O que contam os fantasmas? Uma pesquisa sobre experiências, narrativas e leituras em São Luís, Maranhão

Por Gabriela Lages Gonçalves, doutoranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Publicado: 27/03/2024     Atualizado: 02/04/2024 as 20:29
Gabriela Lages Gonçalves – Foto: Arquivo pessoal

 

Ao ouvirmos a palavra fantasma, uma série de imagens são comumente associadas – a cena (quase cinematográfica) de um lugar deserto, escuro, em ruínas, os barulhos de ruídos, ecos, ou até a famosa caricatura fantasmagórica de um lençol branco encobrindo um corpo, são facilmente remetidos.

Além disso, a imagética fantasma quase sempre é associada a sensações como o medo ou o terror, elementos bem explorados por diversas linguagens artísticas. Nas Ciências Sociais brasileiras, pode-se dizer que o campo foi primeiramente notado na obra Assombrações do Recife Velho, que reúne uma coleção de relatos policiais e histórias registradas por Gilberto Freyre. Em termos de perspectivas teóricas contemporâneas, no diálogo entre as Ciências Humanas e Artes, fala-se em uma “virada espectral” – o que seria um campo de estudos dedicado a insistir no espectro como uma ferramenta de análise nas pesquisas acadêmicas.

Há alguns anos tenho buscado pensar “as possibilidades fantasmagóricas” na minha cidade natal, São Luís, capital do Maranhão, no nordeste do País. Um lugar com uma quantidade considerável de casarões tombados como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, devido aos edifícios históricos ali presentes. Entre as ruas do Centro Histórico de São Luís, não é incomum se ouvir sobre os assombros que ali rodeiam, localmente nomeados de visagens – são presenças que podem se manifestar através de sons, toques, ações, olfato e visão. As visagens podem emitir vozes, ruídos, música; podem aparecer de forma tortuosa ou nítida, podem tocar um humano, manusear e agir no ambiente. Movida pelas constantes narrativas sobre visagens na parte turística da cidade, mais precisamente o bairro da Praia Grande, aproximei-me de uma categoria de narradores “oficiais” sobre visagens, acompanhei turnos dos funcionários da vigilância entre o dia e parte de algumas noites em museus, faculdades, teatro e espaços culturais dedicada a ouvir como convivem com a presença das visagens.

Entre as minhas preocupações de pesquisa, diferentemente de uma leitura das visagens enquanto lendas ou mitos criados sobre o Maranhão, estão os efeitos causados pelas visagens, as leituras e narrativas sobre elas. Em outras palavras, as visagens fazem-fazer coisas diversas, provocam sensações de fascínio, curiosidade, medo, repulsa, negação; mobilizam práticas rituais por meio da fala, orações ou benzimentos em espaços e pessoas; criam espaços de reflexões e/ou conforto; interditam ou mediam uma relação entre as pessoas, os espaços e elas; e acima de tudo, provocam um circuito de narrativas sobre os casarões históricos da cidade.

As visagens estão diretamente associadas à materialidade, às estruturas físicas como arcos, pedras, poços, pequenos monumentos; ou ainda à não mais existência de um lugar, como a demolição de antigas igrejas e monumentos. Nas falas dos meus interlocutores, não é incomum as visagens estarem sempre passando – “um homem acorrentado atravessou a parede”; “uma mulher chorava dentro do poço”; “uma sombra passou por cima de mim”.

Da mesma forma, enquanto os vigilantes são meus interlocutores de pesquisa, eles próprios são pesquisadores. Como arqueólogos das visagens, eles escavam através das estruturas físicas, encontram nas texturas das paredes, pedras e chãos talhados a relação entre visagens e materialidade – o que pode ser expresso no diálogo com outros vigilantes (especialmente os mais velhos) e na busca por informações da trajetória dos lugares “sem história”.

Assim, acredito que pensar as construções de sentidos atribuídas às visagens nos casarões históricos de São Luís reverbera em narrativas outras sobre a memória, a colonização e a transformação do patrimônio da cidade. As visagens se misturam com um Maranhão recheado de manifestações culturais e religiosas que ressignificam os casarões coloniais, conectam dimensões materiais e analíticas de uma noção de patrimônio elaborada por trabalhadores costumeiramente invisíveis.

A partir dos formatos arquitetônicos construídos em média há duzentos anos, meus interlocutores investigam as visagens, quem vigia o casarão elabora cotidianamente uma versão coletiva sobre o que contam os fantasmas.

(Pesquisa vinculada ao projeto temático Fapesp nº 2020/07886-8 – Artes e semânticas da criação e da memória.)

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