O papel das universidades no combate à desinformação

Sétima reportagem de série especial do Jornal da USP analisa como as instituições de ensino e pesquisa poderiam (e deveriam) atuar de forma mais intensa contra a propagação de informações falsas na internet

 27/10/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 17/11/2023 às 18:11

Texto: Herton Escobar
Ilustração: Paula Villar
Arte: Jornal da USP

Ilustração: Paula Villar

O biólogo Atila Iamarino tinha uma decisão importante a tomar no fim de 2016: aceitar um convite para retornar aos Estados Unidos, onde fizera parte de seu pós-doutorado, e seguir investindo na carreira de pesquisador acadêmico; ou permanecer no Brasil e abraçar de vez o desafio de fazer divulgação científica nas redes sociais, como já vinha fazendo desde 2013 no canal Nerdologia, no YouTube — que àquela altura já tinha mais de um milhão de assinantes. Optou pelo segundo caminho, porque queria “continuar falando com as pessoas”, e logo consolidou seu lugar como a voz mais influente da divulgação científica na internet brasileira.

Na maior parte do tempo, era um trabalho divertido, que misturava pesquisas acadêmicas com cultura pop para explicar descobertas fantásticas e conceitos complexos da ciência para o público leigo na internet. Até que a covid-19 apareceu, trazendo com ela uma pandemia de medo, mortes e desinformação.

Graduado em biologia e doutor em microbiologia pela USP, Iamarino logo reconheceu a ameaça que o novo vírus representava. Seu pós-doutorado, concluído em 2015, fora justamente sobre a evolução genética de vírus e a maneira como esses organismos se espalham numa população. Em 20 de março de 2020, três semanas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil, ele decidiu fazer uma live no seu canal pessoal do YouTube, alertando sobre os perigos da pandemia e o grande número de mortes que ela poderia causar. “O País não tem como parar, mas a circulação de pessoas precisa parar”, afirma ele, no vídeo. “A nossa vida já, a partir de agora, não é mais a mesma.”

O vídeo viralizou muito mais do que Iamarino esperava, ultrapassando cinco milhões de visualizações em uma semana. O número de inscritos no seu canal pessoal saltou de 150 mil para mais de um milhão. Dez dias depois da live, Iamarino trocou o microfone da sua casa pela cadeira giratória do Roda Viva, na TV Cultura, um dos programas de entrevista de maior prestígio da televisão brasileira. A entrevista também viralizou, ultrapassando um milhão de visualizações no YouTube em menos de 24 horas e tornando-se um dos programas de maior audiência do Roda Viva na internet (com 5,8 milhões de reproduções). De garoto-propaganda da divulgação científica na internet, Iamarino, então com 36 anos, foi alçado ao status de autoridade científica da pandemia — um protagonismo que ele “não estava preparado para ter, não esperava ter, e não gostaria de ter”, nas palavras do próprio biólogo.

Cena da live do divulgador Atila Iamarino no YouTube, que viralizou no início da pandemia - Imagem: Reprodução/YouTube/Atila Iamarino

“Foi aterrorizante”, lembra Iamarino, em entrevista ao Jornal da USP. A expectativa inicial com a live, segundo ele, era falar com um número muito menor de pessoas (seu público habitual no YouTube), sem qualquer pretensão de servir como referência para a tomada de decisões por parte do poder público ou das autoridades sanitárias. Mas “foi o que acabou acontecendo”, segundo ele, em função de um grande “vácuo de informações” que existia naquele momento. “Tirando a imprensa, não tinha quem falasse sobre o que estava acontecendo.”

