Ao cânone pertence tudo aquilo que a academia julga ser bom e reflete um modelo a ser seguido. A noção de cânone, no entanto, é diferente da de clássico, apesar de às vezes ser confundida com ela. Um clássico não pode servir de modelo, pois por definição é inimitável. Se você escrever à maneira de, pode até vir a ser incorporado ao cânone mas nunca fará parte de uma lista de clássicos.
Qualquer um pode pertencer ao cânone, contanto que esteja morto ou a caminho de estar. Enquanto não pertencem, obra e autor podem ser desprezados e portanto passíveis de discriminação. A maioria nunca vai pertencer, por mais que se gaste vela. Por isso muita coisa está fora do cânone. A crônica, por exemplo. Autores como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade estão “canonizados” porque também praticaram outros gêneros literários. Agora experimente procurar Rubem Braga ou Antonio Maria, que só fizeram crônicas. Pegue, por exemplo, a História concisa da literatura brasileira e tente encontrá-los lá. Adivinhe só. Não vai achar nem unzinho sequer.
Antonio Candido até tentou trazê-los para o seio da academia. Apesar de tratá-los com toda a sua agudeza analítica e a benevolência do leitor privilegiado, o mestre também de algum modo os desqualifica. “A crônica é um gênero menor”, diz ele logo no início de seu prefácio ao quinto volume da coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática. Antes disso, o próprio título já diz muito do que se pensa da crônica: “A vida ao rés-do-chão”, a sinalizar o alcance raso do gênero, afeito às coisas miúdas e à efemeridade do jornal.
Mas por isso mesmo, por serem inofensivas, as crônicas ainda podem até entrar em livros didáticos, servindo para motivar adolescentes ao hábito da leitura e como alternativa (possível) aos quadrinhos e (hahaha) aos videogames. Outros gêneros, nem isso. Se você for apanhado (ou apanhada) no pátio de uma faculdade de letras lendo, digamos, os Cinquenta tons de cinza, ou qualquer outra coisa que esteja vendendo muito e fazendo a alegria de editores e donos de livraria, vão lhe tirar a pele sem dó nem piedade, e isso não vai ser nem um pouco excitante.
O gênero literário que a academia mais despreza (e discrimina), diga-se de uma vez, é o gênero popular, sobretudo aquele que faz muito sucesso, que rende dinheiro, a saber, o best-seller, um “gênero” de todo modo impreciso, pois abrange tudo, do romance histórico ao melodrama, do policial ao suspense, da ficção científica à espionagem. Isso nos limitando apenas ao campo da prosa de ficção. Se você fala de Mika Waltari ou Gore Vidal, por exemplo, vão mandar você ler Robert Graves. Um tempo atrás, quando da explosão do Harry Potter, diziam que a autora, J. K. Rowling, imitava o J. R. R. Tolkien, este sim, garantiam os especialistas (sempre existe um especialista de plantão para repudiar aquilo que os não especialistas consideram bom), um grande fantasista. Depois foi feito o filme do Senhor dos anéis e ele também virou carne de vaca.
O curioso é que Tolkien sempre vendeu muito. Mas ele já estava morto, não é mesmo? Vender muito e estar vivo são “defeitos” que a intelectualidade não perdoa em escritores, sejam homens ou mulheres. Por isso os esnoba ou lhes vira as costas. Há um outro fator também. São escritores aparentemente menos preocupados com o instrumental técnico da narrativa. Sthephen King, em suas memórias Sobre a escrita, fala exatamente isso. Segundo ele, ninguém pergunta para romancistas populares sobre a linguagem. O autor de Carrie, a estranha não diz, mas é possível compreender o motivo de não perguntarem. Pelo menos procurar entendê-lo sem cair na tentação fácil do juízo de valor.
