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Armas de desinformação em massa
Primeira reportagem de uma série especial produzida pelo Jornal da USP analisa as motivações, estratégias e consequências práticas da pandemia de informações maliciosas que tomou conta do mundo na era digital
Texto: Herton Escobar
Arte: Jornal da USP
Ilustração: Paula Villar
São 5 horas da manhã quando o alarme do celular começa a tocar. Joana estica o braço para apanhar o aparelho, e a primeira coisa que faz, antes mesmo de levantar a cabeça do travesseiro, é dar uma espiada nas suas redes sociais. O grupo de WhatsApp da família está cheio de mensagens de parentes preocupados com a segurança da nova vacina contra a covid-19, que alguns dias atrás fora liberada para aplicação em crianças. Joana não sabe o que fazer; ela tem um filho de sete anos e sempre confiou nas vacinas, mas agora está em dúvida. Uma mensagem compartilhada por sua irmã diz que a vacina causa problemas cardíacos e que algumas pessoas chegaram a morrer depois de tomar o imunizante. Um outro texto, compartilhado por um tio, diz que a vacina causa infertilidade e que nenhuma criança morreu até hoje de covid-19. Por que, então, correr esse risco?
Todas as mensagens vêm acompanhadas de links para postagens de pessoas que se apresentam como médicos no Facebook e de notícias de jornais que Joana nunca ouviu falar, mas que lhe parecem veículos legítimos — a julgar pelo nome e pela aparência dos sites, pelo menos. Ela decide esperar o marido voltar do trabalho para tomar uma decisão. Nesse meio tempo, por via das dúvidas, compartilha algumas das mensagens no grupo de mães da escola. “Vai que é verdade”, pondera ela. “Melhor avisar.”
Josias, o marido, é motorista de aplicativo e trabalha de madrugada. Ele recentemente comprou uma arma para se proteger de uma onda de violência que está tomando conta da cidade, segundo informações compartilhadas por colegas de volante numa rede social. Uma das mensagens, atribuída à Polícia Militar, alerta que “estamos vivendo em tempos de guerra” e orienta as pessoas a comprar carros blindados e não sair de casa após as dez horas da noite. Mas Josias precisa trabalhar. Ele chega em casa furioso com uma notícia que visualizou no Twitter alguns minutos antes, postada por um deputado federal, dizendo que o projeto de lei das fake news que está tramitando no Congresso Nacional vai proibir a reprodução de versículos da Bíblia na internet. “Comunistas satanistas querem censurar a palavra de Jesus!”, vocifera ele, enquanto compartilha a mensagem nas suas redes sociais.
Joana e Josias são personagens fictícios, criados para ilustrar esta reportagem, mas que contam histórias reais do multiverso digital em que vivemos: um mundo infestado de informações enganosas e infiltrado por sofisticadas redes de desinformação, que expõem milhões de pessoas a uma dieta sistemática de mentiras e teorias da conspiração, antes mesmo do café da manhã. Todas as “notícias” mencionadas acima são informações falsas que realmente circularam pelas redes sociais nos últimos anos, deturpando a realidade, sequestrando evidências, inventando fatos e semeando sentimentos de ódio, medo e desconfiança na população. O comportamento do casal reflete a maneira como a maioria das pessoas consome e retransmite informações atualmente: pela tela de um telefone celular, via aplicativos de mensagens e redes sociais, repetidas vezes ao dia.
O problema não é novo. Informações falsas ou distorcidas são empregadas por agentes maliciosos para influenciar a opinião pública sobre os mais diferentes temas desde os primórdios da sociedade, seja na forma de propaganda enganosa ou de notícias enviesadas por interesses políticos, econômicos e ideológicos. O surgimento das mídias digitais, porém, ampliou imensamente o poder de fogo e o alcance dessas “armas de desinformação em massa”, tornando-as muito mais perigosas. O que era um revólver virou uma metralhadora multimídia, de longo alcance e sem limite de munição.