Quem deveria cumprir esse papel de referência científica numa pandemia, segundo Iamarino, eram as autoridades sanitárias e as instituições públicas de pesquisa — o que acabou não acontecendo em grande escala no Brasil, segundo ele, em função do negacionismo do governo federal e da falta de empenho na comunicação por parte das instituições de pesquisa. As universidades públicas foram vitais para o enfrentamento da pandemia, diz ele, produzindo conhecimento, gerando dados e desenvolvendo tecnologias que ajudaram a salvar vidas e combater o vírus; mas deixaram a desejar na comunicação com a sociedade e no combate à desinformação. “As universidades precisam entender a comunicação e a divulgação nos meios digitais como algo fundamental na atividade delas”, aponta Iamarino. “Tão importante quanto publicação acadêmica, formação de alunos e outras prioridades.”

Iamarino não está sozinho nessa avaliação. Várias fontes ouvidas para esta série de reportagens do Jornal da USP (veja o índice ao final deste texto) cobraram uma atuação mais enérgica e mais estruturada das universidades na promoção da divulgação científica e no combate à desinformação. Ao longo da pandemia, muitos pesquisadores se alistaram voluntariamente nesse front de comunicação digital, divulgando estudos, esclarecendo dúvidas e desconstruindo mentiras por conta própria nas redes sociais, ou por meio de entrevistas à imprensa. Mas foram poucas as iniciativas de caráter institucional.

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“A maioria das ações partiu de professores e alunos, não das universidades em si”, avalia a comunicadora Laura Marise de Freitas, do grupo Nunca vi 1 cientista, que trabalha com divulgação científica nas redes sociais. “Dentro do que eu vi, por parte das três universidades estaduais paulistas, não houve nada a altura do que a gente esperaria de instituições desse porte.”

Assim como Iamarino, Freitas começou a fazer divulgação científica como hobby, na pós-graduação, e acabou virando comunicadora profissional. Graduou-se em Farmácia-Bioquímica pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), fez mestrado e doutorado em Biociências e Biotecnologia na mesma instituição, e fechou o pacote com um pós-doutorado no Instituto de Química (IQ) da USP, de 2018 a 2021. Desde então, desembarcou da carreira acadêmica e passou a fazer divulgação científica em tempo integral ao lado da bióloga Ana Cláudia Bonassa, que também fez pós-doutorado no IQ-USP.

A fagulha que despertou seu interesse pela divulgação científica foi gerada no mestrado, em 2013, quando Freitas atuou como voluntária num projeto social de assistência à saúde de gestantes chamado Bebê a Bordo, em Araraquara, no interior paulista. “Lá eu comecei a perceber que precisava aprender a conversar com as pessoas; que não dava para eu falar com elas da mesma forma que eu falava na faculdade”, relembra ela. No doutorado, em 2018, Freitas participou do FameLab, uma competição internacional de divulgação científica, onde conheceu Bonassa e recebeu o treinamento que precisava para montar o projeto que deu origem ao Nunca vi 1 cientista. 

A comunicação, segundo ela, é uma ferramenta fundamental para derrubar os muros que separam o universo acadêmico da sociedade e, por consequência, levantar muralhas contra o avanço da desinformação — notícias falsas, pseudociências, falsas curas, teorias da conspiração e outras falácias do tipo. “Ter uma proximidade maior das universidades com a população também é importante para combater esse tipo de conteúdo, porque você começa a criar pequenos ecossistemas de pessoas informadas, que ajudam a barrar o espalhamento da desinformação”, avalia Freitas. “Sinto que falta muito essa proximidade, ainda. Eu vejo algumas faculdades fazendo projetos de extensão, mas que acabam sendo mais voltados para gerar pontos no currículo do que, realmente, criar essa comunidade com as pessoas de fora da academia.”

Construir esse tipo de comunidade extramuros é algo que leva tempo e que exige muita expertise sobre o funcionamento das diferentes plataformas digitais, ressalta Iamarino. Não é um vínculo que se constrói do dia para noite nem de forma passiva, simplesmente se colocando à disposição da imprensa ou disponibilizando informações on-line, na esperança de que as pessoas encontrem e consumam esse conteúdo por conta própria. “As instituições precisam entender que o papel delas nessas novas mídias tem que ser muito mais ativo do que era anteriormente”, diz Iamarino. Diferentemente do que ocorre com as mídias tradicionais (TVs, rádios e jornais), que procuram fontes na universidade para serem entrevistadas, “nas redes sociais é você quem tem que procurar o público ativamente”, completa ele. “A régua (do sucesso) não é ter docentes fazendo iniciativas legais de divulgação e produzindo material para o público. Isso é o mínimo que a gente tem que fazer. A régua deveria ser ter uma máquina de informação tão grande quanto a da desinformação.”

