O Eurovision nunca foi “bobinho”: a importância do soft power

Por Thayla Bicalho Bertolozzi, doutoranda no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

 Publicado: 24/07/2024
Thayla Bicalho Bertolozzi – Foto: CV Lattes

 

 

 

Tudo é político e pode ser palco de uma disputa de poder. Recentemente, um artigo sobre o Eurovision, programa de competição musical com artistas da Europa (e, excepcionalmente, alguns locais próximos, geográfica ou politicamente) que representam seus próprios países, ressaltou os protestos que ocorreram em meio à possibilidade de que Israel (Eden Golan) ganhasse (o que não se concretizou).

Em tal artigo, o autor alegou que o Eurovision é, em geral, um programa “bobinho”, mas que agora se encontrava marcado por tais tensões que derivam do genocídio palestino por parte de Israel. Além disso, há outros protestos relacionados à Rússia e à Ucrânia, que também estão em guerra.

Nesse sentido, reafirmamos categoricamente: o Eurovision nunca foi “bobinho”. Desde sua existência, o programa enfrentou, em inúmeras edições, questões políticas, o que inclusive fez com que suas regras passassem a suprimir “temas políticos” nas composições da competição.

Entretanto, a definição do que é e do que não é “político” nem sempre é muito clara: em 2016, a canção ucraniana 1944, vencedora daquela edição, não foi considerada suficientemente política a ponto de retirar o país da competição, embora tivesse sido alvo de acusações, por parte da Rússia, devido à sua letra remeter à deportação dos tártaros da Crimeia na década de 40. Pelo contrário: muitos telespectadores de diferentes países da União Europeia (e além) se uniram para votar favoravelmente à Ucrânia, em detrimento da Rússia, como forma de protesto contra os conflitos que se acirraram entre ambas as nações, principalmente desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.

Embora a política não estivesse explícita pelo próprio programa devido às regras impostas, ela sempre esteve presente entre os públicos votantes, o que nos revela a importância dos palcos não-convencionais de disputas de poder, narrativas e decisões políticas, sobretudo no contexto dos bens e serviços culturais e esportivos. Estes podem ser ferramentas de integração, é claro, mas também de embates entre diferentes grupos e países.

Telespectadores também boicotaram, por diversas vezes, a adesão da Turquia à competição, refletindo os embates que também existiam fora do âmbito lúdico quanto ao ingresso da Turquia na União Europeia, em especial por não apresentar os mesmos compromissos com os direitos humanos que o bloco adota. Apesar disso, o país conseguiu participar em diversos momentos, inclusive da edição atual, embora já tenha realizado boicotes devido a apresentações LGBTQ+.

Em 2015, centenário do genocídio armênio (que, por sua vez, segue não sendo reconhecido enquanto genocídio por inúmeros Estados, além de sistematicamente negado pela Turquia, que é acusada de cometê-lo), a apresentação do país era intitulada Face The Shadow [Enfrente a Sombra] (nome alterado devido ao seu título anterior ter “conteúdo político”, conforme denunciou o Azerbaijão). Seu refrão era:

Don’t deny / Ever don’t deny / Baby, don’t deny / You and I [Não negue / Nunca negue / Querido, não negue / Você e eu]”

Além de possuir trechos como:

Cross the ocean of blues, happy you’ll be / Оnce you’ve risen, you are meant to be free / When you’re feeling afraid remember there’s hope inside [Atravesse o oceano de tristeza, feliz você será / Uma vez que você acender, você está destinado a ser livre / Quando você estiver com medo, lembre-se que há esperança dentro de você]

O que também poderia remeter à perseverança dos armênios que conseguiam escapar da guerra e formaram comunidades diaspóricas no mundo, inclusive no Brasil. A letra, no entanto, não foi considerada política, dada sua perspicácia de trabalhar com as entrelinhas e figuras de linguagem, algo que nos remete à habilidade do movimento tropicalista brasileiro na época da ditadura, por exemplo. No ano seguinte, foi a vez de uma participante da Armênia exibir uma bandeira da República de Artsakh, território do Azerbaijão que é habitado por uma maioria étnica armênia. Isto rendeu ações disciplinares e penalidades à emissora do país.

