Sistema Único de Saúde: políticas, ações e desafios em permanente revisão

Por Eduardo Blanco Cardoso, pós-doutorando no Instituto de Psicologia (IP) da USP

 21/12/2021 - Publicado há 3 anos
Eduardo Blanco Cardoso – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Com o objetivo de acelerar o acesso de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao diagnóstico, medicações e tratamentos, surgiu uma série de propostas e leis ao longo dos anos. Assim, em 2008, por exemplo, a Lei 11.664 assegurava a realização do teste de Papanicolaou a todas as mulheres que tenha iniciado sua vida sexual, independentemente da idade, assim como a realização da mamografia, a partir dos 40 anos, sem exclusão.

Contudo, em 1º de outubro de 2015 o Ministério da Saúde, por meio da Portaria no 61, tornava pública a decisão de não ampliar o uso da mamografia para o rastreamento do câncer de mama em mulheres assintomáticas com risco habitual, fora da faixa etária recomendada de 50 a 69 anos, no âmbito do SUS, contradizendo a lei vigente; normativa que infelizmente permanece em vigor até os dias atuais. Não bastando isso, era necessário criar decretos e normas para o cumprimento dos prazos diagnósticos e terapêuticos com vista a melhorar o prognóstico sombrio das doenças oncológicas no País.

Desse modo, pacientes do SUS com suspeita de câncer têm direito a concluir seus exames no prazo máximo de 30 dias, o que lhes permite realizar o devido estadiamento para o desfecho de qualquer tipo de neoplasia, o que pressupõe resultados amplamente alentadores, particularmente, quando o diagnóstico se faz em fase precoce. O momento de detecção da neoplasia impacta decisivamente na sua letalidade, conforme assegura a Lei 13.896 de 2019. Caso o prazo não seja respeitado, o paciente deverá procurar a ouvidoria da Secretaria de Saúde de seu município, pois os fluxos são localmente organizados, podendo ante a persistência do fato recorrer à assessoria jurídica.

Por outro lado, o paciente com câncer tem direito de se submeter ao primeiro tratamento no SUS, no prazo de até 60 dias, contados a partir do dia em que for assinado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário único. Caso dependa de outras formas diagnósticas, por exemplo, como da realização de um exame por imagem, constatada a doença na data do laudo assinado pelo profissional responsável, e ratificado pelo médico assistente do paciente, o início de contagem do prazo passa a reger nesse momento. O tratamento se considerará iniciado quando o paciente seja submetido a cirurgia, radioterapia, quimioterapia, hormonioterapia, dentre outros, conforme a necessidade terapêutica em cada caso. É importante lembrar que estes prazos não se aplicam aos cânceres de pele não melanoma (basocelular ou espinocelular) e de tireoide.

Ainda se registram inúmeros projetos em apreciação, preocupados em qualificar o cuidado prestado às pessoas, especialmente mulheres com cânceres de mama, colo uterino, reto e intestino grosso, subordinados a gestores de saúde, como a organização de serviços, construção de novas unidades para acolher as demandas, definição de exames a serem realizados, faixas etárias beneficiadas etc.

O câncer já é a segunda causa de mortalidade na América Latina, cuja carga econômica está predestinada a aumentar notavelmente nos próximos anos, devido ao envelhecimento e crescimento da população, cada vez maior, conforme nos aproximemos a 2035.

Lamentavelmente, o pressuposto governamental destinado à saúde, nos países latino-americanos, especialmente o Brasil, é exíguo em comparação com os registrados em países desenvolvidos. Além de tudo, ao distribuir tais fundos limitados, a situação do câncer agrava-se devido aos reduzidos aportes a ele destinados. Como consequência destas decisões orçamentarias, o País afronta recursos insuficientes para enfrentar as atuais necessidades em matéria de câncer e, inclusive, menos ainda para contemplar as futuras demandas. A dotação estimada de pessoal oncológico é escassa, por exemplo, a quantidade de enfermeiros especializados em oncologia, capacitados em Brasil, cobriria tão só a metade das necessidades atuais do Estado de São Paulo. Existem menos equipes de vanguarda no Brasil comparativamente com muitos outros países desenvolvidos.