“A gente não pode entender o combate à desinformação como um trabalho voluntário, que é o que a gente tem feito”, diz a professora Ana Arnt, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formada em Biologia, com mestrado e doutorado em Educação, ela coordena desde 2018 o Blogs de Ciência da Unicamp, uma plataforma de divulgação científica para alunos e professores da instituição, criada em 2015. Durante a pandemia, o projeto publicou mais de 300 textos e mais de 500 peças (fios, vídeos, carrosséis) sobre a covid-19 para divulgação em redes sociais, além de outras iniciativas.

Incentivar a divulgação científica é uma necessidade básica, ressalta Arnt, mas que está longe de ser suficiente para combater a desinformação que se espalha em escala industrial pela sociedade. Segundo ela, as universidades precisam investir de forma muito mais consistente e perene, não só em projetos de divulgação como na formação de comunicadores e na pesquisa científica sobre desinformação.

Gif de injeção de conhecimento contra as fake news - Vídeo: Reprodução/Marcos Muller/Todos pelas Vacinas

“A divulgação científica é um paliativo. Tu não vais combater a desinformação sem compreender, efetivamente, como funcionam os algoritmos, como a desinformação se espalha, quem está financiando essa desinformação”, destaca a pesquisadora, que também foi uma das organizadoras da iniciativa Todos pelas Vacinas, que teve grande repercussão nas redes sociais durante a pandemia. “É óbvio que eu vou continuar produzindo conteúdo de divulgação científica; mas o que a gente está fazendo é apagar incêndio com paninho molhado.” 

“Não adianta aumentar o número de pessoas fazendo divulgação científica se a gente não cuidar também dessas outras questões”, reforça Freitas. A quantidade de desinformação circulando nas redes é tão grande que a maior parte do conteúdo que ela e Bonassa produzem é para desconstruir mentiras que, se deixadas de lado, podem colocar em risco a saúde das pessoas. “Eu queria não ter esse conteúdo para ter que desmentir; acho que esse é o pronto principal.”

Enquanto redes profissionais de desinformação gastam (e ganham) cifras volumosas com o impulsionamento de canais e a propagação de conteúdos mentirosos na internet, pesquisadores dependem de editais de pequeno porte para financiar pesquisas e projetos capazes de fazer frente a esse fenômeno. “Não se combate desinformação com 10 mil, 20 mil reais no bolso, entende? Os editais têm que ter valores que possibilitem o funcionamento de projetos de médio e longo prazo”, aponta Arnt.

Ponto positivo: desde o início da pandemia, a comunicação foi colocada como um eixo central de ação da Unicamp no enfrentamento da emergência sanitária, aponta Arnt. “Isso me deixou bem impressionada.” Nesse momento há um edital de R$ 1 milhão aberto pelas Pró-Reitorias de Extensão das três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp) para financiar projetos de “difusão de conhecimento científicos e  culturais” nas três instituições. Cada projeto poderá receber até R$ 100 mil.

Terreno fértil

O terreno disponível para cultivar essa relação de confiança entre academia e sociedade é fértil. Pesquisas conduzidas ao longo dos últimos 20 anos pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), mostram que os brasileiros têm uma visão bastante positiva da ciência e colocam os pesquisadores de universidades públicas entre as três fontes mais confiáveis de informação, ao lado de médicos e jornalistas. Por outro lado, há pouco conhecimento sobre a ciência produzida no próprio Brasil, e apenas metade da população acha que os cientistas brasileiros “explicam com clareza as suas pesquisas”, segundo o levantamento mais recente sobre o tema, divulgado em dezembro de 2022 pelo Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).

