês], em organizações privadas”, enfatiza. “A empolgação desenfreada dessas organizações em utilizar tecnologias que pareçam inovadoras ainda é em geral desproporcional ao cuidado tomado para controlar seus impactos.”

“Como vemos na história da IA, o caminho seguido pela tecnologia depende, principalmente, de como as gestões pública e privada protagonizam essa temática”, coloca Nunes. “É possível, sim, colocar tecnologias para operarem em favor do bem-estar e da experiência das pessoas, mas precisamos de mais responsabilidade para garantir isso.”

O trabalho foi orientado pela professora Sandra Ribeiro Patrício, coordenadora do Laboratório de Estudos em Psicologia Social e Mundo Contemporâneo: Paradigmas & Estratégias (Lapsi) do IP, e está disponível no portal de teses e dissertações da USP.

Mais informações: e-mail lj.diasnunes@gmail.com, com Luiz Joaquim Dias de Lima Nunes


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