“Embora a disseminação de mentiras intencionais e notícias falsas tenha começado muito antes, o escopo e a virulência dessa prática se intensificaram notoriamente nos últimos anos”, diz o relatório Pulso da Desinformação, publicado pelo Instituto Igarapé, que analisa o impacto da desinformação nas últimas eleições presidenciais no Brasil. Segundo o instituto, desde 2014 o país se transformou num “verdadeiro laboratório de desinformação”, com processos eleitorais marcados, cada vez mais, pela “disseminação maciça de notícias falsas e formas mais amplas de desinformação online”.
Muito além dos factoides de campanha, gerados para manchar a reputação ou enaltecer as virtudes de um determinado candidato no horário da propaganda eleitoral, a desinformação hoje se comporta como um vírus onipresente e altamente infeccioso, que circula por todos os nichos do ecossistema global de comunicação, desde os calabouços mais escuros da deep web até as torres mais opulentas da mídia corporativa — como ilustram os casos das emissoras Jovem Pan, no Brasil, e Fox News, nos Estados Unidos, acusadas de propagar notícias falsas que colocaram em risco a democracia nos dois países.
Notícias falsas sobre fraude eleitoral foram instrumentais para organizar ataques à democracia no Brasil, em 8 de janeiro de 2023, e nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021 - Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil e Reprodução/Wikipedia
Uma diferença fundamental, segundo especialistas, é que as mentiras não buscam mais apenas atingir a reputação de uma pessoa em particular (um adversário político, por exemplo), mas manipular o comportamento e a opinião da população sobre temas diversos que atendam aos interesses (políticos, econômicos e/ou ideológicos) de determinados grupos que produzem e financiam essa desinformação.
“Estamos imersos numa guerra de informações, que permeia todas as esferas da sociedade”, diz o filósofo Lee McIntyre, pesquisador do Centro de Filosofia e História da Ciência, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, em entrevista ao Jornal da USP. “E o mais frustrante é que a maioria das pessoas não sabe que isso está acontecendo.”
É uma guerra travada no ambiente digital, mas com consequências drásticas no mundo real. “A desinformação pode matar pessoas; e matar democracias, também”, alerta McIntyre. A mortalidade elevada da pandemia de covid-19 e os recentes ataques às instituições democráticas no Brasil e nos Estados Unidos são exemplos disso, segundo ele.
“Acho que jamais poderemos quantificar isso precisamente, mas não existe nenhuma dúvida sobre a relação de causa e efeito entre desinformação e a morte de pessoas por covid-19 no Brasil”, diz a pesquisadora Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A disseminação de informações falsas sobre vacinas, máscaras e outras medidas de proteção dificultou o controle da pandemia e expôs milhões de pessoas a um risco aumentado de infecção, adoecimento e morte por covid-19. “A comunicação é central no gerenciamento de uma crise que depende do comportamento das pessoas para ser solucionada”, afirma Ventura. Se a comunicação aponta na direção errada, no campo da saúde pública, o resultado pode ser fatal.
“Essa distinção entre correlação e causalidade é uma discussão longa na ciência; mas a gente tem muitas evidências de que, no caso do Brasil, há uma associação de causalidade entre desinformação e mortalidade por covid-19”, reforça o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do projeto Epicovid 2.0, que vai analisar os impactos da doença na saúde da população. A mortalidade da pandemia no Brasil foi uma das mais altas do mundo, quatro vezes maior do que a média mundial, com cerca de 3.300 mortes por milhão de habitantes registradas no País, ante 870 mortes por milhão de habitantes na média global, segundo números compilados pela Organização Mundial da Saúde e visualizados por meio da plataforma Our World in Data. Um cenário semelhante ao dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, onde a virulência de informações falsas também foi altíssima na pandemia.
A desinformação não explica sozinha essa diferença na mortalidade, mas foi uma peça instrumental da tragédia, segundo especialistas. Mais de 700 mil pessoas perderam a vida para a covid-19 no Brasil.
Propaganda enganosa
Assim como numa pandemia biológica, muitas pessoas carregam e transmitem o vírus da desinformação sem saber que estão infectadas (ou sendo influenciadas) por ele. “Esse é um clássico da comunicação e da propaganda, não é mesmo? O consumidor nunca acha que está sendo influenciado”, diz a pesquisadora Marie Santini, professora da Escola de Comunicação e diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (Netlab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em última instância, a desinformação busca manipular a percepção pública da realidade como um todo; por isso ela contamina todas as áreas do debate público e não apenas o noticiário político, apontam pesquisadores.
