O professor Dalmo Dallari em sua casa, em São Paulo, em 2016 – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução/Youtube
A reprodução de parte do depoimento de Dalmo Dallari à Comissão da Verdade e das breves anotações de quem presenciou o fato sugere a importância do passado para se evitar erros no presente.
O depoimento do professor Dalmo Dallari é prova de como eram tratados os cidadãos brasileiros, defensores da paz e dos direitos humanos, em tempos de ditadura.
Depoimento do professor Dalmo Dallari entregue por escrito para a Comissão da Verdade da USP em 2016
O atentado e o comparecimento, enfaixado e em cadeira de rodas, na missa celebrada pelo papa João Paulo II, para leitura de uma homilia
Em junho de 1980, o papa João Paulo II veio ao Brasil. Era o primeiro papa a visitar o País e, tendo um relacionamento muito bom com D. Paulo Evaristo Arns – relacionamento estabelecido em viagens de D. Paulo ao Vaticano, antes de João Paulo II ser eleito papa –, ele incluiu na visita uma passagem por São Paulo. Houve grande participação popular nos lugares por que passou, assim como naqueles em que houve celebrações. Para dar a oportunidade de uma celebração com grande participação popular, foi programada uma missa campal, que seria celebrada no Campo de Marte, campo de pouso da Aeronáutica. Para tanto, construiu-se ali um altar, no topo de uma escadaria de madeira especialmente instalada para essa finalidade.
O papa celebraria a missa olhando para o povo, reunido num amplo espaço que havia embaixo. D. Paulo, juntamente com os bispos auxiliares e outros integrantes da Comissão de Organização da passagem do papa, fez a seleção das pessoas que estariam no altar, indicando aqueles que iriam fazer leituras durante a missa. Entre esses, fui incluído. A missa no Campo de Marte foi programada para as dez horas da manhã do dia 19 de junho e os coadjuvantes da celebração, que iriam estar no altar ao lado do papa, foram convocados para uma espécie de ensaio no período da tarde do dia anterior à missa papal.
Aqui deve ser feito o registro de uma ocorrência de extrema gravidade, reveladora da intolerância primária e do baixo nível ético dos que detinham o poder no sistema ditatorial em diferentes níveis, bem como da extraordinária importância da reação física e espiritual à violência por meios pacíficos e tendo por base uma profunda crença nos valores espirituais.
Saindo do ensaio geral para a missa que havia sido realizado no Campo de Marte, passei por um supermercado e por um banco vizinho para realizar um saque. Depois disso, dirigi-me para casa, que ficava na rua Dr. Esdras, uma rua estreita na qual havia apenas pequenas casas residenciais. Quando me aproximava da rua, um carro em mau estado, um Corcel de quatro portas, cor de vinho, com quatro homens dentro, tentou fechar a minha passagem. Percebi que era uma emboscada. Em vez de abrir o portão para entrar, estacionei na frente da casa ao lado, saí do carro com uma pequena sacola de compras e dirigi-me para minha residência, pretendendo entrar rapidamente. A essa altura, o carro que me tinha perseguido estacionou ao lado e, dele, saíram dois ocupantes. Um deles, alto e forte, empunhando uma arma, disse em tom agressivo: “É a polícia, o senhor vai nos acompanhar”. Ao que retruquei: “Polícia coisa nenhuma”. E fui até a entrada de minha casa, onde toquei a campainha várias vezes, buscando dar o alarma. Em face dessa reação inesperada, o indivíduo que me tinha abordado e mais um companheiro começaram a me agredir, com fortes socos no peito e nas costas, jogando-me para dentro do carro deles.
O carro saiu em alta velocidade e um dos sequestradores que estava no banco de trás disse aos companheiros: “Não podemos ficar muito tempo com ele”. E outro acrescentou: “Precisamos ainda assaltar um supermercado”. Obviamente, estavam querendo simular um assalto e, para reforçar essa farsa, arrancaram o meu relógio de pulso, um pequeno e antigo relógio sem qualquer atrativo, tiraram a aliança de meu dedo e enfiaram a mão em meu bolso, pegando a carteira. Um deles me perguntou onde estava minha arma e, não ouvindo qualquer resposta, não fez uma busca à procura de uma arma, obrigando-me apenas a ficar deitado no fundo do carro, olhando para baixo, para que eu não visse o trajeto. Naquela ocasião, estava sendo aberta a Avenida Juscelino Kubitschek e havia muitos terrenos vagos nas laterais. O carro dos agressores deu muitas voltas pelo bairro, deixando evidente que a ação havia sido mal planejada.
