Vírus são os únicos organismos acelulares da Terra. São seres muito simples e pequenos (medem menos de 0,2 µm), formados basicamente por uma cápsula proteica envolvendo o material genético, que, dependendo do tipo de vírus, pode ser o DNA, RNA ou os dois juntos (citomegalovírus). Essas características não os impedem, no entanto, de poderem ser, muito perigosos. Em algumas situações, assustadores — como é o caso agora da pandemia de coronavírus, ou covid-19, que colocou o mundo inteiro em alerta. O anúncio feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) apenas concretizou o que o mundo inteiro já sabia: a situação é muito séria. São quase 130 mil casos em 118 países e territórios, com cerca de 4.300 mortes. Esse quadro extremo exigiu atitudes extremas: eventos esportivos e culturais foram suspensos ou cancelados, e governantes mundo afora buscam soluções para barrar o avanço do mal, aglomerações sendo descartadas e autoquarentena sendo uma opção para muitos, como para o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, ou para o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau. A Itália radicalizou: o país inteiro foi colocado em quarentena na tentativa de bloquear o crescimento impressionante do número de infectados — são mais de 12 mil casos, com mais de 1 mil mortes.
Todas as tentativas de lidar com o novo coronavírus representam, de várias formas, a ideia de criar barreiras contra um problema que se alastra de forma exponencial. O Brasil, por exemplo, está tendo, a partir do Ministério da Saúde, uma atitude ponderada e assertiva, por mais que alguns tenham achado que tudo não passava de “fantasia”. Não é. Diante desse quadro, talvez a ação mais extrema tenha sido do presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que até poucos dias atrás negava que o coronavírus fosse uma ameaça e, da noite para o dia, mudou radicalmente de opinião: na sexta-feira, dia 13, ele decretou estado de emergência nacional, com a liberação de 50 bilhões de dólares apara estados e territórios. Os Estados Unidos têm, oficialmente, mais de 1.800 casos, com mais de uma dezena de mortos.
Dois dias antes — e o que chamou muito a atenção da comunidade internacional –, ele determinou que, a partir do dia 13 e por trinta dias, nenhum voo proveniente da Europa poderá pousar em solo americano. Melhor dizendo: nenhum voo proveniente de países-membros da União Europeia, já que o Reino Unido e — inexplicavelmente — a Irlanda, que já anunciou o fechamento de creches, escolas e universidades, estão fora do embargo trumpista. Segundo o presidente, a conduta dos países europeus — principalmente Espanha e Itália — não foram as mais apropriadas para combater o mal, daí sua decisão. Tão afeito a muros, Donald Trump criou mais um, metafórico, mas sólido e inquietante.
“A decisão, diante do Direito Internacional, não é ilegal, mas tem a ver com vários componentes e tem um contexto mais amplo”, afirma o professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP e colunista da Rádio USP Alberto do Amaral. “Tem a ver com o fato de Trump e a União Europeia terem visões diferentes das relações internacionais, com o presidente americano valorizando os estados-nações, as fronteiras nacionais. Enquanto o presidente americano tem uma ideia ultranacionalista, maior que os interesses internacionais, a União Europeia é uma organização internacional, supranacional, na qual predominam a circulação de pessoas e o multilateralismo”, esclarece Amaral. A muralha trumpista é muito mais extensa e abrangente do que simplesmente impedir carimbos de entrada na imigração americana.
“Trata-se de uma ação discriminatória e uma tentativa para contribuir com o enfraquecimento da União Europeia em um mundo multipolarizado. Além dessas diferenças, há a clara intenção de privilegiar um aliado tradicional da política americana, que é o Reino Unido. Isso, mesmo que o governo conservador britânico tendo desmantelado o sistema de saúde”, garante o professor. O Reino Unido, oficialmente, tem cerca de 600 infectados e 10 mortes, mas o consultor científico do primeiro-ministro Boris Johnson, Patrick Vallance, estima que esse número seja de 10 a 20 vezes maior.
Clima de guerra
Já o professor Pedro Dallari, do Instituto de Relações Internacionais da USP e também colunista da Rádio USP, vê outras intenções na ação de Donald Trump, apesar de concordar que o bloqueio a voos europeus seja, claramente, “um ato de hostilidade contra a União Europeia e sem critério”. “Este extremismo de Trump nos leva à conclusão óbvia de que esta atitude é de evidente intenção em associar sua imagem à de um líder”, afirma Dallari. E explica: “Na tradição americana, nunca um líder do país perdeu uma reeleição quando os Estados Unidos estavam em guerra. E Trump quer construir um cenário de guerra — mesmo que seja contra uma doença — justamente em um ano eleitoral. Para o eleitorado dele, essa imagem de líder acaba colando, por mais que, em vez de trabalhar com a lógica da razão, ele prefira trabalhar com o unilateralismo, criando uma situação de muito desgaste”.
A ação “extremada” do presidente norte-americano acaba por fazer eco com muitas intenções que podem ser vistas por parte de ultranacionalistas europeus, aqueles — como na Hungria –, que desejam ver as fronteiras da União Europeia fechadas e a livre circulação de pessoas limitada, descartando o Tratado de Schengen. O coronavírus, com seu potencial tentacular e abrangente, acaba por colaborar com o discurso oportunista, por mais que a tendência na Europa, de forma geral, seja de cooperação e de políticas públicas comuns de saúde. “Do ponto de vista das relações internacionais, tudo isso é muito grave”, afirma Dallari.
Ainda que Donald Trump tenha agido contra o coronavírus com aparente rigidez, o que fica, talvez, seja a forma um tanto errática como ele conduziu a situação até barrar os voos europeus e abrir os cofres para a emergência nacional: ao negar inicialmente a relevância do mal e protelar qualquer ação governamental, ele deixou a população à deriva. Ao dizer que a doença vinha de um vírus “estrangeiro”, ele negou o seu alcance e, mais uma vez, tentou dizer que o inferno são os outros. Nada disso. Até porque, como lembrou muito bem o presidente francês Emmanuel Macron em discurso recente, “vírus não tem passaporte”. E nem respeita fronteiras.