Quando foram aprovadas as políticas de cotas étnico-raciais para ingresso em concursos e processos seletivos — como nos vestibulares e concursos de ingresso para servidores na USP —, esse duplo movimento se tornou uma etapa imprescindível para o acesso às vagas reservadas por políticas afirmativas.
A autoidentificação é o polo mais simples dessa complexa equação. Trata-se do ato de a pessoa se declarar a partir de seus entendimentos, percepções e convicções. Considerando que raça não é uma categoria biológica, mas uma identidade socialmente construída e mutável, a autodeclaração é realizada com base na percepção de cada um sobre sua inserção social, regional, econômica, psíquica, entre outras dimensões que compõem nossas identidades. Por isso, muitas pessoas que nunca se consideraram pretas ou pardas alteraram suas autodeclarações, aumentando a porcentagem de pretos e pardos nos últimos censos no Brasil. A heteroidentificação, por sua vez, é realizada por outras pessoas e tem o papel de confirmar ou não a autodeclaração. Dois aspectos são decisivos nesse processo:
- A heteroidentificação é conduzida por comissões que passaram por um processo de letramento e se baseiam exclusivamente em indicadores fenotípicos;
- Não se trata de aferir certificações identitárias, uma vez que a identidade é composta de muitos outros marcadores, como mencionado anteriormente.
Os membros das comissões são orientados a identificar critérios fenotípicos associados à negritude no Brasil. Ou seja, buscam-se marcas de identificação que possam alinhar a autodeclaração com a heteroidentificação. O objetivo é respeitar o princípio fundamental das políticas de cotas no Brasil: a reparação histórica para grupos sociais formados durante a colonização e a escravidão, que continuam sujeitos, no cotidiano, a violências, abusos, discriminações e desigualdades decorrentes desses marcadores.
A dificuldade desse processo, que também ocorre em outras circunstâncias da vida social, é agravada pelo fato de ele estar vinculado a uma vaga na mais importante e reconhecida universidade brasileira. Trata-se de um bem valioso e, infelizmente, escasso. Por isso, a disputa presente em todo o processo seletivo também se manifesta na definição de quem, a partir de sua autodeclaração como preto ou pardo, poderá ocupar essas vagas.
Considerando a complexidade do processo e as múltiplas camadas de entendimento e adesão a ele vinculadas, a PRIP (Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP) se prepara para realizá-lo da forma mais precisa e inequívoca possível. Todos os anos, aprimoramos os processos, aprendendo com seus sucessos e questionamentos. Nosso objetivo é garantir a maior isonomia possível a todos os candidatos, reconhecendo o direito inquestionável de cada pessoa à autodeclaração. Para isso, treinamos nossas comissões, aprimoramos os processos de heteroidentificação e divulgamos amplamente todas as mudanças e etapas envolvidas.
Optamos por um processo com múltiplas etapas de verificação, estruturado para garantir a maior impessoalidade. Em 2025, implementamos um sistema de identificação de fotos que garantiu que as duas comissões envolvidas não tivessem conhecimento das avaliações dos outros membros. Além disso, avaliamos individualmente todos os recursos encaminhados ao Conselho da PRIP. Investimos na comunicação do processo e de suas etapas, promovendo maior equidade para os candidatos e maior transparência para as atividades das comissões, por meio da adoção de etapas virtuais comuns a todas as formas de seleção.
Reafirmamos nosso compromisso de conduzir, de forma ágil e competente, as etapas de heteroidentificação, garantindo que os candidatos possam confirmar suas matrículas dentro dos prazos estabelecidos. Ressaltamos que a heteroidentificação é uma etapa obrigatória para a obtenção de vagas na USP destinadas às políticas afirmativas para pretos e pardos.
As comissões de heteroidentificação, as cinco etapas que compõem o processo na USP, o treinamento dos membros e a transparência dos critérios e procedimentos refletem o compromisso da Universidade com a adoção de políticas afirmativas e com o sucesso dessas iniciativas.
(Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição on-line, em 19/01/2025)