Eles entraram num desses terrenos vagos, estacionaram o carro e me retiraram com extrema violência. Os quatro homens começaram a me dar socos e chutes, no rosto, no peito, nas costas e nas pernas, além de coronhadas. Um soco mais forte me derrubou e, depois de me darem mais alguns chutes em várias partes do corpo, entraram no carro e foram embora.
A essa altura, quase 20 horas, já havia escurecido. Esse foi um momento de extrema importância em minha reação. Apesar das muitas dores, eu continuava lúcido e fiz uma avaliação racional do acontecimento. Eu tive absoluta certeza de que meus agressores eram agentes da ditadura e que não queriam me matar nem realizar um roubo, mas queriam impedir-me de ir à missa e dar meu testemunho. Logo firmei a convicção de que a raiz do sequestro e da tremenda agressão era política e de que o objetivo era impossibilitar minha presença na missa de João Paulo II porque isso iria valorizar muito meus pronunciamentos contra a ditadura e meu trabalho pelos Direitos Humanos na Comissão Justiça e Paz. E logo firmei para mim mesmo a conclusão de que, apesar das dores e dos ferimentos, eu tinha que ir à missa e fazer a leitura da homilia, nem que isso fosse o último ato de minha vida. Era a melhor resposta que eu poderia dar à tremenda agressão.
Depois de algum tempo, levantei-me com grande esforço e me dirigi à Avenida Juscelino Kubitscheck, por onde já passavam muitos carros. Era noite e eles já tinham o farol aceso e, muito provavelmente, vendo meu rosto e corpo ensanguentados e minha aparência, com as roupas arrebentadas e o corpo encurvado, muitos tiveram medo de parar. Mas finalmente uma boa alma parou e me perguntou o que tinha acontecido.
Respondi que acabara de ser assaltado, pedi que me levasse até minha casa, que não era longe dali, e acrescentei: “Pode me deixar na porta, sem se envolver”. E assim fui transportado até minha residência, sentindo muitas dores e tendo muito restringidos os movimentos, mas com a firme convicção de que deveria ir à missa papal no dia seguinte.
Um fato de grande importância, que contribuiu decisivamente para a minha ida à missa, foi o fato de que minha mulher, Sueli, tinha feito um curso de enfermagem e, por isso, havia estagiado em hospitais, tendo conhecido muitos médicos jovens que trabalhavam em atendimento de emergência. Recebendo meu pedido muito enfático de que procurasse me deixar em condições de ir à missa, ela incorporou a ideia e agiu rapidamente, com bastante objetividade. Conseguiu que eu fosse recebido no Hospital Sírio-Libanês, para onde fui conduzido numa ambulância, acompanhado por Sueli, pelas filhas Martha e Mônica e pela amiga Janice, vizinha e grande amiga da família. No hospital, fui atendido por uma equipe de jovens médicos, que foram informados por Sueli sobre as circunstâncias e que, por influência de sua amizade, dispuseram-se a colaborar e a dar-me os cuidados necessários para que, na manhã seguinte, eu pudesse ir ao Campo de Marte. Fui encaminhado diretamente ao centro cirúrgico, pois, naquela época, o hospital não tinha serviço de emergência. Ali foram tratados os ferimentos, sendo colocadas faixas na cabeça e nos braços. A equipe médica foi extremamente dedicada e esse atendimento foi fundamental para assegurar minha presença, evidentemente ferido, na missa papal, dando o testemunho das violências da ditadura e do estímulo para a resistência.