Nuvem com nomes das instituições mais citadas (INCT-CPCT)

Imagem: Reprodução/ INCT-CPCT/ Fiocruz

O esforço adicional de comunicação feito durante a pandemia parece ter surtido efeito, apesar das limitações. Na pesquisa de 2022 do INCT-CPCT, mais de 25% dos entrevistados foram capazes de citar o nome de uma instituição de pesquisa brasileira, comparado a apenas 9%, no levantamento anterior do CGEE, de 2019. “Isso pode indicar o importante papel de comunicação com a sociedade assumido pelas instituições durante a pandemia de covid-19”, ponderam os autores, no resumo executivo do estudo. As instituições de pesquisa mais lembradas na enquete foram o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), seguidas (de longe) pelas universidades USP, Unicamp e UFRJ.

Uma pesquisa de opinião realizada em janeiro de 2022 pelo Centro de Estudos SoU_Ciência, em parceria com o Instituto de Pesquisa IDEIA, traz indicadores ainda mais positivos. Mais de um quarto (28%) das cerca de 1,5 mil pessoas ouvidas na enquete indicaram os cientistas de instituições públicas de pesquisa como a fonte mais confiável de informações sobre “assuntos importantes” para a sociedade, bem a frente de médicos e jornalistas — que lideravam esse ranking em pesquisas anteriores.

Imagem: Reprodução/SOU Ciência

Resta saber se as instituições serão capazes de manter (e ampliar) essa projeção que conquistaram na pandemia, para continuar defendendo a ciência e combatendo a desinformação — não apenas a desinformação científica, mas de todos os tipos. Porque a pandemia de covid-19 pode ter acabado, mas a pandemia de desinformação que potencializou seus efeitos* segue firme e forte nas redes sociais, infectando o debate público sobre os mais diferentes temas: política, educação, saúde, economia, cultura, religião, meio ambiente, direitos humanos, segurança pública, guerras. [*Mais informações nas reportagens anteriores desta série, disponíveis no menu abaixo.]

“Estamos vivendo uma época em que desinformação é poder”, diz o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) e superintendente de Comunicação Social da USP. “Antes se dizia que, quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade. Hoje, o que vivemos é uma situação inversa, em que as guerras começam porque a verdade é vitimada; porque não se viabilizam as formas de entendimento sobre o que se passa nos fatos.”

Nesse contexto, as universidades, como detentoras de conhecimento, não podem ser furtar da responsabilidade de compartilhar e disseminar esse conhecimento em prol do debate público. “A sociedade espera isso e depende da universidade para isso”, afirma Bucci. “Nós estamos ainda engatinhando porque não descobrimos a dimensão dessa função para a qual nós somos requisitados; mas a universidade tem de ter olhos para combater a desinformação, especialmente no Brasil.”

“As universidades têm obrigação de estar presentes; de não se omitirem no debate da sociedade”, reforça o pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP, Paulo Nussenzveig. Isso inclui, segundo ele, a responsabilidade de pesquisar a própria desinformação, com a interdisciplinaridade acadêmica necessária para entender suas complexidades e combatê-la da forma mais eficaz possível. “Não tem nenhuma receita de bolo simples. O que a gente faz na universidade é estudar as coisas”, diz. “Precisamos de pessoas com formação tecnológica, mas também de pessoas que estudem os seres humanos, a sociologia, a antropologia; porque parte desse fenômeno é inerente ao nosso convívio em sociedade.”

Jornal da USP é o principal veículo de comunicação da USP, integrando conteúdo jornalístico, produzido por uma equipe interna de profissionais, com artigos de opinião e comunicados institucionais, produzidos pelo corpo docente da Universidade. Criado em 1985 como uma publicação impressa semanal, e 100% digital desde 2016, o jornal publica uma média de 4,4 mil textos por ano (370 por mês), além de servir como plataforma para a divulgação de vídeos, podcasts e reportagens da Rádio USP.

