A arte da animação era (e ainda é) pouco compreendida, relegada a um status inferior. Vista muitas vezes como uma forma de entretenimento infantil, ou um trabalho estritamente técnico, poucos compreendem a extensão da profissão e dos conhecimentos envolvidos em sua realização. O professor Tassara é um grande exemplo da genialidade mal compreendida: animação não só une técnica e arte, mas requer uma gama infindável de conhecimentos: matemático, ótico, narrativo, gráfico, histórico, artístico e musical – características presentes na carreira do Marcello seja quando trabalhava com outros, assim como nos seus próprios filmes. Sua esposa, Eda Tassara, confirma esta suposição: “Marcello era muito culto, era um físico que tinha uma raiz forte de física e por outro lado uma cultura extensa – música, artes visuais”. Helena, sua filha, descreve o cotidiano do pai como um universo onde a criação, o lúdico e o trabalho estavam “tudo misturado”.
A realização de um filme de animação exige uma capacidade extraordinária de visualização, é um trabalho de síntese, de gênese de imagens, mas não por isso menos analítico, pois, para chegar a uma animação, seja ela lúdica, poética ou técnica, há a necessidade de se compreender e dissecar todos os fatos, detalhes e elementos. Codificá-los, orquestrando-os com precisão numérica – depoimentos de familiares, amigos, colegas, alunos revelam que Marcello Tassara representa tudo isso.
Sua formação em física é evidenciada no seu processo de trabalho, na sua inventividade e nas suas descobertas, mas nem por isso menos humanista, levando a ciência ao encontro da expressão artística de colaboradores, e, por outro lado, como artista era capaz de representar explicações visuais de fenômenos físicos, como vemos em sua extensa produção de filmes científicos. Tendo iniciado sua carreira com filmes publicitários, sua criatividade sempre esteve aliada a sua incrível capacidade de realização, produzindo centenas de filmes comerciais. Na academia assume o lugar difícil de lecionar animação em um curso de Cinema, especialmente em uma época em que o cinema do real comprometido com a militância política estava no centro das atenções, um contexto adverso à criação de imagens sintéticas.
Como professor responsável atualmente pela área de animação do curso superior do Audiovisual, sua partida tornou urgente que buscasse respostas a essa indagação. Para saber um pouco melhor quem foi Marcello Tassara, entrevistei pessoas próximas: familiares, amigos, colegas e alunos. Nessas conversas descobri que o universo familiar e o profissional do Marcello se entrecruzam de forma única e harmoniosa. Sua filha Helena nos conta das memórias de infância quando nos fins de semana levava os filhos para fazer compras, das visitas às lojas de discos – “Breno Rossi e Bruno Blois, onde ele comprava discos de música eletrônica e dodecafônica, Eric Satie, Pierre Boulez e Luciano Berio, por exemplo, enquanto eu comprava Belchior e Felipe, Martinho da Vila. Ecléticos!” –, quando cada um ganhava um LP, às papelarias, especialmente a Casa do Artista.
O tradicional passeio paulistano nunca estaria completo sem uma visita à casa Aerobras, o paraíso do aeromodelismo no centro de São Paulo, e à loja do Alfredo Lupatelli de ferromodelismo. Aliás, sua grande paixão: os trens, de verdade e de miniatura. Marcello tinha uma exímia coleção de trens e maquetes de estações em miniatura na escala N, com locomotiva a vapor e tudo. Mas o verdadeiro amor se manifestava no carinho com os filhos, amigos e sobretudo com a esposa Eda, com a qual foi casado por 60 anos, parceira apoiando seus projetos. Formada em Física, assim como o Marcello, transitava pelas humanidades, artes e ciências, em um tempo em que ainda não se ouvia a palavra transdisciplinaridade na universidade.
“Marcello, com dois Ls”, o título deste artigo, foi proposto por Maureen Bisilliat, fotojornalista com a qual colaborou em importantes projetos, mas, antes de tudo, como ela mesmo reforça, amiga da família Tassara. Maureen nos conta que sua ligação começou antes da profissão: através da sua filha Sophia conheceu o casal quando o Marcello e a Eda iam buscar os filhos na escola. Na época, quando sua filha passava os fins de semana na casa dos Tassara, a visita “não era só encontrar uma família”, pois “Sophia era influenciada pela humanidade”.
