Estudos posteriores, contudo, questionaram a chamada unidirecionalidade da mudança linguística. Entre outros pesquisadores, merece destaque o linguista brasileiro Ataliba Teixeira de Castilho, que, em sua abordagem multissistêmica, condenou o que chama de “língua-linha” (termo que cunhou para referir-se criticamente à ideia de que existiriam passos previsíveis no fenômeno complexo que é a mudança linguística).
Em meio a essa polêmica, a emergência de um verbo como “maratonar” parece colocar de fato o princípio da unidirecionalidade em questão.
Verbos plenos e verbos-suporte
Para avançar nesta conversa, o conceito de verbo-suporte é bastante caro. E, como “na língua não há senão diferenças” (resgatando a máxima do linguista suíço), convém diferenciá-los dos verbos plenos.
Quando a carga semântica do verbo é bastante marcada e definida, o que ocorre nos casos prototípicos, tratamos de verbos plenos: “gritar”, “melhorar” e “perguntar”, por exemplo. Há casos, entretanto, nos quais o valor semântico do verbo é mais leve, abstrato, o que permite que a forma verbal e seu complemento formem uma unidade, uma construção única, com um único sentido global. Nesses casos, “gritar” se converte em “dar um grito”, “melhorar” dá lugar a “ter melhora” e “perguntar” se torna “fazer pergunta”. Os verbos leves que integram essas construções são chamados verbos-suporte.
“Fazer maratona” ou “maratonar”?
A pandemia que afeta a sociedade afeta igualmente o português brasileiro. Com o tempo de isolamento, trancados em casa, novas construções vão sendo acionadas e requeridas para descrever essa nova ordem social. Nesse sentido, o verbo “maratonar” parece ter ocupado em definitivo seu lugar ao sol, como no exemplo: “Vou maratonar aquela série que você me recomendou!”.
Se o verbo está sendo bastante acionado recentemente com a busca de séries televisivas (para preencher o tempo que forçosamente muitos têm de digerir), é natural que seu emprego se consolide mais no dia a dia. Em uma pesquisa rápida pelo Google, “maratonar séries” aparece 32.100 vezes, ao lado de “fazer uma maratona de séries”, que surge em 526 mil resultados.
Comparando as duas estruturas, identificamos a ocorrência de duas formas variantes, uma com verbo-suporte (“fazer maratona”) e outra com verbo pleno (“maratonar”). E o mais interessante: a construção mais antiga é feita com o verbo leve (mais abstrato), não com o verbo pleno (mais concreto). Aceitando que a mudança linguística ocorresse sempre em direção a formas mais abstratas, seria de se supor que “maratonar” precedesse “fazer maratona”, ao contrário do que efetivamente ocorreu.
Dá no mesmo?
O verbo “maratonar” começa a despontar na década de 1990. Já em 1996 lemos “(…) amigos e amigas que amam a literatura, ouvir uma boa música, ver filmes e maratonar séries (…)”. Em contextos como esse, o verbo “maratonar” se especializou em transmitir o sentido figurado da expressão.
Dito de outro modo: a construção com verbo-suporte é polissêmica, pois “fazer maratona” pode significar tanto “participar de uma corrida de longa distância” quanto “assistir a vários episódios seguidos de um seriado televisivo”. Já o verbo “maratonar” tem um significado unívoco, fazendo referência sempre ao momento de lazer diante da tela – sentido certamente insuflado pelo surgimento de grandes provedores globais de filmes, como a Netflix.
É plausível pensar, portanto, que a emergência e a frequência de um novo comportamento dos consumidores de seriados tenham tido um impacto no uso de um novo item lexical. Especializado em diferenciar os dois tipos de maratona, a esportiva e a preguiçosa, “maratonar” caiu no gosto e no uso popular – e, em tempos de confinamento, a maratona da preguiça venceu a corrida.