Victor Aquino, nascido Tupã Gomes Correa

Por Clotilde Perez e Dorinho Bastos, professores do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes

 17/12/2020 - Publicado há 4 anos

 

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”

Clarice Lispector

 

Clotilde Peres – Foto: Arquivo pessoal

 

Dorinho Bastos – Foto: ECA/USP
Gaúcho, nascido em Tupanciretã, explicação para seu nome patronímico de nascimento, Tupã, silenciado há quase duas décadas para dar vida a Victor Aquino. Victor era “volumoso”, nas palavras do nosso amigo português Paulo Lencastre. Até nome, ele tinha dois! Mais do que ambiguidade, Tupã-Victor era um amálgama entre pensamento teórico e crítico e a arte poética. Opinião Pública (1988) foi uma de suas obras que marcou a formação em Publicidade e Relações Púbicas, assim como muitos de seus contos e poesias. Victor é mesmo volumoso, preenchia nossa vida no Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP) da ECA e, como nas palavras de Octavio Paz, “resgatava o cotidiano da vulgaridade”, nos envolvendo em histórias tão ricas em detalhes precisos, quanto de fantasias inesquecíveis. Realidade e ficção eram fontes de criatividade e prazer.

Controverso, polêmico, excêntrico são alguns dos adjetivos que cabem ao Victor, ideias raras, discursos inflamados, atos pouco ortodoxos; mas tantos outros lhe cabem também. Generoso, inteligente, inspirador. Não houve projeto ou ideia para o curso, departamento ou pesquisa que não fosse por ele acatado e incentivado. Da pintura do prédio nas cores roxo e laranja à atualização tecnológica do laboratório com pôsteres art nouveau, da Revirada Cultural ao painel de cartuns do Dorinho, das optativas aos cursos de extensão e intercâmbios internacionais, do desfile de moda aos churrascos, muitos churrascos no jardim, das lutas pelos claros e vagas para professor titular, tudo, absolutamente tudo que fosse melhorar e engrandecer o CRP era por ele estimulado. E isso é muito.

51 anos de presença na ECA-USP. Formado em Relações Públicas, com TCC orientado por Cândido Teobaldo de Souza Andrade, Victor Aquino Gomes Correa fez parte e testemunhou o nascimento do curso de Publicidade e Propaganda, agora celebrando 50 anos. No CRP e na ECA fez de tudo. Professor, coordenador, presidente de comissões, várias vezes chefe de departamento, vice-diretor e diretor da Escola. Ensinou na graduação e na pós-graduação, fez pesquisa e extensão e misturou tudo isso. Publicou mais de 100 livros, dezenas de capítulos e artigos. Sua generosidade estava na abertura e no incentivo a cada um ser o que quisesse ser, sem restrições; estava presente nos versos dedicados à Mel, enquanto ela se recuperava de um acidente, e nas produções acadêmicas. Em 2010 organizou o livro A USP e a Invenção da Propaganda 40 Anos Depois, reunindo textos dos professores do curso e de demais áreas que auxiliaram na formação em Publicidade e Propaganda na ECA-USP.

Em 2012 nos brindou com o “Cordel do CRP”, onde, por meio dos “trepentes”, uma composição em três estrofes, cada uma com quatro versos e sete sílabas, Victor descreve pessoas, fatos, procedimentos, cursos, “casos e coisas”, como ele mesmo dizia. A linguagem do escracho, do bom humor e vez por outra, do deboche, lhe serviu de expressão, sem deixar de fazer muita homenagem também, como presente no Trepente da Clotilde e no Trepente do Dorinho, nos trepentes de professores saudosos e dos funcionários do CRP.