É exatamente esse aspecto humano que permeia os relatos da sua história. Se, por um lado, sua profissão exigia uma precisão e conhecimento técnico, por outro, o seu caráter humanista o tornava singular, mas nunca individualista. Maureen diz que Marcello “era uma pessoa que nos dava a mais completa confiança, não no sentido de trapaça, mas alguém que você confia quando precisa ter um apoio ou discernimento”, e complementa: “Difícil falar de Marcello sem falar da Eda, eram como carne e unha, muito interessante, se estimulando em uma perpétua troca”. Sua esposa, Eda Terezinha de Oliveira Tassara, é professora titular do Instituto de Psicologia da USP e, assim como Marcello, se graduou em Física, mas não é apenas na física que seus caminhos se cruzam.
Eda me conta que falar do Marcello é tão complexo, que uma amiga sugeriu que uma biografia do Marcello seria uma história da segunda metade do século XX. Seu filho Felipe recorda uma curiosidade apontada pelo tio João Sócrates, irmão de Eda, de que Marcello entrou no Brasil (ou talvez desembarcou primeiro na Argentina) em 1939, ano em que Eda nasceu. Nessa viagem ainda criança, Tassara conta que uma das suas últimas lembranças da Europa foi Barcelona bombardeada, quando ele desceu do navio e deu uma volta de táxi pela cidade com sua mãe, Mercedes. A imagem ficou registrada em sua memória até a vida adulta.
Em se falando em memórias visuais, parte de seu acervo visual se foi, consumida pelas chamas em um incêndio que atingiu sua sala na ECA/USP, dos seus trabalhos publicitários há poucos registros. Mas o que está preservado e sempre foi muito bem organizado são suas anotações e caixas onde guardava imagens. Segundo Felipe, o pai tinha uma caderneta onde anotava diligentemente os projetos publicitários: o nome do comercial e a data em que foi realizado. Havia anos da década de 1960 em que não faltava nenhum dia que não tivesse animado um filme nas produtoras de São Paulo.
No processo do seu trabalho, produzia ampliações fotográficas em vários tamanhos, e guardava as imagens que usava nas animações para serem reutilizadas posteriormente. Segundo Helena, seu pai tinha um “espírito de colecionador” e um sistema complexo de organização do material. Ele recortava muitas imagens de revistas e organizava para seus próximos filmes e trabalhos, classificando as imagens e esse sistema se estendia à planificação das animações, as quais ele montava mentalmente em uma planilha de papel milimetrado onde planejava todos os movimentos.
Sua parceria com o cineasta Roberto Santos vem de longa data, em que trabalharam juntos na Lynx filmes. Nessa produtora paulista produziram um comercial para a Fiat Lux, premiado em 1960 como melhor filme publicitário do ano. Esse trabalho foi instrumental para alavancar sua carreira na publicidade, onde trabalhou com fotógrafos, iluminadores, técnicos de som como Roberto Machado e Chiquinho de Moraes, que vierem da extinta cinematográfica Vera Cruz. Segundo Eda, “Marcello não tinha preconceitos, trabalhava com todos os diretores da época, do [José] Mojica [Marins] a [Rogério] Sganzerla”. Desse período ela se recorda de uma abertura “belíssima” para o filme Bebel, garota propaganda (1968), dirigido por Maurice Capovilla, revelando seu pioneirismo como criador de aberturas de filmes no Brasil.
Felipe conta que também fazia efeitos especiais para os diretores do cinema paulista: “A coisa mais audaciosa foi um raio que saía das unhas, ele fez o efeito pintando com tinta nanquim preta diretamente na película, e no final o Zé do Caixão (José Mojica, o diretor do filme) deu um calote no pagamento (que seria realizado em espécie), pago com um vidro de esmalte para crescer unhas”.
Eda explica que Marcello não era um animador de desenhos como o Daniel Messias, não se limitava à técnica convencional do table-top, “inventava em cima”, atendendo aos pedidos da publicidade, explorava o potencial advindo da articulação de texto e imagem, animando fotos manualmente, criando o movimento sinteticamente com as mãos. Os desafios encontrados nos trabalhos publicitários incentivaram a pesquisa de técnicas como as de grafismo. Eda relata que pessoas como o Boni e o Laerte, com os quais trabalhou, eram “incentivadores de suas invenções […] foi o primeiro cara que trabalhou com Letraset”, uma técnica de letras transferíveis que permitiam compor textos em várias superfícies.
