Um artigo da revista Psicologia USP discute um tema que quase sempre aparece nas famílias que têm filhos adotados. Partindo do chamado mito da origem, o texto aborda os questionamentos comuns dos filhos para os pais que fizeram a adoção: “onde nasci?” e “quem são meus pais?”, um assunto que muitas vezes é permeado de segredos. O estudo qualitativo que originou o artigo foi realizado por pesquisadoras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), a partir de entrevistas com dez jovens cariocas das classes média e alta. O objetivo foi gerar novos elementos para compreender como se dá a vivência de pais adotivos em relação à parentalidade e à filiação no período da adolescência de seus filhos. Entre outras reflexões, as psicólogas indicam os benefícios da construção da própria história por parte desses filhos e destacam a necessidade de que a elaboração do sofrimento seja feita em família.
O mito da origem
Não admitir para si mesmo o desejo de conhecer os pais biológicos desperta ansiedades, dificuldades de relacionamento e medos – de si mesmo, do desconhecido, de enfrentar uma realidade que pode ser melhor ou pior do que imaginávamos. Uma das saídas é a construção do mito de origem, que tem a função de tentar solucionar enigmas. Tal tentativa é manifestada por meio da curiosidade infantil sobre o nascimento dos bebês e reatualizada no desenvolvimento da sexualidade. Por isso tudo, “a sensibilidade dos pais em reconhecer os questionamentos dos filhos apresentou-se como um fator promotor de saúde emocional familiar“. Hoje, a família é definida não só pelos laços biológicos, mas, principalmente, composta por pessoas unidas por vínculo afetivo. Neste caso, por meio da adoção, que não deve ser mais concebida como um desvio à normalidade da filiação biológica.
As autoras citam o mito de Édipo, explicando que “o homem sente desamparo diante da sua incompletude, que Freud chamará de castração, da qual ele nunca se liberta”. Para o filho, decifrar seu lugar na vida dos pais adotivos e conhecer sua história antecedente compõem a trama de enigmas dos laços de parentesco na adoção, ajudando pais e filhos a aceitarem que o mistério e o insondável fazem parte do processo de ser filho. “Como foi o encontro com a nova família? Onde os pais o encontraram?” são questões que os filhos adotivos lançam para esses pais, e a resposta é uma forma de confirmar e legitimar a história familiar.
Essa história deve ser conversada, criando-se um enredo sem pretensão de terminá-lo – eis a chave do enigma, o qual, paradoxalmente, segundo as autoras, nunca será decifrado em sua completude. Os pais que adotam precisam ter a sensibilidade de entender a necessidade emocional de a criança/adolescente buscar a verdade de sua origem, pois os mesmos lidam com um duplo pertencimento: “entre o passado e o futuro, entre o sujeito e o grupo familiar, entre a filiação biológica e a adotiva”. As entrevistas demonstraram que no mito de origem dessas famílias adotivas trata-se de coexistirem “dois casais parentais que fazem nascer a criança, um par no nível biológico e outro no nível subjetivo da existência“. O artigo salienta a importância de cada um dos filhos adotivos elaborar sua história e construir o seu mito de origem.
O silêncio dos filhos adotivos na adolescência pode representar a dificuldade em lidar com o aspecto de “ser diferente”. Portanto, aos pais cabe escutar, pois a elaboração do sofrimento em família parece fortalecer o senso de pertencimento familiar e o laço de parentesco: “quem é meu filho?”, “por que ele é assim?” ou “que mãe ou pai sou eu?”.
O papel dos profissionais de saúde
A dupla filiação e as experiências emocionais dolorosas dos filhos adotivos levaram os pais a buscarem dos profissionais de saúde respostas para os “por quês?” Porém, perguntam as autoras: “Em que medida esse desejo de saneamento vem carregado de intolerância, podendo propiciar uma dissociação da história da criança adotiva?“. Destaca-se a tarefa parental fundamental de identificar e dar significado às demandas dos filhos relacionadas ao mito de origem, escutando-os, compreendendo-os e apoiando-os. Por fim, deve-se conceber que nem todas as dificuldades do filho adotivo podem estar relacionadas ao ato da privação biológica e ao ato da adoção, pois não se pode rotular como patológicas ou mesmo banalizar essas questões.
Artigo
MACHADO, R.; FÉRES-CARNEIRO, T.; MAGALHÃES, A.; MELLO, R. O mito de origem em famílias adotivas. Psicologia USP, São Paulo, n. 30, e160102, 2019. ISSN: 10.1590. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-6564e160102. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/161337. Acesso em: 03/02/2020.
Rebeca Nonato Machado – Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: recanm@gmail.com
Terezinha Féres-Carneiro – Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: teferca@puc-rio.br
Andrea Magalhães – Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: andreasm@puc-rio.br
Renata Mello – Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.
Margareth Artur / Portal de Revistas USP / Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica (Aguia)
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