Como lembrou George Steiner, a civilização ocidental se sustenta sobre as colunas de Atenas e Jerusalém, mas curiosamente nem Sócrates nem Jesus escreveram qualquer coisa. Somos filhos, portanto, da tradição oral. E ainda que muito se publique mundo afora, inclusive no Brasil, onde o analfabetismo ainda não foi totalmente erradicado, a palavra escrita, para o crítico, não passa de “um arquipélago no meio de uma imensidão oceânica da oralidade humana”.
Esses autores de best-sellers, os craques, os John Grisham, os Tom Clancy, as Nora Roberts, têm um pouco dessa oralidade perdida das antigas narrativas, dessa coisa quase pueril do contador de histórias, que no romance moderno foi substituída pela sofisticação da linguagem ou pela psicologia. Mas na narrativa, como já disse Walter Benjamin no seu ensaio sobre o narrador, em vez da psicologia temos a moral. E a moral, cá entre nós, é sempre mais confortável (ou reconfortante). Se duvida, faça um teste: leve um romance de Dostoiévski nas suas próximas férias na praia. Estique a rede, pegue o coco verde gelado e abra Os irmãos Karamázovi. Depois volte aqui para dizer se conseguiu se divertir um minuto sequer.
O entretenimento (ou prazer) oferecido por autores como Dostoiévski, Proust, Woolf não permite ser compartilhado com outros prazeres da vida. Eles exigem exclusividade. Isso não acontece com os bons romances populares. Você os leva para a luz do dia e o sol continua brilhando. É como se houvesse neles uma natural compatibilidade com o desprendimento das coisas mundanas. Quase uma sintonia fina. E isso não é demérito nenhum. Pelo contrário. Antes uma forma de generosidade. Não à toa, para Benjamin, o narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
As narrativas de Dan Brown são um bom exemplo. Confesso que, apesar de ter visto os filmes com o Tom Hanks, e me divertido um bocado, nunca lera um livro dele. Até cair nas minhas mãos, por acaso, o romance Ponto de impacto, mistura de ficção científica, espionagem e suspense. Foi o bastante para quase perder uma noite inteira de sono. No dia seguinte acordei bem tarde, e ainda meio confuso, naquele estado intermediário entre o sono e a vigília, aconteceu algo surpreendente: lembrei flashs de um filme assistido na noite anterior, imagens de personagens, situações e lugares, isso que ocorre quando durmo vendo televisão; mas eu não tinha visto TV, tinha lido um livro!
Impressionante a capacidade de Dan Brown em criar imagens tridimensionais. Onde o espírito moderno diz que a literatura é artifício, é máscara que se aponta com o dedo, escritores como ele vão buscar sua força nas formas mais básicas de representação. Daí, claro, caírem como luva à indústria do cinema. Daí também o perigo de serem mal interpretados e tomados em um sentido para além daquele da construção e da manufatura literária.
Tempos atrás soube de um grupo de amigos que se reuniu numa excursão cultural a Paris para observar in loco as teorias do Código Da Vinci. Eles queriam constatar as verdades contidas no livro mais famoso do autor. Estavam ansiosos e animados. Infelizmente, por mais agradável que possa ser visitar o Louvre ou discutir assuntos “profundos” num café chiquérrimo de Montmartre, tudo que vai escrito nas aventuras do professor Robert Langdon é fruto apenas e tão somente da poderosa imaginação de Dan Brown e se, por vezes, parece fazer sentido, é assim mesmo que funciona a verossimilhança, aquela mesma que nos faz acreditar, também, estar a Arca da Aliança encriptada sob o escaldante deserto egípcio, esperando por ser descoberta pelo doutor Henry Walton Jones Jr., vulgo Indiana Jones.
Apesar de todo mundo adorar Os caçadores da arca perdida, eu incluído, não me lembro de ninguém ter ido até o Cairo fazer buracos na areia. Para o grupo de caçadores do Código Da Vinci, os cabernets e profiteroles da Rue Lepic são bem mais interessantes… E nesse grupo, a título de curiosidade, havia o mesmo número de homens e mulheres.