Em 1968 é convidado por Rudá de Andrade para dar aula no curso de Cinema da USP, que havia começado no ano anterior. Estimulado por Rudá, a parceria com Roberto Santos tem continuidade na USP, mas em uma nova direção que complementa e enriquece o trabalho que já vinha desenvolvendo.
Eda sintetiza: “Entre as várias vertentes da sua produção havia duas linhas que se destacavam e dialogavam entre si: a experimentação e a poesia”. A partir do seu ingresso na USP, surgem oportunidades de explorar a sua veia poética, abrindo novas fronteiras de exploração. Tassara pode ser considerado o introdutor do foto-filme no Brasil, termo que ainda não existia (usava-se genericamente o termo table-top, que engloba qualquer captação fotográfica de material plano com a câmera posicionada em um eixo ortogonal). Com os foto-filmes foram introduzidas inovações técnicas, nas quais, ao mover manualmente as fotografias, criava-se sinteticamente o movimento com as mãos.
Na Universidade Marcello teve a oportunidade de importar equipamentos óticos inexistentes no País, criando um campo específico. Em 1968, a partir do trabalho fotojornalístico da Maureen Bisilliat, dirige, em parceria com Roberto Santos, A João Guimarães Rosa (1968), filme que define um marco histórico na animação brasileira. Segundo Maureen, “a ideia básica foi do Roberto Santos e envolveu o Rudá [de Andrade]. Decidimos fazer esta parte mineira de Guimarães Rosa, eu [Maureen] criei o sequenciamento, o Marcello fez a animação e o [Humberto] Marçal e Chiquinho [de Moraes], o som… O nosso trabalho envolveu uma dose de coragem, a gente subia e descia aquela máquina: o Marcello era por excelência um matemático, o projeto exigia uma minutagem precisa, era uma coisa de silêncio e precisão, tudo previamente calculado”. A máquina a que Maureen se refere era a truca, equipamento utilizado na época para realizar efeitos de trucagem cinematográfica, como ampliação e redução de imagens.
Dez anos depois, Tassara dirige Abeladormecida – entrada numa só-sombra (1978), filme produzido a partir de uma única fotografia utilizando a Higashino, equipamento que instalou na ECA/USP e que, segundo o seu filho Felipe, “foi instrumental nos seus foto-filmes. O equipamento era uma estrutura mecânica com a qual se controlava precisamente o movimento de uma câmera de animação; nela, ajustava as manivelas de acordo com planilhas que preparava antecipadamente planificando o movimento. Ele visualizava numericamente o movimento e, desse modo, ia ajustando a regulagem da posição da câmera, acionada quadro a quadro”.
Maria Luiza de Almeida Marques, doutoranda pelo programa Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, relembra da época em que foi aluna de Tassara: “Na graduação, no começo dos anos 1990, ele me apresentou a sala de animação onde estava instalada a truca Higashino, um equipamento colossal capaz de fazer a captação de imagens para animação além de composições e trucagens de cinema. Imediatamente eu reconheci qual seria o meu lugar no cinema”. Ela conta que Tassara esteve na sua banca de mestrado e seria convidado especial na sua banca de doutorado (“justamente porque seus filmes de ciências compõem o corpus de minha pesquisa, que trata da possibilidade de um olhar poético sobre as imagens científicas”), enquanto preparava o projeto de doutorado.
Maria Luiza foi algumas vezes visitar o professor, “para trocar ideia, na verdade, para beber da fonte e alimentar o embrião da minha pesquisa que trata da ciência e suas intersecções com o cinema. Nesse sentido, não podia haver pessoa melhor para dialogar, já que o físico Tassara era também cineasta”.
Sobre sua produção de filmes científicos, Felipe nos conta que o pai animou inúmeros filmes sobre física, “infográficos animados […] em um deles, sobre Nicolau Copérnico, tinha que explicar visualmente o movimento de corpos celestes: como era inviável filmar as estrelas em tempo real, devido à longa exposição necessária para capturar a imagem, resolveram filmar no Planetário”.