“A desinformação trabalha com o mundo, mais ou menos, como se ele fosse uma maquete”, diz a jornalista Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP e pesquisadora do COM+, um grupo de estudos especializado em comunicação digital. “Você tem um cenário e você tem grupos de pessoas que vivem nesse cenário. Então, você planta uma informação aqui, outra informação ali, e assim você vai manipulando a maquete, de acordo com os seus interesses”, explica ela.
Conteúdo adicional
Episódio 18 do podcast “Rádio Novelo Apresenta” traz entrevista com um produtor de notícias falsas
Essa manipulação, segundo Ramos, é feita por pessoas “que se colocam de fora do processo democrático” e que sabem usar o maquinário das mídias digitais para construir cenários fictícios — mas de aparência extremamente realista — dentro dessa maquete social. “Todo esse aparato tecnológico que foi construído dentro da internet nos últimos 20 anos nos colocou, de certa forma, como espectadores, voluntários e involuntários, de um espetáculo no qual não temos acesso aos bastidores nem sabemos quem está cumprindo qual papel”, diz. Segundo ela, é irrealista esperar que as pessoas sejam capazes de identificar todas as formas de desinformação por conta própria, “porque elas são construídas de uma forma muito crível”, quase sempre usando uma pitada de realidade para conferir um verniz de veracidade a alguma narrativa mentirosa.
A mensagem falsa em que a Polícia Militar supostamente recomenda às pessoas não sair de casa após as 22 horas é um bom exemplo: muito bem redigida, ela se aproveita de uma preocupação legítima com a questão da criminalidade urbana para propagar uma sensação de medo na sociedade, com o objetivo de torná-la mais permeável à aceitação de políticas armamentistas e intervencionistas. A mensagem circula amplamente desde 2018 e já foi desmentida pela Polícia Militar de vários Estados. O texto não pede voto em ninguém, mas busca construir uma realidade adulterada, na qual as pessoas, sentindo-se ameaçadas, se tornam mais inclinadas a apoiar políticas e políticos que defendem intervenções radicais na segurança pública, como armar a população ou ampliar o conceito de excludente de ilicitude para policiais.
“A desinformação é uma forma desonesta de propaganda, que não diz que é propaganda”, diz o jornalista Carlos Orsi, diretor de comunicação do Instituto Questão de Ciência, que combate a desinformação científica e a pseudociência nas políticas públicas. Neste caso, não uma propaganda de produtos, mas de opiniões, crenças e visões de mundo. “É uma mentira disfarçada de verdade, construída para alterar o comportamento das pessoas”, completa Orsi.
Os disfarces são muitos e variam de acordo com o objetivo da desinformação e o meio pelo qual ela vai ser disseminada. Não precisa nem ser uma notícia falsa, propriamente dita. Pode ser uma notícia verdadeira, porém tirada de contexto ou manipulada de alguma forma para inflar sua relevância ou lhe conferir algum significado espúrio. Pode ser um boato espalhado por aplicativos de mensagens; às vezes na forma de texto, às vezes como arquivo de áudio, gravado por alguém que se apresenta como testemunha ou delator de alguma informação secreta. Pode ser um vídeo de alguém de jaleco distorcendo evidências científicas, oferecendo curas milagrosas ou propagando teorias conspiratórias de que o homem nunca pisou na Lua, que as vacinas alteram o seu DNA, que as universidades públicas no Brasil são centros de doutrinação comunista ou que o desmatamento na Amazônia não passa de uma mentira inventada por ONGs internacionais para destruir o agronegócio brasileiro. A ficção, diferentemente da verdade, não é limitada por fatos, mas pela criatividade de seu criador.
Jair Bolsonaro exibe embalagem de hidroxicloroquina em uma live na internet, em julho de 2020. Governo promoveu amplamente o uso da droga durante a pandemia, apesar de estudos mostrarem que ela era ineficaz contra a covid-19 - Foto: Reprodução/ Youtube
“A guerra está no seu bolso”
“A guerra está no seu bolso”, resumiu a jornalista filipina Maria Ressa, em uma conferência de três dias sobre desinformação, promovida em maio pela Fundação Nobel e a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Mais especificamente, a guerra está embutida naquele aparelho eletrônico retangular que vive dentro dos nossos bolsos: o adorado e famigerado smartphone; principal vetor usado pelo vírus da desinformação para se espalhar na sociedade e infectar a mente das pessoas.
Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2021, ao lado do russo Dmitry Muratov, Ressa não se cansa de soar o alerta sobre os perigos da desinformação. A internet e as redes sociais, segundo ela, estão sendo usadas por agentes maliciosos em diversos países — incluindo o Brasil — como “um sistema de modificação comportamental” da sociedade, com consequências potencialmente desastrosas para a democracia (por meio da radicalização política e da interferência em processos eleitorais), para a saúde pública (pela disseminação de notícias falsas sobre vacinas, por exemplo), e até mesmo para o futuro da espécie humana no planeta (pelo negacionismo da crise climática e de outras ameaças de caráter global).
“Uma bomba atômica invisível foi lançada sobre o nosso ecossistema de informações”, discursou Ressa, em 2021, após receber o Prêmio Nobel. O primeiro passo para reconstruir o que já foi destruído e desarmar outras bombas que estão por vir (com poder de destruição ainda maior, amplificado pelos avanços da inteligência artificial) é a “restauração dos fatos”, segundo ela. “Sem fatos não pode haver verdade. Sem verdade não pode haver confiança. Sem confiança, não temos uma realidade compartilhada, não temos democracia, e torna-se impossível lidar com os problemas existenciais do nosso tempo”, afirma Ressa.
A perda dessa “realidade compartilhada” é uma peça-chave do problema, segundo especialistas. Ela se dá pela fragmentação da sociedade em grupos culturalmente fechados, e frequentemente antagônicos, nos quais as pessoas só se relacionam com aquelas que pensam igual a elas e consomem informações que confirmam suas próprias convicções. São as chamadas bolhas ou câmaras de eco digitais, nas quais a desinformação encontra campo fértil para crescer raízes sem ser contestada.
Essa fragmentação é impulsionada em grande parte pelos algoritmos das redes sociais, que são programados para customizar a visualização de conteúdo aos interesses e preferências de cada usuário. Um sistema excelente para vender anúncios e produtos via microtargeting (propaganda customizada), mas péssimo para a manutenção de uma realidade compartilhada e, consequentemente, de uma democracia saudável. Isso porque a customização não se aplica apenas aos anúncios, mas também às notícias (falsas e verdadeiras), artigos de opinião, comentários, postagens, sugestões de leitura, recomendações de amizade, resultados de busca e tudo mais que qualquer pessoa visualiza na internet.
“O que você vê não é o que eu vejo. As notícias que aparecem para você são diferentes das que aparecem para mim. Assim, fica difícil compartilharmos uma visão de mundo”, contextualiza Marie Santini, da UFRJ. As bolhas digitais, segundo ela, têm o atrativo de serem ambientes confortáveis, onde as pessoas têm seus desejos de consumo atendidos, só recebem notícias que confirmam suas opiniões, interagem com pessoas que pensam igual a elas e, portanto, não precisam responder perguntas incômodas nem se dar ao trabalho de questionar suas convicções.
“Os algoritmos nos enxergam não como indivíduos autônomos, mas como indivíduos que se agregam em clusters que eles mesmos formam”, diz a professora Leticia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina, especialista em antropologia digital.
É nesses espaços digitais herméticos e recheados de viés de confirmação que os arquitetos da desinformação constróem seus cenários fictícios, isolando as pessoas da realidade coletiva e dificultando o debate democrático sobre desafios compartilhados da sociedade. “Uma vez que você cai numa dessas bolhas de desinformação é muito difícil sair por conta própria. É como um buraco negro, que te suga para uma realidade paralela”, compara o físico Leandro Tessler, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) e membro do Grupo de Estudo da Desinformação em Redes Sociais (EDReS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Temos que baixar a fervura”
Uma das comorbidades associadas a essa fragmentação, segundo pesquisadores, é o aumento da polarização e da radicalização política. “A gente vive um fenômeno em que a sociedade está muito apaixonada, muito dividida, e isso é muito ruim”, diz o filósofo Pablo Ortellado, professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), que estuda a polarização nas redes sociais. “Precisamos baixar essa fervura, porque ela é o ingrediente que faz essa máquina girar.”
