“Dark” em São Paulo e a importância do acompanhamento dos vírus em aves

Por Luciano Matsumiya Thomazelli, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP

 15/03/2022 - Publicado há 3 anos
Luciano Matsumiya Thomazelli – Foto: Acervo pessoal

 

O ano de 2019 foi mesmo um ano atípico. Mesmo antes de começar uma das maiores pandemias da história em Wuhan, na China, aconteceram coisas estranhas que mais pareciam cenas de filmes.

Alguns dias antes da cidade de São Paulo anoitecer, às 15h (pelo menos cinco horas antes do habitual, nesta época do ano, agosto de 2019), dezenas de aves começaram a aparecer mortas no chão. Parecia cena de ficção científica, mais precisamente uma das cenas mais marcantes de um seriado alemão que ficou mundialmente famoso depois de lançado pela Netflix, Dark. No início, parecia o apocalipse, mas depois tudo foi sendo esclarecido pela ciência, não havendo nenhuma correlação entre os eventos.

A tarde de uma segunda-feira (19 de agosto) na capital São Paulo começou com o céu coberto por nuvens, de repente as nuvens ficaram escuras e densas, e o dia virou noite. Não só as nuvens eram escuras como também a chuva que caía era preta. A cidade precisou acionar sua iluminação artificial antes mesmo das 16h. Isso aconteceu devido à chegada de uma frente fria que causou uma inversão térmica somada a partículas oriundas das fumaças em consequência de dias seguidos de queimadas na região Norte e Centro-Oeste do País, sobretudo os incêndios florestais na região amazônica, além de queimadas na Bolívia e Paraguai. A fumaça era tão densa que foi detectada e rastreada por satélites de agências do mundo todo. Além disso, análises feitas no Instituto de Química da USP encontraram na água da chuva grandes quantidades do composto orgânico reteno, um hidrocarboneto policíclico aromático formado durante a queima de biomassa, tais como árvores e florestas.

Quanto às aves “caindo do céu”, eram pombos com sintomas neurológicos que foram encontrados mortos ou moribundos na região do CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) de São Paulo. O CCZ recebe amostras do Brasil inteiro para o diagnóstico diferencial do vírus da raiva, porém não testa para outros vírus emergentes, tais como o Oeste do Nilo, por exemplo. Na mesma semana que as aves começaram a morrer, houve a morte de um cavalo, no mesmo local. Além disso, poucos dias antes, a OMS havia emitido um alerta do primeiro caso confirmado do vírus do Oeste do Nilo (WNV) em um cavalo no Espírito Santo. Por isso, imediatamente, pesquisadores do CCZ enviaram as amostras dos pombos e do cavalo para o Laboratório de Virologia Clínica e Molecular do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (LVCM-USP) para fazer o diagnóstico viral, visto que o referido laboratório possui um programa de monitoramento ativo para diferentes vírus causadores de doenças emergentes em animais silvestres, incluindo o WNV. Estas mesmas amostras foram enviadas também ao Lanagro (laboratório oficial de referência) para estudos biológicos e ao Laboratório de Ornitologia da Faculdade de Medicina Veterinária da USP para estudos bacteriológicos e histológicos.

Não foram encontradas bactérias que pudessem caracterizar os sintomas relatados nas aves (sinais clínicos neurológicos) e os achados histopatológicos e necrose em diferentes órgãos.

No LVCM-USP as amostras foram testadas por PCR em Tempo Real (qPCR) específicos para alphavirus, flavivírus, Oeste do Nilo, influenza aviária e doença de Newcastle. Todas as amostras foram negativas para todos os vírus estudados, com exceção do vírus da doença de Newcastle (NDV), cujo genoma foi detectado em 75% das amostras. A amostra de cavalo foi negativa para tudo.

O vírus também foi isolado pela equipe do Lanagro, que verificou tratar-se de um paramyxovirus tipo 1 de pombo, com características virulentas. No entanto, esta cepa foi encontrada em pombos que coabitavam com galinhas que não demonstravam sinais de doença, indicativo de baixo risco para a avicultura comercial.

A doença de Newcastle é causada pelo Avian orthoavulavirus 1 e é possivelmente a enfermidade mais devastadora entre as doenças da criação industrial de aves, pois acarreta elevadas perdas econômicas ao país atingido. Mesmo assim ainda é pouco conhecida pela população em geral, talvez pelo fato de geralmente não ser letal em humanos.

Estes resultados foram publicados na revista Viruses, que descreveu o surto de Pigeon Paramyxovirus 1, uma variante do Avian orthoavulavirus 1, que causou doença letal em pombos de vida livre, causando temor na população da região afetada, ainda mais numa época em que coisas bastante estranhas estavam acontecendo.

Em cooperação com a professora Helena Ferreira, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP em Pirassununga, uma das coordenadoras do Previr-MCTI da Rede de Vigilância de vírus em animais silvestres, foi possível realizar o sequenciamento completo do genoma deste novo isolado, possivelmente tratando-se do primeiro genoma completo de Pigeon Paramyxovirus 1 descrito da América do Sul. A sequência NDV/pombo/SP-Brasil/CCZ002/2019 foi depositada em banco público internacional de sequências (GenBank), sob o número de acesso MZ458602.

No Brasil, uma linhagem N1065/14 bastante próxima (97,9% de identidade no fragmento F) foi detectada em pombos no Rio Grande do Sul, onde Souza e colaboradores estudaram um surto de mortalidade em pombos domésticos (Columba livia), provenientes de uma praça pública em Porto Alegre, em 2014.

Baseados nos dados moleculares, constatou-se que essa mesma linhagem encontrada no Sul do Brasil, em 2014, provavelmente continuou circulando silenciosamente e apareceu cinco anos depois em São Paulo, uma distância de aproximadamente 1.100 km. Isto demonstra a capacidade destes vírus se deslocarem sem serem percebidos e o potencial risco de disseminação no Brasil, atualmente livre da doença. Portanto é fundamental uma vigilância ostensiva e ativa em todo o País para identificar e monitorar as populações de pombos, não só perto de granjas, mas também em áreas urbanas.


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