Fotomontagem com imagens de YouTube e CityPNG por Adrielly Kilryann/Jornal da USP

Em Paris, matemática do cérebro vai entrar em campo com Centro de Pesquisa NeuroMat

Evento internacional apresentará pesquisas do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática sobre modelos matemáticos que descrevem o funcionamento do cérebro; um dos estudos deu origem ao “O Jogo do Goleiro”, videogame usado para auxiliar avaliação clínica da doença de Parkinson

 19/10/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 24/10/2022 as 12:24

Texto: Júlio Bernardes

Arte: Adrielly Kilryann

Um grande evento em Paris (França) apresentará os resultados de uma década de pesquisas sobre a matemática do cérebro realizadas pelo Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (Cepid NeuroMat). O programa temático Random Processes in the Brain: from experimental data to Math and back (em inglês, Processos aleatórios no cérebro: dos dados experimentais para a matemática e de volta) acontecerá de 27 de fevereiro a 7 de abril de 2023, no Institut Henri Poincaré (IHP) da Universidade de Sorbonne. Sediado no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, desde 2013, o Cepid NeuroMat elabora modelos matemáticos para o funcionamento do cérebro, reunindo pesquisadores de instituições brasileiras e do exterior, sendo um dos Cepids apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O programa temático se organizará em torno dos dois eixos principais de pesquisa do Cepid NeuroMat. O primeiro é a modelagem do aprendizado de estruturas pelo cérebro e o segundo eixo é o estudo de redes de neurônios.

A pesquisa sobre o aprendizado de estruturas pelo cérebro busca responder a uma pergunta clássica da neurobiologia, que é entender como o cérebro atribui modelos a estímulos com o objetivo de classificá-los e fazer predições, relata ao Jornal da USP o matemático Antonio Galves, professor do IME e coordenador do Cepid NeuroMat. 

“Em 1866, Hermann Von Helmholtz, físico, matemático e médico alemão, fundador da psicologia experimental, apresentou a hipótese de que o cérebro realiza o que ele chamou de ‘inferência inconsciente’. Para isso, o cérebro atribui modelos aos estímulos captados pelos sentidos, de forma a identificar suas regularidades, em meio à variabilidade que eles apresentam”, conta.

“Esse trabalho de classificação e predição é essencial à sobrevivência do ser humano. É ele que nos permite enfrentar situações perigosas, como atravessar a rua, sem sermos atropelados.

A atividade cerebral conjecturada por Von Helmholtz lembra o trabalho de um estatístico que busca identificar regularidades em dados experimentais de forma a fazer classificações e predições.

Jefferson Antonio Galves - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Antonio Galves - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A equipe do Cepid NeuroMat propôs novos protocolos e modelos matemáticos que permitissem identificar nos dados experimentais evidências estatísticas validando a conjectura de Von Helmholtz.

“Num dos protocolos propostos, voluntários eram expostos a estímulos auditivos contínuos, como, por exemplo, uma sequência de números, uma música, uma série de batidas mais fortes, mais fracas e silêncios que formam um ritmo cuja ordem possa ser prevista com alguma probabilidade de acerto”, descreve Galves.

Durante a exposição aos estímulos auditivos, sinais eletroencefalográficos eram registrados através de eletrodos fixados na cabeça do voluntário. O que a equipe de pesquisadores buscava encontrar nesses sinais era uma estrutura que pudesse ser usada para caracterizar a evolução da sequência de estímulos auditivos.

O primeiro passo consistia em modelar matematicamente a relação entre a sequência de estímulos auditivos e o sinal eletroencefalográfico registrado durante a experiência. Para isso, a equipe do NeuroMat criou um novo procedimento estatístico que permitiu identificar no sinal eletroencefalográfico as características estruturais da sequência de estímulos, descreve o professor. “Isso evidenciava que o cérebro do voluntário efetivamente identificava as regularidades estatísticas dessas sequências, confirmando assim a conjectura de Von Helmholtz.”

O protocolo experimental e o modelo matemático são descritos por Galves e por Cláudia Vargas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadores do estudo, no vídeo O Cérebro Estatístico, disponível no YouTube.