Nesse cenário incendiário, desinformação e polarização caminham de mãos dadas, numa relação simbiótica em que uma se beneficia do desenvolvimento da outra: a desinformação alimenta a polarização, e quanto mais polarizada a sociedade, mais suscetível as pessoas de cada lado se tornam a aceitar e propagar conteúdos que reafirmam suas convicções — em contraponto à convicção dos outros. “Esse viés de confirmação leva as pessoas aceitarem coisas muito pouco razoáveis que, de cabeça fria, elas não aceitariam”, diz Ortellado.
“A natureza da atividade não é mentir, é fazer disputa política”, completa o professor. “É por isso que a gente precisa desmobilizar isso politicamente, porque é um problema de natureza fundamentalmente política.”
Os candidatos Daniel Silveira e Rodrigo Amorim rasgaram uma placa com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco durante um comício no Rio de Janeiro, em 2018. Ambos foram eleitos respectivamente deputado federal e estadual e são exemplos da radicalização política que tomou conta do país - Foto: Reprodução/YouTube
Junto com a polarização vem a radicalização, igualmente impulsionada por vieses comportamentais (da natureza humana) e tecnológicos (das plataformas digitais) que favorecem o compartilhamento de informações que despertam reações de forte teor emocional, como raiva, medo e indignação. Um dos estudos mais citados sobre esse tema, publicado em 2018 por pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), sugere que notícias falsas têm 70% mais probabilidade de serem compartilhadas e se espalham seis vezes mais rápido do que notícias verdadeiras no Twitter, por exemplo. Não por conta de robôs, mas de decisões humanas.
“Contrariando a sabedoria convencional, os robôs aceleraram a disseminação de notícias verdadeiras e falsas na mesma proporção, o que implica que as notícias falsas se espalham mais do que as verdadeiras porque os humanos, e não os robôs, são mais propensos a espalhá-las”, dizem os autores da pesquisa, publicada na revista Science. Segundo eles, as notícias falsas eram mais percebidas como algo inédito e despertavam reações de “medo, nojo e surpresa” nos usuários, enquanto que as notícias verdadeiras inspiravam sentimentos de “tristeza, alegria e confiança”.
Cientes disso, os arquitetos da desinformação tendem a empacotar suas mensagens da forma mais sensacionalista, ameaçadora e conspiratória possível, com o intuito de maximizar o engajamento e a disseminação delas nas mídias digitais. Debates sobre políticas públicas e disputas eleitorais são apresentados como guerras entre o bem e o mal, frequentemente permeadas por discurso de ódio, teorias conspiratórias, demonização de inimigos e pregação religiosa. “O propósito da desinformação não é só fazer com que você acredite numa mentira; é fazer com que você odeie as outras pessoas que não acreditam nela”, afirma McIntyre, da Universidade de Boston. “É uma guerra fria de comunicação.”
“A desinformação empurra as pessoas para os extremos; e nisso a gente perde o meio do caminho, que é o caminho do debate”, reforça a jornalista Natália Leal, CEO da Agência Lupa, especializada em checagem de fatos e combate à desinformação. “Hoje é a tia com quem eu não converso mais, ou o primo que eu deixei de seguir no Facebook. Daqui a pouco são nações que não dialogam mais, ou uma guerra que explode por alguma razão que não é a desinformação em si, mas é algo que ela gerou.”
A ciência não fica ilesa nesse tiroteio; nem os cientistas nem as instituições nas quais eles trabalham. “O cientista é um inimigo natural da desinformação, por isso ele precisa ser combatido. E como é que você faz isso? Minando a credibilidade das universidades e dos cientistas”, diz a professora Daniela Ramos, da ECA-USP.