A entrada de Israel, ainda em 1973, também foi objeto de controvérsia, mormente após o Massacre de Munique nas Olimpíadas de Versão ocorridas em Israel (1972). Em diversos países árabes que não reconheciam o Estado de Israel, as apresentações israelenses simplesmente não eram transmitidas, o que ainda ocorre. Países árabes que compõem a região do Cáucaso ou seus arredores, e que geograficamente poderiam participar da competição, recusam-se a participar devido à presença de Israel. Por outro lado, países majoritariamente árabes do Norte da África que já tentaram integrar o programa nas décadas de 70 e 80, como a Tunísia e o Marrocos, só puderam se apresentar ocasionalmente. O Líbano, em 2005, teve sua entrada aprovada e, depois, removida da competição, por ter se recusado a transmitir a apresentação israelense (o que violaria suas próprias leis). Em alguns casos, o evento ocorreu em Israel e a própria Turquia optou por se retirar da competição após sofrer pressões por parte de parceiros árabes.

Além da edição atual, a de 2019 foi a que melhor evidenciou os aspectos políticos da participação de Israel no programa: à época, seu governo havia implementado medidas ainda mais restritivas aos palestinos na Faixa de Gaza e em parte da Jordânia (que, por sua vez, também já retirou do ar a transmissão do programa quando Israel se apresentava na década de 1970), o que resultou em boicotes. Na ocasião, o grupo islandês Hatari exibiu bandeiras palestinas durante a competição, e sua emissora foi multada por isso.

Este ano, a letra inicialmente proposta por Israel (na realidade, seu próprio título) também trazia elementos políticos que faziam menção clara ao ataque de 7 de outubro cometido pelo Hamas. Dada sua menção expressamente política, o título precisou ser alterado.

Quando o Brexit se tornou uma pauta, rapidamente o Eurovision também se tornou um palco para evidenciar o descontentamento de europeus de outros países quanto ao Reino Unido: estes se organizaram em grandes grupos para votar de modo que o Reino Unido não ganhasse a competição. Logo após a votação favorável ao Brexit, uma pesquisa da consultoria de pesquisa de mercado YouGov demonstrou que boa parte dos britânicos era favorável também à saída do programa. Em 2019, porém, os britânicos já não tinham tanta certeza quando a pesquisa foi repetida.

Portanto, mais do que as ações políticas realizadas pelos próprios participantes e pelos Estados, seja para denunciar guerras e ataques, seja para reforçar seu poder (cultural) de atração de novos investimentos, parceiros e de influência em tomadas de decisão (chamado de soft power ou poder brando pelo cientista político Joseph Nye), é imprescindível levar em consideração a organização dos próprios telespectadores no quesito “boicotar” ou “incentivar” um determinado participante (e, principalmente, um determinado país) diante de causas políticas que permeiam a Europa e o mundo.

Assim como o Big Brother Brasil pode nos remeter às questões sociais que afetam nosso país, o Eurovision pode remeter os europeus à sua realidade social local, favorecendo votações não necessariamente por qualidade musical, mas por viés ou posicionamento político, dentre outros fatores: em 2014, um estudo estatístico concluiu que conexões culturais, migratórias, sociais, políticas e históricas eram mais capazes de afetar os padrões de votação da competição do que preconceitos e outros fatores negativos.

Finalmente, pode-se dizer que o Eurovision, por mais descontraído e, de certa forma, “bobinho” que seja, nunca foi realmente ingênuo: como qualquer atividade cultural, artística ou esportiva, ele pode ser reflexo de questões sociais e políticas que estão sendo vividas (ou revividas, como no caso do genocídio armênio) em um dado momento histórico. Ignorar ou subestimar a importância (e a seriedade) de tais espaços não-convencionais de decisão não parece uma boa opção nem aqui, nem na Europa.

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