O modelo matemático desenvolvido na pesquisa serviu de ponto de partida para a elaboração do videogame O Jogo do Goleiro, usado para pesquisar evidências comportamentais da conjectura de Von Helmholtz. O jogador assume a função do goleiro em cobranças de pênaltis, precisando adivinhar e depois entender para onde o batedor vai chutar e adaptar a sua estratégia de defesa para o que considera ser a estratégia de quem cobra as penalidades. Como aplicação clínica, O Jogo do Goleiro foi usado como ferramenta auxiliar de classificação de estágios da doença de Parkinson. O jogo, disponível no site do NeuroMat, é tema de um dos episódios do podcast A Matemática do Cérebro, com os pesquisadores Maria Elisa Pimentel Piemonte e Rafael Bassi Stern.

Claudia Domingues Vargas, pesquisadora do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat) - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Cláudia Domingues Vargas - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Foto: Divulgação/NeuroMat

Círculo virtuoso

“Em resumo, temos um círculo virtuoso, onde um problema da neurobiologia motiva a criação de uma nova classe de modelos matemáticos”, observa Galves. “Esse círculo virtuoso produz simultaneamente novos modelos, novas ideias e novos avanços em neurobiologia e em matemática. E, em paralelo, esse processo pode, eventualmente, sugerir aplicações clínicas, o que leva ao surgimento de novas questões sobre o funcionamento do cérebro.”

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Em 2013, Galves e Eva Löcherbach, da Universidade de Paris 1 e membro da equipe NeuroMat, publicaram o artigo Infinite Systems of Interacting Chains with Memory of Variable Length—A Stochastic Model for Biological Neural Nets. “Nesse artigo é proposto um novo modelo matemático descrevendo a evolução temporal de uma rede de neurônios. O interesse desse modelo é que ele retrata características básicas de redes de neurônios, no quadro mais simples possível, sem detalhes excessivos. Isso permite seu estudo rigoroso, de um ponto de vista matemático”, afirma o professor. Essas características atraíram a atenção da comunidade matemática internacional, que vem publicando artigos demonstrando diversas propriedades dessa nova classe de modelos matemáticos. Assim, desde sua publicação, o artigo foi citado mais de 120 vezes, dando origem a um novo objeto de pesquisa.

O modelo introduzido por Galves e Löcherbach é um sistema aleatório com muitos componentes que interagem entre si. “Cada componente do sistema descreve os instantes sucessivos de disparos de um neurônio. Cada neurônio tem um potencial de membrana que, quanto maior for, haverá mais possibilidade dele disparar. Cada disparo de um neurônio altera, aumentando ou diminuindo, os potenciais de membrana de outros neurônios, levando ao funcionamento da rede”, explica Galves. Potencial de membrana é a diferença de potencial elétrico entre os meios intra e extracelular, nesse caso, dentro e fora dos neurônios. “Simultaneamente, cada vez que um neurônio dispara, ele reinicializa seu potencial de membrana, colocando-o num nível de repouso. Desta maneira, cada disparo de um neurônio o faz ‘esquecer’ as influências recebidas anteriormente. Assim cada neurônio tem uma dependência do passado que tem um comprimento variável. A cada disparo, o neurônio ‘esquece’ toda a história anterior da rede, precisando então de novas influências para funcionar novamente.”

Todos esses temas serão abordados no programa temático Random processes in the brain: From experimental data to Math and back (em inglês, Processos aleatórios no cérebro: dos dados experimentais para a matemática e de volta), que acontecerá no Institut Henri Poincaré (IHP) da Universidade de Sorbonne, na França, de 27 de fevereiro a 7 de abril de 2023. “A neurobiologia moderna vem se ‘afogando’ em evidências experimentais, que carecem de compreensão, exigindo um novo quadro conceitual matemático”, comenta o professor. “Nesse evento irão interagir matemáticos, cientistas da computação, estatísticos e neurobiólogos de classe mundial”, destaca. Desde março, o Cepid NeuroMat vem realizando uma série de seminários preparatórios para o evento pela internet. O projeto científico do encontro, bem como os temas dos seminários já realizados e materiais de apoio, estão disponíveis nesta página do site do Cepid. As atividades têm apoio da Fapesp e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) da USP.

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