Na manhã seguinte, todo enfaixado e sem a possibilidade de andar, mas absolutamente lúcido e firme na disposição de resistir e estimular a resistência, fui transportado numa ambulância para a missa papal. Um dado curioso é que, por iniciativa própria ou atendendo a alguma solicitação, o secretário de Segurança Pública, um desembargador que, na realidade, não detinha o comando das ações policiais, designara uma escolta, composta de quatro policiais à paisana, para acompanhar a ambulância que me transportou para o Campo de Marte. A notícia de meu sequestro e da tremenda agressão já tinha circulado muito e, para acompanhar-me na missa, dando ajuda e proteção, no momento da chegada ao Campo de Marte, lá estavam alguns amigos e companheiros, fortes e muito decididos, estando entre eles o meu irmão, Adilson Dallari, além de Flávio Bierrenbach e José Geraldo de Almeida Magalhães. Mas a entrada foi fácil, pois, com a escolta policial, não houve nenhuma dificuldade.
Cabe aqui um destaque muito expressivo sobre uma ocorrência que deixou bem evidentes o cinismo e o atrevimento dos que governavam em nome da ditadura. Na ocasião da visita do papa a São Paulo, era governador do estado Paulo Maluf, notório apoiador do golpe de 1964, assim como de prisões ilegais e tortura de presos políticos.
Para surpresa de Adilson, que conduzia minha cadeira de rodas até o altar em que haveria a celebração da missa, ali estava Maluf, sentado ao lado da esposa. Quando viu a cadeira e identificou quem nela estava, ele teve um gesto de fúria que deixava evidentes sua surpresa e sua indignação pela incompetência daqueles que havia contratado para impedir minha ida e, mais ainda, porque, com a minha presença exibindo os ferimentos, seria denunciada mais uma violência da ditadura.
Sobre o comportamento do governo estadual por ocasião da visita de João Paulo II e sobre o cinismo e a ousadia de Paulo Maluf, há um registro claro e preciso na obra autobiográfica de D. Paulo Evaristo Arns, intitulada Da esperança à utopia – testemunho de uma vida. Na preparação da visita do papa e para a montagem de instalações no Estádio do Morumbi e no Ginásio do Ibirapuera, onde o pontífice faria celebrações com grande presença popular, havia sido celebrado um acordo entre a Cúria Arquidiocesana e a Secretaria Estadual de Esportes e Turismo, pelo qual esta assumiria o custo das obras e instalações. Pois, às vésperas dos eventos, a Secretaria informou à Cúria que o governo estadual não daria apoio algum para a instalação dos equipamentos naqueles dois locais. Evidentemente, o governador Paulo Maluf, que odiava D. Paulo pelo apoio dado aos perseguidos políticos, havia decidido manter o governo paulista longe das celebrações. O rompimento do acordo criou um sério problema, pois a Cúria não dispunha de meios para imediato pagamento dos executantes das obras e foi obrigada a recorrer a um empréstimo bancário de emergência. Entretanto, pelo grande envolvimento da população, revelador do prestígio de João Paulo II e da vantagem de parecer seu seguidor, inclusive porque haveria grande cobertura da imprensa, Paulo Maluf compareceu cinicamente à missa no Campo de Marte. Sobre o comportamento hipócrita e ousado do então governador do Estado, eis o testemunho de D. Paulo:
“Muitos ficaram sabendo desse fato (a suspensão do apoio da Secretaria Estadual à última hora) e protestaram abertamente contra o governador Paulo Maluf, que tinha criado tais obstáculos para a realização dos eventos, por ter sido um dos primeiros a se apresentarem para comungar das mãos do Papa na missa celebrada no Campo de Marte, diante de grande número de jornalistas e comunicadores presentes, pois a televisão de grande parte do mundo estava transmitindo ao vivo o evento. Ficara determinado que receberiam a comunhão das mãos do Pontífice apenas as pessoas designadas por algum bispo e certamente o governador não era um deles.”
Paulo Maluf forçou a passagem dos que iam comungar e se colocou entre eles, recebendo a comunhão e posando para a imprensa como apoiador do evento.
Outros pormenores da celebração da missa no Campo de Marte devem ser assinalados. Quando fui para o ensaio geral da celebração, eu havia observado que, na parte de trás do grande altar, que ficava no alto de uma escadaria, havia um acesso com escadas mais largas e suaves. No dia da missa, tal acesso foi reservado aos militares graduados que iriam comparecer. A escadaria da frente, com degraus mais estreitos, estava reservada para as autoridades eclesiásticas. Quando retiraram a cadeira de rodas da ambulância e a dirigiram à escadaria dos fundos, por onde seria mais fácil subir, houve absoluta resistência dos vigilantes militares. Não restava outra possibilidade a não ser obter a concordância dos religiosos para subir pelo meio deles, o que afinal foi obtido. Adilson ia à frente, explicando que era eu quem estava chegando. Atrás, vinham Flávio Bierrenbach e José Gregori carregando a cadeira de rodas, degrau por degrau, com a ajuda dos religiosos.