Em 2019, o conteúdo do jornal foi acessado 17 milhões de vezes (pageviews), por quase 7 milhões de pessoas. Em 2020, esse número saltou para quase 26 milhões de acessos e 11 milhões de usuários, refletindo a enorme demanda por informações científicas no primeiro ano da pandemia. Em 2021, considerando também a audiência de todas as suas redes sociais, o conteúdo do jornal atingiu quase 160 milhões de pessoas.

Conteúdo adicional

Relatório “A Comunicação na USP”

Aprendizado fundamental​

“As universidades têm um papel na divulgação do conhecimento que é fundamental”, diz o médico infectologista Esper Kallás, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), diretor do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP e, desde janeiro de 2023, diretor do Instituto Butantan. 

Especialista em testes clínicos e doenças infecciosas, Kallás foi uma das principais fontes de informação científica confiável para a imprensa durante a pandemia. A demanda foi gigantesca. Em meio ao caos gerado pela doença (o HC foi a unidade hospitalar que mais recebeu pacientes graves de covid no Brasil), ele era constantemente instado a esclarecer dúvidas, fazer prognósticos e desconstruir mentiras que se espalhavam como fogo de palha na internet a todo momento. “Foi uma interação bastante tormentosa”, relembra ele.

Kallás avalia que não faltaram posicionamentos por parte das instituições, mas reconhece que faltou efetividade na comunicação da ciência com a sociedade. “Muitos de nós não estávamos preparados para nos comunicar com a população, especialmente nas mídias sociais”, que exigem uma linguagem muito diferenciada daquela que médicos e cientistas estão acostumados a usar, avalia ele.

“Nas universidades e nas instituições de pesquisa, há uma percepção muito clara de que precisamos melhorar essa linguagem. Dizer que estamos preparados para isso, acho que não dá para dizer. Mas há esforços em curso”, destaca Kallás. “Lá no Butantan temos um grupo de mídia social que é muito atuante e estamos produzindo algumas coisas bem interessantes; tentando divulgar informações científicas de qualidade e fáceis de serem compreendidas pela população.”

A comunicação do Instituto Butantan na pandemia foi marcada por um componente ousado de cultura pop: um remix da música Bum Bum Tam Tam, do funkeiro MC Fioti, que aproveitava a rima da letra com o nome do instituto para incentivar as pessoas a se vacinarem. Muita gente séria da comunidade médica e acadêmica torceu o nariz, mas os números não deixam dúvida sobre o alcance da iniciativa. Lançado em janeiro de 2021, o videoclipe da música — com direito a funcionários do Butantan dançando de máscara no teto e nas escadarias do instituto — teve enorme repercussão e foi visto quase 15 milhões de vezes no YouTube.

No embalo do funk e da produção da Coronavac (a primeira vacina contra a covid produzida e aplicada no Brasil), o instituto fez bombar sua presença nas redes sociais. Entre dezembro de 2019 e julho de 2022 — período em que o Butantan era dirigido pelo médico Dimas Covas, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP — o número de seguidores do instituto cresceu vertiginosamente em todas as plataformas. No Instagram, por exemplo, passou de 8,5 mil para mais de 1 milhão. No YouTube, subiu da casa dos 3 mil para cerca de 83 mil assinantes.

O número médio de visualizações por vídeo, porém, ainda é baixo; comprovando que produzir conteúdo de qualidade é apenas o primeiro passo num longo caminho de combate à desinformação nas redes sociais. Um outro passo, cada vez mais difícil de ser dado, é o da geração de engajamento — ou seja, fazer com que as pessoas consumam, compartilhem e interajam com esses conteúdos, em vez de qualquer outra coisa que os algoritmos das plataformas estejam colocando como isca de cliques na frente delas. 