Entretanto, o acesso à medicação é um dos âmbitos mais complexos em termos de desempenho. A aprovação regulatória de terapias inovadoras, sua inclusão nos Vade Mecums e, portanto, o acesso a tais terapias são lentos e tediosos, levando os pacientes cada vez mais a recorrer à justiça para conseguir medicamentos não contemplados no SUS. Finalmente, os estabelecimentos que brindam atenção paliativa mostram-se escassos e aqueles que prestam esse serviço, o fazem de maneira precária em atenção à enfermidade. Poucos países como o Brasil contam com o que pode se qualificar como Cobertura Universal da Atenção Sanitária. Mesmo assim, populações locadas em áreas geográficas distantes dos grandes centros, de equipamentos especializados, com escassos recursos humanos e de infraestrutura, sofrem as consequências da inoperância e desinteresse, o que redunda no diagnóstico tardio e na menor qualidade de vida.

Embora os resultados atingidos pelo SUS ainda não alcancem todas as suas potencialidades, como aqui expressado, resistir à conjuntura atual de ataques e riscos de desmantelamento pelas políticas de ajuste fiscal é e deve ser o principal desafio, partindo do percepto de que a saúde não é mera mercadoria. Saúde é direito de todos e dever do Estado.

Construir sobre a base da prevenção e o diagnóstico precoce, por meio da vacinação contra o HPV, a legislação antitabaco, abordar a epidemia do sobrepeso/obesidade, medidas regulatórias como o imposto ao açúcar, atenção às doenças crônicas não transmissíveis, além de políticas públicas relevantes como as de educação e saúde, são fundamentais, mas elas só poderão efetivar-se se houver agentes administrativos competentes gerenciando-as com apoio das autoridades escolhidas pelo povo para governar.

Contudo, outras coisas, igualmente eficientes, podem ser feitas. Se trabalhamos com educação para a saúde e mudança de hábitos de vida inadequados, teremos condição de evitar 80% das mortes por doenças crônico-degenerativas, principalmente cardiovasculares, e 40% dos cânceres. A maior dificuldade para esta tarefa é garantir o convencimento e a mudança de hábitos, considerar as diferenças individuais de riscos e culturas. Assim como escolher o processo pedagógico e estratégico mais eficiente, com custo-benefício viável. Isto é possível, demonstrável e reproduzível. Em pesquisas anteriores, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU) já comprovaram que 50% dos anos de vida perdidos podem ser economizados com Educação para a Saúde, o que custa, de fato, muito pouco.

O desenvolvimento da saúde tem sido sempre visto como um processo que depende das mágicas da política econômica, sendo frequentemente relacionado com o conceito do Produto Interno Bruto (PIB), com as usinas hidroelétricas, com as grandes estradas, com fastuosos hospitais, com o combate à inflação, com a privatização e uma procissão de coisas afins.

A qualidade de vida tem sido definida por meio dos padrões das culturas consideradas “modelos” e por imitação do modo de vida das mesmas. Internamente, as classes de menor poder aquisitivo têm procurado adotar com resultados incertos os padrões das classes socialmente favorecidas, mas infelizmente os resultados obtidos não reproduzem aquilo que se pretende alcançar.

Ciência e tecnologia transitam no fechado mundo da inteligência, pautando-se pela procura, por vezes cega e obsessiva, de inovações.

Aparentemente, a ciência não questiona seu divórcio com o bem-estar e com o desenvolvimento, contribuindo com naturalidade para a fabricação de armas convencionais, nucleares e tecnologia de ponta, cujos produtos atendem apenas às necessidades dos países desenvolvidos, para em breve serem aplicados nos menos desenvolvidos.

O discurso preventivo precisa deixar de ser excludente, de ser apenas um discurso e vir ao plano consciente da concretude, com seriedade e modernidade. Para isso, é necessário integrar ações preventivas e curativas e delegar funções para, ao mesmo tempo, universalizar e introduzir educação para saúde e avaliação de riscos, como parte essencial da atenção primária, levando educação de boa qualidade e acessível para todos.


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