Além de obras referenciais em Publicidade, Relações Públicas, Cultura Popular, Moda, Estética, entre outras, marcadamente nos seus primeiros 30 anos de vida universitária, publicou variada ficção. Em 2012 publica Significados da Paisagem, por ocasião do centenário de nascimento de seu pai, Francisco de Sales Marques Corrêa. Com Fotografia de Francisco Corrêa, de 2013, reforça os fortes vínculos com seu pai, fotógrafo gaúcho, com o qual muito se identificava. Pouco a pouco sua capacidade criativa se direcionou marcadamente à produção literária. Romance, contos, crônicas, ensaios e poesias foram publicados e tantos outros ainda devem repousar em seus arquivos, infelizmente distantes da nossa leitura.
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Ilustração: Dorinho Bastos
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Em O Padre e o Açougueiro, de 2013, romance ambientado em uma pequena cidade “no meio do nada e quase esquecida no extremo sul do país…”, dá vasão a toda sua imaginação e ótimo humor: fala de relações, traições, desafetos, hierarquia, injúria, difamação, ignorância e intolerância. Como publicado anos depois, O Padre e o Açougueiro é uma metáfora da condição humana no mundo” (PEREZ, 2015, in CORREA, Tais, organizadora). Em Cem Triliças, sem Treliça, poesia e neologismo, Victor dá vasão a sua imaginação empreendedora da linguagem. Inventa a expressão “triliça” e diz que significa três liças, local destinado a torneios medievais, por isso, espaço das brigas e embates de todo tipo, mas também lócus no qual se debatem questões importantes, significado mais próximo do que o autor pretendia. Queria criar uma palavra que expressasse “o espaço de trabalho, ou de luta, para uma expressão poética definida” (2015, p. 11). Nesse sentido, triliça significa três trabalhos: três estrofes de três versos cada uma, cada verso expresso em sete sílabas, com rimas entre o primeiro e o terceiro versos. Mas há ainda a treliça, tramas de concreto ou madeira que podem ser estruturas para a edificação de biombos. Assim, sem treliça clarifica seu ser essencialmente libertário, sem amarras ou reservas. “Sem treliça, porque não careço mais de biombo para me esconder, ou manter reserva de minhas ideias, ou do que estou pensando e escrevendo” (AQUINO, 2015, p.26).

Só mais tarde é que soubemos que a poesia era coisa antiga em sua vida, sendo ela a responsável pela ruptura com a apatia que o estudo do português lhe trazia ainda na escola primária no interior do Rio Grande do Sul. Pelas mãos da professora particular Nerotyla Bastos, ouviu As Pombas, soneto do poeta parnasiano Raimundo Correia (1859-1911), e a partir daquele momento foi tomado pela magia da rima, e este “pequeno” detalhe fez toda a diferença: “A poesia pode ser um definidor social do gosto de quem se expõe a compor” (AQUINO, 2015, p. 12). Um apaixonado pela aviação, talvez também tocado pela mesma poesia, como saber? “Também dos corações onde abotoam; Os sonhos, um a um, céleres voam; Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam; Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam; E eles aos corações não voltam mais” (CORREIA, 1887). A tônica da efemeridade da vida, o sentimento de transitoriedade e a temática existencial podem ser a fonte inspiradora para o seu amor pela aviação, certamente impulsionado pela experiência libertadora de voar.

Em 2015, o livro Victor Aquino, Entre Ciência e Ficção, uma homenagem organizada pela Tais Gomes Correa, sua filha, e pelos professores do CRP, marca o valor da sua produção acadêmica no âmbito da comunicação publicitária, mas também o apreço pela sua já profícua obra ficcional. Em 2017 publica seu centésimo livro, Meus Modos de Ver a Arte, onde, por meio das triliças, manifesta um entendimento todo original sobre a arte contemporânea. Seus livros eram lançados sempre da sala 3 do CRP, o que demonstra o quanto o departamento era importante e significativo em sua vida.

Sua dedicação à poesia nos faz retomar Octavio Paz: “A poesia não visa embelezar, santificar ou idealizar o que toca, mas torná-lo sagrado. Por essa razão, não é moral ou imoral, justa ou injusta, falsa ou verdadeira, bela ou feia. É, simplesmente, poesia de solidão ou de comunhão. Pois o poeta, que é um testemunho do êxtase, do amor feliz, também o é de desespero. E pode ser tanto uma súplica quanto uma blasfêmia” (2017, p. 22).