“O clique vem do interesse das pessoas”, pontua Iamarino. “E esse clique está ficando cada vez mais difícil de se alcançar, por conta da intermediação dos algoritmos, da abundância de informação e da atenção das pessoas, que está cada vez mais curta.”

O Butantan foi a instituição de pesquisa brasileira mais lembrada pelo público em ambas as enquetes sobre percepção pública da ciência de 2022, tanto do INCT-CPCT quanto do SOU Ciência, sendo que em pesquisas anteriores ele aparecia em terceiro ou quarto lugar. Ainda assim, de um total de 2.065 pessoas entrevistadas na enquete do INCT-CPCT, apenas 249 (12%) citaram o nome do instituto. A Fiocruz, segunda colocada, recebeu 125 menções; e a USP, 43.

Negacionismo acadêmico

Uma das questões mais espinhosas nesse cenário, do ponto de vista institucional, é como lidar com docentes que se aproveitam de suas credenciais acadêmicas para disseminar desinformação por meio de suas redes sociais ou da imprensa. Alguns dos mais influentes propagadores de desinformação científica sobre máscaras e vacinas na pandemia, por exemplo, eram professores de universidades públicas renomadas (incluindo a USP); e não são poucos os que criticam essas instituições por não terem agido de uma forma mais enérgica com relação a isso. Não apenas na pandemia, quando essa desinformação tinha o potencial de colocar a vida das pessoas em risco, mas também nas discussões correntes sobre outros temas, como mudanças climáticas e democracia.

“A reputação dessas instituições tem muito peso no público em geral, então é importante que elas assumam posições fortes contra esse tipo de coisa”, diz o físico Leandro Tessler, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) e membro do Grupo de Estudo da Desinformação em Redes Sociais (Edres) da Unicamp. “Não que elas devam censurar esses professores; não é isso que estou dizendo. Mas elas precisam adotar posições firmes e claras no sentido de desautorizar esses malucos.”

“Eles não foram contestados; esse é o ponto”, diz a professora Ana Arnt, do Instituto de Biologia da Unicamp. “A gente não deveria negociar espaço de fala para pessoas que intencionalmente agem contra a vida humana”, completa ela, referindo-se à propagação de informações falsas na pandemia. Se um pesquisador pode ser penalizado academicamente por fraudar dados numa publicação científica, diz ela, por que não aplicar o mesmo rigor àqueles que fraudam ou distorcem dados científicos num debate público?

Mesmo que essa atividade ocorra fora do ambiente da universidade, e que o docente não use explicitamente o nome da instituição em suas postagens ou entrevistas, é quase inevitável que suas credenciais acadêmicas sejam usadas para aplicar um verniz de credibilidade científica ao que está sendo dito. Não há uma resposta pronta sobre o que as instituições podem ou devem fazer com relação a isso. A discussão esbarra em questionamentos sobre os limites da liberdade de cátedra e da liberdade de expressão.

“Em tese, se uma pessoa representando a universidade insiste em veicular para a sociedade algo que comprovadamente não tem sustentação em pesquisas e no que a ciência domina até esse momento, essa pessoa pode vir a ter uma questão a ser resolvida com a universidade. Mas o trabalho de esclarecimento e de combater a desinformação não pode, não deve, se confundir com o debate sobre a conduta de cada pessoa”, diz o superintendente de Comunicação da USP, Eugênio Bucci. “Essa atuação necessária da universidade só será bem-sucedida se ela não se confundir com medidas disciplinares, com enquadramentos ou chamamentos hierárquicos sobre quem quer que seja. O trabalho, nesse caso, é apenas o de esclarecer.”

Desconstruindo a Desinformação: Esta é a sétima parte de uma série de oito reportagens produzidas pelo Jornal da USP sobre o tema da desinformação. As matérias serão publicadas a cada duas semanas, no período de 14 de julho a 20 de outubro, abordando diferentes aspectos do problema. Acesse as reportagens anteriores pelo menu abaixo.

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