A mesma lógica se aplica à estratégia de sabotar a confiança da sociedade nos veículos tradicionais de imprensa e redirecioná-la para canais alternativos que, na verdade, são pouco confiáveis, alerta a filósofa Åsa Wikforss, professora da Universidade de Estocolmo. “A aquisição de conhecimento demanda confiança”, argumentou ela, na conferência da Fundação Nobel, em maio. “Eu não vou obter conhecimento de fontes confiáveis se eu não confiar nelas. E se eu confiar nas fontes erradas, vou terminar num lugar ruim.”
Regulamentação das redes
Reconhecida a ameaça, falta organizar a defesa. Como baixar a fervura e reduzir a formação de bolhas que propagam desinformação quando todos os botões do comportamento humano e das redes sociais parecem pré-dispostos a aumentá-la? “Não existem soluções fáceis para problemas complexos; e a desinformação é um problema muito complexo”, resume Natália Leal, da Agência Lupa.
Entre as várias ações defendidas por especialistas, duas que costumam encabeçar a lista de prioridades são a educação midiática e a regulamentação do funcionamento das plataformas digitais (redes sociais e aplicativos de mensagens). A primeira se aplica aos usuários e a segunda, às grandes empresas que operam essas plataformas e, consequentemente, controlam grande parte do ecossistema global de informações.
“É preciso deslocar a responsabilidade social pelas notícias falsas que normalmente é atribuída apenas a atores maliciosos, que estariam ‘enganando o público’, para todos nós que debatemos assuntos políticos. O problema não está apenas na má-fé dos operadores das mídias hiperpartidárias, mas em todos nós que colaboramos para a degradação da esfera pública ao transformar o debate político numa guerra de informação pouco reflexiva, na qual compartilhar matérias noticiosas de baixa qualidade é um expediente socialmente aceito”, diz a conclusão de um artigo sobre notícias falsas escrito por Pablo Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro, também professor da EACH-USP, na Revista Internacional de Direitos Humanos, em julho de 2018.
Cinco anos depois, a argumentação do texto permanece válida, mas a prioridade mudou: “De lá para cá eu passei a considerar a regulação (das mídias digitais) mais central nessa discussão”, avalia Moretto, em entrevista ao Jornal da USP, em maio de 2023. O que o fez mudar de ideia? Dois eventos em particular: a tragédia da pandemia de covid-19 e a intentona golpista de 8 de janeiro, que quase custou ao País a sua democracia. “Essas duas coisas acenderam um sinal de alerta para nós, de que a desinformação podia ter efeitos mais críticos do que a gente previa”, relata o pesquisador.
Moretto não está sozinho. Para muitos pesquisadores, a regulamentação das mídias digitais é hoje prerrogativa básica para a construção de uma solução sistêmica para a crise global de desinformação. “A ideia de que podemos solucionar esse problema apelando para a capacidade de pensamento crítico das pessoas é ingênua”, disse Åsa Wikforss, da Universidade de Estocolmo. “É errado olhar apenas para o indivíduo”, completou ela. “Precisamos olhar também para o cenário mais amplo da mídia e pensar na responsabilidade das plataformas.”
“O usuário deve ser considerado vítima”, defende Marie Santini, da UFRJ. A responsabilidade maior de zelar pela veracidade das informações, segundo ela, deve pesar sobre quem as fornece (plataformas e veículos de comunicação), e não sobre quem as consome. Caso contrário, compara Santini, seria como transferir para os pacientes a responsabilidade de checar se um tratamento indicado pelo médico é cientificamente válido ou não.
Uma estratégia que deve ser evitada a todo custo, segundo pesquisadores, é usar desinformação de um lado do debate para combater a desinformação do outro. “Acho que isso só vai piorar as coisas”, avalia Santini. “Vai aumentar o nível da desinformação num grau que a gente vai perder o controle de tudo. E a democracia será a primeira vítima.” Daniela Ramos, da ECA-USP, concorda. Combater fogo com fogo, segundo ela, só vai trazer um resultado: “Incendiar tudo”.
Desconstruindo a Desinformação: Esta é a primeira parte de uma série de oito reportagens produzidas pelo Jornal da USP sobre o tema da desinformação. As matérias serão publicadas a cada duas semanas, no período de 14 de julho a 20 de outubro, abordando diferentes aspectos do problema. Acesse as reportagens anteriores pelo menu abaixo.
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