Sentiremos falta das reuniões do Conselho do CRP, presididas por ele ou mesmo depois, quando sempre se sentava ao centro e infalivelmente pedia a palavra. Todos nós já sabíamos o quanto teríamos de visão crítica e da mais espetaculosa narrativa ficcional, mas sempre, pertinente à discussão em pauta. Inolvidável os momentos em que se aproximavam as candidaturas para direção da ECA, Victor sempre candidato, nos rendia ótimos diálogos sobre a gestão universitária. Impossível não lembrar das festas juninas, dos seus aniversários com bolo na copa e dos almoços de final de ano; churrasco era a sua preferência, mas já tivemos outras receitas. No jardim do CRP era a sua predileção, mas acatava as sugestões de restaurantes perto ou longe. Vinho produzido por ele em São Roque era sua opção, mas generosamente consentia com o pró-seco rosê, preferência feminina do departamento nas comemorações.

Em nossas lembranças ficam histórias geniais, muitas delas vindas da pura e brilhante capacidade imaginativa, do humor refinado e da sua inteligência sagaz, próprias de poucos. Não podemos deixar de lembrar de uma passagem quando, Clotilde recém-chefe de departamento – por seu incentivo direto –, Victor a aborda e fala: Eu sobrevoei o CRP e o telhado está sujo! Entre incredulidade e surpresa ela responde: Ah, tá, claro, vou ver isso! Sua fala assertiva e pouco usual a tomou por muito tempo, mas o que ele queria dizer? Estaria mesmo sujo nosso telhado? Na dúvida, pediu para a manutenção verificar e não contente, claro, solicitou umas fotos para que pudesse comprovar ou não a sujidade. Claro que estava. Mas, sua fala não era em absoluto direta, sempre havia algo mais. O que ele queria dizer à recém-chefe era: Cuide, mas cuide integralmente, do CRP!

Saudades de você e de suas histórias, Victor. História vivida, ouvida, imaginada ou tudo isso junto (PEREZ, 2015, p. 64 in CORREA, org.). Histórias míticas, heroicas, verdadeiras epopeias que encantavam e encantam os que tiveram o privilégio de desfrutar do seu convívio, como nós tivemos por tantos anos. Victor, você viveu intensamente, esgarçou as bordas, as regras, os padrões, desafiou limites e certezas, se divertiu e nos divertiu muito, ensinou, surpreendeu, acolheu, incentivou e emocionou. À sua vivacidade, como nas palavras de Nietzsche “Não a vida eterna, mas a eterna vivacidade: eis o que importa”, voa liberto amigo Victor.

Referências
AQUINO, Victor. O anúncio publicitário: conteúdo, forma, função. 1. ed. São Paulo: INMOD Instituto da Moda, 2014
AQUINO, Victor. Fotografia de Francisco Corrêa. 1. ed. São Paulo: INMOD Instituto da Moda, 2013
AQUINO, Victor. O padre e o açougueiro. 1. ed. São Paulo: INMOD Instituto da Moda, 2013
AQUINO, Victor. Significados da paisagem. 1. ed. São Paulo: INMOD Instituto da Moda, 2012
AQUINO, Victor. A USP e a invenção da propaganda, 40 anos depois. São Paulo: Fundac, 2010
AQUINO, Victor. Meu Tupanciretã: memória estética da infância. São Paulo: INMOD, 2008
AQUINO, Victor. Opinião pública: bastidores da ação política. São Paulo: Global, 1988
CORREA, Tais (org.). Victor Aquino: entre ciência e arte. São Paulo: Pimenta Cultural, 2015
CORREIA, Raimundo. Versos e versões. Rio de Janeiro: Typ. E Lith. Moreira & Maximino & Co., 1887
PEREZ, Clotilde. Ser muitos. In CORREA, Tais (org.). Victor Aquino: entre ciência e arte. São Paulo: Pimenta Cultural, 2015

 


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