Lei dá margem para rescisão unilateral em planos de saúde coletivos

Para especialista, Justiça tem agido em casos pontuais, mas Lei dos Planos de Saúde precisa ser atualizada

 Publicado: 26/06/2024
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Distinção entre planos individuais e coletivos na regulamentação brasileira também abrange cancelamentos – Foto: Freepik
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Atualmente mais de 82% dos planos de saúde no Brasil são contratados em modalidades coletivas (planos empresariais e por adesão), segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo Andrea Zanetti, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, essa modalidade dá brechas para cancelamentos unilaterais, problema que tem chamado atenção em todo o País, e é necessário que a Lei dos Planos de Saúde seja atualizada. 

Especialista em Direito Privado, Andrea explica que a regulamentação brasileira distingue contratos entre planos individuais ou familiares e os coletivos. “A Lei de Plano de Saúde expressamente proíbe a modalidade individual de cancelamento sem motivo, enquanto não há a mesma determinação clara para os coletivos”, afirma. Segundo ela, isso ocorre porque os contratos coletivos são renovados anualmente, permitindo que a empresa possa cancelar unilateralmente no momento da renovação, desde que respeite o prazo de vigência do contrato e notifique os clientes com antecedência de 30 a 60 dias.

Independentemente de uma empresa estar envolvida, ressalta Andrea, a cobertura de saúde impacta diretamente a vida e a saúde das pessoas, que podem ficar sem cobertura em momentos de extrema vulnerabilidade. Nesses casos, frequentemente relacionados a doenças graves, preexistentes ou em estado terminal, os tribunais têm concedido tutelas de urgência para “manter a cobertura dos procedimentos ou eventos de saúde específicos”, afirma, reconhecendo o cancelamento como uma ruptura abusiva que contraria a finalidade do contrato.

Andrea Zanetti – Foto: Arquivo Pessoal

Contudo, Andrea diz que soluções provisórias não são suficientes. “É necessário atualizar a Lei dos Planos de Saúde de modo geral, estabelecendo princípios específicos desse microssistema e uma discussão mais estruturada sobre o plano de saúde de longo prazo, ou vitalício, e isso só será possível com amplo debate, incluindo a presença de interessados e especialistas no tema.”  

Empresas têm menos proteção

Com essa regulamentação mais branda para as modalidades coletivas, a especialista, que tem contratos privados de assistência à saúde como objeto de pesquisa há mais de uma década, também chama a atenção para a indução de consumidores ao Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) para contratar esses planos, configurando um “falso coletivo”, uma prática considerada abusiva e que “visa a retirar da pessoa a proteção que a própria Lei dos Planos de Saúde daria à ela”, se fosse contratado o plano individual, por exemplo. 

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A prática vem sendo rechaçada nos tribunais, segundo Andrea, com decisões do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) favoráveis aos clientes até mesmo em planos de saúde empresariais com até 30 vidas. “Essa prática, ao final, fere a boa-fé objetiva e está divorciada, ou seja, é contrária à própria finalidade econômica e social da lei de plano de saúde, por isso deve ser combatida.” 

Até recentemente, as resoluções da ANS permitiam esse tipo de cancelamento, de acordo com a especialista, exigindo apenas uma cláusula expressa no contrato, mas em 2023 a prática foi limitada aos contratos empresariais de MEIs. “O cancelamento unilateral até pode ser possível, mas deve ser a partir de uma motivação idônea”, um conceito que também não é bem explicado, segundo Andrea, e que “provavelmente vai gerar mais discussão judicial.” 

Quando se trata realmente de um plano de saúde empresarial, os tribunais “têm exigido a presença de cláusula expressa no contrato, a prova do recebimento da notificação, o respeito à vigência do contrato e o prazo de aviso prévio”, inclusive com o oferecimento de plano individual sem carência conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (Consu) 19/1999. Além disso, a portabilidade das carências para o novo plano deve ser possibilitada, conforme a Resolução Normativa da ANS 561 de 2022, complementa Andrea.

Clientes atentos

Segundo a pesquisadora, a solução não reside em critérios quantitativos, como o número de beneficiários, mas em critérios qualitativos. Ela argumenta que “a saúde pode ser explorada pela iniciativa privada, mas é um setor de interesse do Estado e essas características são comuns tanto para a modalidade individual ou familiar quanto na coletiva”, e, dessa forma, mesmo nos planos empresariais, os contratos preservam uma natureza social e existencial comparável aos planos individuais ou familiares. 

Em comparação com países como Portugal, Chile e Alemanha, Andrea aponta que, no Brasil, acredita-se que a presença de uma empresa contratante cria uma igualdade de negociação com a operadora de saúde. No entanto, na prática, muitas micros e pequenas empresas brasileiras não têm poder de negociação, impedindo “a possibilidade de negociar as cláusulas”. 

Para se proteger, a professora aconselha que os consumidores verifiquem a modalidade do contrato antes da assinatura e busquem esclarecimentos detalhados sobre reajustes e cancelamentos. “O plano que melhor oferece proteção para o consumidor no momento, em nossa compreensão, é o plano individual ou familiar, isso não significa, necessariamente, que serão mais baratos”, observa.

* Estagiário sob supervisão de Ferraz Júnior e Rose Talamone


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