A fascinante jornada musical de Bach: uma análise das obras sacras para órgãos de tubos

Por Sérgio Carvalho, pianista do Coral da USP

 Publicado: 06/06/2024
Sérgio Carvalho – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Podemos dividir a obra bachiana para órgão de tubos em dois tipos: as obras profanas, como prelúdios, fantasias, tocatas, concertos, sonatas, de inspiração livre, e as obras sacras, inspiradas nos corais, ou hinos, de origem luterana. Nesta série de artigos focalizaremos as obras sacras.

Martinho Lutero (1483-1546) e Paul Speratus (1484-1551) compuseram um hinário, contendo oito hinos, em 1524. Atualmente, o hinário luterano contém 547 hinos, coletados através dos séculos, e que abarcam todas as festas e comemorações do ano litúrgico. São melodias de fácil entoação e sua origem é múltipla, desde o canto gregoriano católico até o canto popular.

Estas melodias podem ser escritas em notas longas, o cantus firmus: sobre esta base, foi possível desenvolver uma escrita que entrelaça várias linhas melódicas, ou vozes. Estes processos combinatórios de vozes, que se resumem no termo “contraponto”, foram sistematizados por Johann Joseph Fux (1660-1741) em sua obra Gradus ad Parnasum. A Fuga é a forma mais elaborada do contraponto, e está presente em toda a música de Bach; sua última composição, Die Kunst der Fuge (A Arte da Fuga), é a mais alta expressão do contraponto.

A melodia coral, ou simplesmente, o coral, foi base para a obra, tanto vocal como organística, de inúmeros compositores germânicos. As obras para órgão escritas sobre a melodia coral chamam-se genericamente Prelúdios Corais, ou Arranjos corais (Choralbearbeitungen), e fazem parte da liturgia luterana.

Karl Geiringer fez uma interessante periodização da obra de Bach, ligada às cidades em que Bach viveu, atuando de diversas maneiras: como menino cantor, violinista, organista, mestre de capela e, finalmente, Kantor na cidade de Leipzig, ou seja, diretor da vida musical nas três principais igrejas e professor na Escola de São Tomás. Relacionaremos as principais obras sacras para órgão – que somam mais de três centenas – de acordo com esta periodização. As obras de Bach foram catalogadas por Wolfgang Schmieder em 1950, no seu Índice das Obras de Bach (Bach Werke Verzeichnis – BWV).

Primeiro período: Lüneburg (1700-1703),  Arnstadt (1703-1707) e Mülhausen (1707-1708).

Encontramos aí três formas de arranjo coral: a partita coral, a fantasia coral e o arranjo coral de cantus firmus.

a) Das seis Partite diverse – não confundir com as seis partitas para cravo, que são suítes de danças – citamos a mais importante delas, Jesu gütig, sei gegrüsset BWV 768 (Jesus bondoso, saudamos-te). Inicia com o coral harmonizado a quatro vozes, seguido por onze movimentos, cada um denominado partita, cujo fio condutor é a melodia coral. Cada partita contrasta significativamente com outra, pelas mudanças de ritmo, tempo e textura, que é a quantidade e disposição das vozes. O último movimento é o coral acompanhado com figurações a cinco vozes em organo pleno, o que significa que todos os tubos do órgão devem ser acionados. A partita coral foi muito cultivada por autores como Georg Böhm (1661-1733) e Johann Bernard Bach (1676-1749).

b) A fantasia coral, como o nome indica, é uma forma muito livre, quase improvisada. Como exemplo, a fantasia sobre Christ lag in Todesbanden BWV 718 (Cristo deitava nos laços da morte), cujo modelo pode ser encontrado numa fantasia de Georg Böhm com o mesmo tema. Cada frase do coral é tratada de modo diferente: as duas primeiras linhas têm um tratamento ornamentado, a terceira linha é um breve fugato, ou seja, com imitações, a quarta linha apresenta um movimento de Giga, que é uma dança ternária, bastante empregada por Dietrich Buxtehude (1637-1707), com quem Bach conviveu por alguns meses, em Lübeck, entre 1705 e 1706; a quinta linha utiliza efeitos de eco, muito utilizado pelos compositores barrocos, como, por exemplo,  Franz Tunder (1614-1670), aliás, sogro de Buxtehude.

c) Como arranjo coral do cantus firmus, podemos citar Wo soll ich fliehen hin BWV 694 (Para onde devo fugir), em que a melodia coral está escrita em notas longas na pedaleira.  Foi uma forma muito cultivada, por exemplo, por Johann Pachelbel (1653-1706), professor do irmão mais velho de Bach, Johann Christoph Bach (1671-1721), irmão que o acolheu em Ohrdhuf, de 1695 a 1700, com a orfandade de Bach.

No próximo artigo abordaremos o segundo período criativo de Bach, passado em Weimar.

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