Conceitos sociais deturpados são as principais razões para baixa adesão à doação de pele

Familiares associam extração da pele à ideia de “animalização”; em pesquisa, menos da metade das pessoas que doam múltiplos órgãos também concordaram com a doação de pele para transplante

 08/02/2024 – Publicado há 3 meses

Texto: Ivanir Ferreira
Arte: Moisés Dorado

Os enxertos são utilizados como curativos por até 14 dias em queimaduras graves e podem salvar vidas. As doações ficam armazenadas em bancos de tecido – Arte sobre imagens Pinterest/Yunaerith/Freepik

Estima-se que, em todo o mundo, mais de 180 mil pessoas morram anualmente em decorrência de queimaduras. As principais causas estão relacionadas aos acidentes domésticos com água fervendo ou líquido quente, seguidos por chama direta causada pelo uso inadequado do álcool. Em casos graves, quando as queimaduras são profundas ou têm grandes extensões, o uso de enxerto de pele de doadores falecidos pode ser a diferença entre a vida e a morte de um paciente. Apesar dessa viabilidade, é baixa a taxa de adesão de doadores desse tecido. Em uma pesquisa feita na USP, somente 42,7% das pessoas que doaram múltiplos órgãos também concordaram com a doação da pele para transplante.

“Um dos motivos para a recusa está relacionado às representações sociais que a pele tem no imaginário dos familiares, que associam a extração da pele a imagens de mutilação do ente querido, a desconfiguração de sua identidade e a sensação de dor, uma vez que a pele é repleta de terminações nervosas”, explica o professor Marcelo José dos Santos, orientador de uma pesquisa da Escola de Enfermagem (EE) da USP, cujos resultados foram publicados em um artigo na Burns no final de 2023.

Um achado inédito foi a associação da extração da pele à “ideia de animalização”, ou seja, para os familiares, o doador parecia ser equiparado a um animal do qual se extrai e se arranca a pele, o que, na visão deles poderia tirar-lhe a dignidade humana. “Esse é um dado muito importante, pois embora o doador seja tratado com respeito e dignamente e recomposto para o sepultamento, ninguém quer ter a sensação de que com o ato da doação da pele o seu familiar possa ser tratado como um bicho após a morte. O peso que esta representação tem é suficientemente forte para que alguns familiares, ainda que doem órgãos, não autorizem a extração de enxertos de pele para transplante”, diz o pesquisador.

Marcelo José dos Santos – Foto: Arquivo pessoal

“Embora muitos familiares tenham uma concepção negativa sobre o processo de extração desse tecido, a doação de pele salva vidas e funciona como um curativo biológico de pele humana”, relata Ágata Nunes Brito, uma das autoras do artigo e mestra pelo Programa de Gerenciamento em Enfermagem da EE. Segundo a pesquisadora, o transplante ou enxertia de pele é utilizado principalmente para o tratamento de grandes queimados (segundo grau profundo ou terceiro grau) e sua principal função é de atuar como curativo temporário, a fim de evitar perdas de água, diminuir a dor e induzir à reconstituição do tecido na região enxertada. “Entre outros benefícios, o procedimento minimiza o risco de infecção, que é a principal causa de morte entre os queimados”, diz.

Ágata Nunes Brito – Foto: Arquivo pessoal

Fonte: https://segurancaesaudeocupacional.wordpress.com/2014/11/14/

A pesquisa

Foram entrevistados 20 familiares (filhos, pais, mães, irmãos e/ou cônjuges dos doadores) cadastrados em um banco de dados da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do município de São Paulo, que tinham vivenciado o processo de doação de pele para transplante quando o paciente já se encontrava em situação de morte encefálica. As famílias foram contatadas entre seis meses e um ano após o falecimento do doador, sendo que metade havia consentido e outra metade tinha recusado a doação de pele para transplante. Foi solicitado a eles que refletissem sobre a imagem que tinham em relação à doação de pele, ou seja, que eles pudessem falar sobre “o processo de doação de órgãos e tecidos para transplantes”; sobre “as imagens que vinham à mente quando se falava de doação de pele”; sobre “a imagem que as pessoas tinham em relação à doação de pele”; e “como as pessoas adquiriam conhecimento sobre a doação de pele”.

Ágata Brito queria saber como as pessoas pensavam, davam sentidos e se posicionavam sobre a doação de pele. Para esse fim, utilizou a Técnica de Análise do Discurso Coletivo (DSC), baseada em uma teoria chamada Representações Sociais, que é um instrumento de análise que permite investigar concepções sociais que grupos constroem a respeito de um determinado assunto. Segundo a pesquisadora, “as representações sociais podem ser entendidas como um conjunto de ideias, conceitos e teorias do senso comum – crenças, mitos, ciência, religião – construídos a partir da interação social e que podem, ao final, afetar positiva ou negativamente as decisões das pessoas.”

Baseando-se nessa teoria, a pesquisadora verificou que, para a construção da representação da doação de pele, os familiares recorriam a imagens que estavam ligadas à figura do cirurgião, à ação da extração, à aparência imaginada do doador após a retirada do tecido e os sentimentos que surgiram ao refletir especificamente sobre a doação desse tecido. “Esses elementos são como peças de um quebra-cabeça que juntos constroem a imagem do objeto, ou seja, a representação social da doação de pele”, relata.