Quando o padre mestre do cerimonial soube quem estava chegando, o que era para ser uma entrada discreta transformou-se numa grande manifestação. Ele contou aos presentes o que me tinha acontecido, a violência contra mim praticada para impedir minha ida à missa papal. A reação dos cardeais, bispos e sacerdotes foi um caloroso aplauso, ao qual se seguiu um monumental aplauso de toda a multidão presente. E isso foi transmitido para o Brasil e o mundo pelas rádios e televisões que faziam a cobertura do evento. O ato de extrema violência ordenado e executado para impedir minha presença na missa do papa João Paulo II acabou dando uma importante contribuição para a denúncia da ditadura e de suas violências.
Minha reação positiva, firme e determinada, apesar da tremenda agressão que acabara de ser praticada e do sofrimento físico dela decorrente, teve o efeito de eloquente denúncia e de vigorosa exortação à resistência à ditadura e aos seus financiadores e subservientes executores.
O que aprendi com Dalmo Dallari ao participar desta história
Entramos no hospital e antes da porta do seu atendimento se fechar, Dalmo enfiou a mão no bolso, tirou uma caixinha de colírio e disse: “Deixe em casa, é para a minha filha”.
Fiquei no corredor do hospital com um misto de medo e coragem. Desfrutava na época da força juvenil, indignada diante da barbárie. No momento temia pela vida do Dalmo. Liguei para o Carlos Guilherme Mota, editorialista na Folha de S. Paulo, e para o Laerte Fernandes, jornalista do Jornal da Tarde. A conclusão foi: é melhor você ficar no hospital como se estivesse esperando atendimento e ligue para contar o que está acontecendo. Laerte sugeriu: “Fica aí. É difícil um jornalista entrar no hospital agora. A notícia já está correndo no rádio”.
Naquela época, como acontece ainda hoje, a imprensa ao dar notícias ajudava a evitar violências ou desaparecimento de pessoas.
Passei a noite ali entre uma cadeira e outra, um telefonema e outro (com ficha para ligar). De vez em quando enfiava a mão no bolso e olhava o vidrinho de colírio; pensava no Dalmo, pai de seis filhos. Eu tinha deixado em casa duas crianças pequenas quando a filha do Dalmo tocou a campainha dizendo que o pai tinha sido sequestrado.
Vi as compras do supermercado no chão. Vi o Dalmo chegar ensanguentado.
Eu tinha duas crianças pequenas em casa, ele tinha seis filhos.
Fomos para o hospital. A minha utilidade, além do afeto, era telefonar e mandar notícias, dizer quem iria aparecer, avisar sobre a presença de amigos e inimigos. Foi uma longa noite e aconteceram muitos eventos. Lembro bem dos amigos, do Adilson Dallari e da polícia.
Pode parecer estranho, mas a imagem forte naquela noite, a “foto” que a memória recupera por vontade própria, foi a caixa do colírio. Mesmo machucado, Dalmo deixava de pensar em si para pensar no outro, nos outros, como sempre fez ao longo da vida.
Naquela noite me lembrei da Rua Dr. Esdras, dos filhos e amigos que andavam ali, de um lado para o outro. Lembrei do José Resende, da Sophia Silva Telles e dos encontros na mercearia, vizinhos generosos, atentos uns com os outros. Pensei nas crianças, nos amigos, vivos e mortos, na perseverança política do Dalmo.
Naquela noite, cansada, aprendi com ele a fazer política de fato, uma política que nasce do amor, do sono e de um vidro de colírio.
Quanta saudade.
P.S. Passados 38 anos do atentado, o professor Dalmo, impedido por motivos de saúde de continuar presidindo a Comissão da Verdade da USP, pediu que eu desse prosseguimento à realização do Relatório, finalizado e entregue ao reitor da USP em fevereiro de 2018.