Em uma nota, por ocasião do falecimento de Marcello Tassara, o professor Ismail Xavier recorda a produção desse filme na época em que eram colegas na ECA: “Eu tendo, em 1973-74, participado de uma de suas realizações, o filme De revolutionibus, sobre Nicolau Copérnico, o físico e astrônomo que revolucionou a teoria do sistema solar, nascido em 1473 e tendo em 1973 a comemoração mundial do quinto centenário do seu nascimento. Lembro que Marcello era formado em Física e realizou esse filme com muito carinho. Lembro-me da extraordinária experiência no Planetário do Parque Ibirapuera ao acompanhar as filmagens quadro a quadro das posições dos planetas que, uma vez animadas, iam compor o filme em preparo”.
E quem era o mestre Marcello? Eda conta que sua filosofia como professor era a de que “cada aluno criasse um filme, de modo que apresentasse seu interesse”, tarefa difícil numa época em que havia pouco interesse por parte dos alunos em cinema de animação, conforme relata Joel Yamaji, cineasta e técnico do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA. Joel conheceu Tassara enquanto aluno do curso de Cinema e posteriormente colaboraram profissionalmente em vários projetos. Ele relata sua experiência com o professor e colega: “Era um professor, um amigo, um mestre. Era avesso a falar de si mesmo, apesar da permanente disposição à alegria, ao convívio, à fraternidade. Perspicaz, discreto, tímido (pude perceber com o tempo), de fina inteligência e senso de humor, responsável pela cadeira de Cinema de Animação no CTR, onde o conheci como aluno, de 1974 a 1978. Chamou-me atenção seu jeito de ser que muito lembrava o de um físico (depois vim a saber que tinha trânsito e atração pela física, além do cinema e da literatura): a barba branca com cavanhaque, o corpo levemente rotundo como o de Galileu (fora magro na juventude, dizia), amante da boa comida e do cinema”.
Seu senso de humor e as histórias que contava também permeiam as lembranças do professor. Maria Luiza relata: “Cheio de histórias era o Tassara! Ele contou que quando o físico Albert Baez esteve no Brasil no começo dos anos 1970 para cooperar com o Instituto de Física da USP, na produção de filmes de física, Tassara pôde ouvir em primeira mão um álbum recém-lançado da cantora Joan Baez, filha de Albert. As histórias singelas que corriam nas brechas das grandiosas eram as mais legais porque mostravam o lado humano do professor, seu jeito bem-humorado de ver as coisas”. Esse seu lado humano em constante diálogo com sua precisão e habilidade técnica permanece na memória coletiva de Tassara.
Em 1975, Marcello colaborou com Maureen Bisilliat e o sertanista Orlando Villas-Bôas, na 13ª Bienal de São Paulo, onde foi responsável pelas projeções na sala Xingu Terra, uma instalação sobre a criação do Parque Nacional do Xingu que ocupava 200 metros quadrados do terceiro piso do Pavilhão da Bienal. Felipe relembra do pai contando uma história divertida desse evento onde havia instalado projetores que funcionavam em looping. No dia da abertura, o equipamento parou de funcionar e Marcello saiu desesperado atrás de suporte técnico para consertar um dos projetores. Aritana Yawalapiti, cacique indígena (na época, um jovem “príncipe” que se tornou cacique no futuro), convidado para o evento (para montar uma “oca” xinguana), estava na sala nessa hora e ficou lá aguardando. Para surpresa de Tassara, quando ele voltou com o técnico, estava tudo funcionando. Indagado sobre o ocorrido, Aritana responde com muita tranquilidade: “Estava tudo explicado, foi só olhar este desenho no projetor”. O cacique simplesmente carregou o filme de acordo com o diagrama afixado no equipamento enquanto esperava Marcello voltar.
Maureen Bisilliat, em seu depoimento, reforça o caráter generoso de Tassara: “Marcello não falava eu, o eu desaparecia com aquilo que foi a sua vida, a filosofia, a política, a história, a arte, era tudo uma coisa só, sem o seu eu; a vida dele era o que ele era, ele não tinha máscara”.