Analisando os dados, a pesquisadora verificou que tanto as famílias que permitiram a doação quanto as que não permitiram tinham representações antagônicas sobre a doação de pele. Porém, as que concordaram com a doação deram mais ênfase e fizeram mais referências às representações positivas e tiveram maior foco no receptor do tecido. Por outro lado, os familiares que não autorizaram a doação destacaram em maior medida as representações negativas e mantiveram o olhar para o corpo do doador.

Razões para a recusa da doação de pele para transplante

Para esse grupo familiar, o tecido da pele estava associado à essência, às características e à aparência da pessoa. A doação foi associada à mutilação e ao desmantelamento do indivíduo. Eles remetiam o cirurgião que realizava a extração de enxertos à figura de um açougueiro, uma pessoa que matava animais e vendia a carne, relata o estudo. Eles também acreditavam que a doação iria apenas ajudar, mas não salvaria vidas.

“Eles sentiam pena do falecido e tinham a sensação de que estavam machucando e prejudicando o falecido.”

“Era como se estivessem tratando a pessoa como animal, do qual se tira toda a pele para vestir outra pessoa.”

Eles tinham a visão de que a pele era uma capa, uma proteção, um cartão de visita que incluía a aparência, a vaidade, o elemento tátil da pessoa, o sentimento e o toque. Era difícil dissociar esses aspectos, mesmo sabendo que a pessoa não estava mais viva.”

“Eles viam a extração da pele como algo invasivo, de retirada das características e da essência da pessoa, como se fosse tirar o ‘ser’.” 

“Eles visualizavam imagens de livros de anatomia humana, todas vermelhas, mostrando os nervos.”

“A pele pertencia ao falecido e sua extração era como uma invasão de privacidade, como se estivesse sendo corrompida, da mesma forma que um menino tira a virgindade de uma menina à força, sem o seu consentimento.”

“A doação de pele também trazia a imagem de mutilação, de rasgar a pele, de dissecar, de escalpelar, de deixar tudo exposto, em carne viva; rasgar, triturar, desmontar, desfigurar; deixar cicatriz, de suturas, de um monstro, de uma múmia, toda enfaixada ou uma caveira, uma imagem horrível e feia no caixão.”

Já os familiares que permitiram a doação da pele, embora associassem a doação à desfiguração do corpo, não consideraram que a pele representa a identidade da pessoa. “Essa dissonância parece estar relacionada à doação ou recusa da extração de pele”, diz a pesquisadora.

“Embora achassem que a responsabilidade de decidir fazer a doação do tecido fosse grande, eles consideravam que seu parente não mais sentia nada, e que, talvez, partes de seu corpo seriam retiradas na necropsia e que, finalmente, o corpo se decomporia.”

“Pensavam também que, com a doação, a essência da pessoa continuaria a mesma e que possivelmente poderia se evitar que outras famílias passassem pela mesma dor de perder alguém.”

“Eles sentiam que uma parte da pessoa estaria vivendo em outras pessoas. Por fim, eles autorizaram tudo que fosse possível, sem se preocupar com quais órgãos e/ou tecidos seriam doados.”

Segundo a pesquisadora, conhecer as representações sociais que estão no imaginário dos familiares fornece informações consistentes para subsidiar a elaboração e a implementação de políticas públicas e campanhas educativas direcionadas aos profissionais de saúde e à população, com o intuito de aumentar o número de doadores de pele de falecidos para transplante.

Além disso, Ágata Brito recomenda que a entrevista familiar seja adaptada com a finalidade de otimizar a doação de pele, informando-lhes sobre sua importância e possibilidades. “Dizer que o tecido pode salvar vidas, que a extração não altera a aparência do doador e não causa dor, além de esclarecer que o doador será tratado com dignidade e respeito pelos profissionais durante todo o processo da doação.”

Como é feita a captação do tecido

A pesquisadora diz que a pele transplantada serve temporariamente (em média 14 dias) como a própria pele do paciente, retirando-o da fase crítica da queimadura ou traumatismo.

No processo de captação do tecido, são retiradas lâminas superficiais da pele das pernas, braços e do dorso. Ao final do processo, a área é enfaixada e preservada a aparência do doador. As doações ficam armazenadas em bancos de tecido, responsáveis pela captação, preparo e distribuição das peles doadas.

“O familiar precisa saber que o corpo do doador será tratado com dignidade e respeito pelos profissionais de saúde.”

A pesquisa resultou na dissertação de mestrado Representação social da doação de pele para transplante, orientada pelo coordenador científico da Liga Acadêmica de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (LADOTT) e professor Marcelo José dos Santos, da EE, e  na publicação do artigo Skin donation for transplantation: social representations of Family members who (do not) give consente for collection, publicado na Burns, com a colaboração de Rafael Rodrigo da Silva Pimentel, doutorando do Programa de Gerenciamento em EE, orientado pelo professor Marcelo José dos Santos.

Mais informações: e-mail agatanbrito@gmail.com, com Agata Nunes Brito; e-mail mjosan1975@usp.br, com Marcelo José dos Santos; e-mail rafaelpimentel@usp.br, com Rafael Rodrigo da Silva Pimentel.