Da revolução ao uso e abuso de ansiolíticos

Roberto DeLucia é psicofarmacologista do ICB-USP e Adriana Scudeller é estudante visitante da FM-UFMG

 20/03/2017 - Publicado há 7 anos

Roberto DeLucia - Foto: Arquivo pessoal via

Roberto DeLucia – Foto: Arquivo pessoal via LinkedIn

A ansiedade constitui uma das principais características humanas na sociedade moderna. Neste contexto, ansiedade é um estado emocional de desconforto desencadeado por situações potencialmente ameaçadoras. Assim, ansiedade está ligada à percepção de contextos que sinalizam a possibilidade de ocorrência de situações negativamente reforçadas. Ademais, ansiedade está presente em indivíduos normais em resposta ao estresse, em pacientes psiquiátricos ou em doenças somáticas.

Há importante distinção entre a ansiedade normal e a patológica. Nesta última, o grau de estimulação nervosa central e autonômica não é proporcional às necessidades objetivas da situação externa. Do ponto de vista de diagnóstico (DSM-V), a ansiedade é classificada como a principal manifestação psicopatológica nos seguintes transtornos: pânico, fobia, obsessivo-compulsivo, estresse pós-traumático e ansiedade generalizada.

Durante séculos procuraram-se meios para aliviar a ansiedade, a dor e o sofrimento, visando a devolver o sono tranquilizador aos incapazes de dormir. Até o século XIX, as preparações disponíveis eram limitadas, destacando-se substâncias opioides (caldo de láudano) e de álcool etílico, que foram utilizadas pelas civilizações europeias e orientais.

O avanço da tecnologia químico-farmacêutica, no início do século XX, possibilitou o desenvolvimento de sedativos, tais como os sais de brometo, o paraldeído e o hidrato de cloral, que se mostraram relativamente ineficazes clinicamente. Mais tarde, foram substituídos pelos derivados do ácido barbitúrico, como o barbital em 1903 e fenobarbital em 1912, que apresentam grandes vantagens de uso sobre os sedativos anteriores. No fim da década de 40, a mefenesina e seu derivado meprobamato introduzido na terapêutica em 1956, não apresentaram grandes vantagens para substituir os barbitúricos.

Os primeiros ansiolíticos benzodiazepínicos foram sintetizados em meados da década de 1950. Após exaustivas avaliações clínicas, o primeiro fármaco, clordiazepóxido, é lançado no mercado em 1960, causando um grande impacto para o tratamento dos transtornos de ansiedade. Era o inicio do que foi chamado naquela década de “revolução dos benzodiazepínicos”. Em pouco tempo os benzodiazepínicos tornaram-se os medicamentos mais populares e prescritos para o tratamento de transtornos de ansiedade em todo mundo.

Nas três décadas seguintes, os benzodiazepínicos representaram o ponto de viragem no tratamento seletivo da ansiedade e insônia, que impulsionou muitas empresas farmacêuticas a desenvolver grande quantidade de compostos derivados da estrutura química 1,4-benzodiazepina. Atualmente, existem mais de 20 representantes desta classe de compostos disponíveis no mercado em mundo todo. No Brasil, o diazepam, já foi formulado em mais de 20 especialidades farmacêuticas.

Os primeiros ansiolíticos benzodiazepínicos foram sintetizados em meados da década de 1950

A dimensão do consumo foi verificada em estudos internacionais de prevalência, mostrando que uma entre dez pessoas usava regularmente esses medicamentos. No Brasil, a prevalência de ansiolíticos na cidade de São Paulo foi estimada em 10,2% no ano de 1989. Mais recentemente, estimativas realizadas pelo CEBRID, através de levantamento domiciliar, mostraram que o uso na vida de ansiolíticos foi de 3,3% da população brasileira (entre 12 e 65 anos). Contudo, o mais importante desses resultados é a observação de mudanças do padrão de prescrição no uso crônico dos medicamentos ao longo dos últimos anos.

Comumente, os medicamentos utilizados são o clordiazepóxido, diazepam e lorazepam, sendo o oxazepam mais indicado em pacientes com distúrbios hepáticos. Recentemente, o clonazepam (Rivotril®), inicialmente indicado como antiepiléptico se tornou rapidamente o ansiolítico mais vendido no país e o segundo da lista de medicamentos mais consumidos. Segundo o fabricante as normas recomendadas pela ANVISA para os produtos farmacêuticos foram seguidas, contudo estudos clínicos de comprovação de eficácia e segurança seriam bem-vindos.

Geralmente, os ansiolíticos são mais eficazes na fase aguda dos distúrbios da ansiedade. Ademais, o tratamento da ansiedade pode ser realizado em associação com psicoterapia ou outras técnicas comportamentais. É oportuno acrescentar que os transtornos psiquiátricos de ansiedade grave, tais como transtorno de pânico com agarofobia, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de ansiedade generalizada e fobia social são tratados preferencialmente com os antidepressivos, mesmo assim, os ansiolíticos potentes (alprozalam) têm um lugar ao sol no tratamento desses transtornos.

Após mais de 50 anos do lançamento do clordiazepóxido, o uso de benzodiazepínicos continua a instigar controvérsia, em particular o potencial de abuso e dependência. Apesar da conhecida eficácia ansiolítica dos benzodiazepinicos, o incremento de consumo tem proporcionado o uso indevido ou abusivo. De fato, os ansiolíticos passaram ser usados em excesso quase sempre em indivíduos com histórico de uso abusivo de outras substâncias como os opioides. Ademais, o flunitrazepam, contrabandeado nos EUA foi usado abusivamente para facilitar o estupro, denominado popularmente (date rape). No Brasil, essa tentativa de ataque sexual é conhecida como “Boa noite Cinderela”, onde são também usados outros benzodiazepínicos e substâncias de abuso (álcool, cocaína, canabis).

O potencial de dependência dos benzodiazepínicos começou ser evidenciado com o primeiro relato sobre sintomas de abstinência quando retirada abrupta do fármaco em pacientes que usavam doses altas de clordiazepóxido. Em meados da década de 1970, os relatos de casos de dependência passaram a ser mais frequentes na literatura médica. Esses relatos influenciaram muito os padrões de prescrição de BZD nos países britânicos e EUA. No Brasil, foi avaliado o impacto da legislação mais restritiva (Portarias 27 e 28, Ministério da Saúde) na venda de medicação psicotrópica, em particular os ansiolíticos e antidistônicos sofreram uma redução de venda.

Após mais de 50 anos do lançamento do clordiazepóxido, o uso de benzodiazepínicos continua a instigar controvérsia, em particular o potencial de abuso e dependência

No mundo atual, muitos indivíduos usam abusivamente os ansiolíticos para lidar com situações estressantes em atividades cotidianas, na tentativa de solucionar problemas individuais e sociais (perda de emprego) ou então, para obter sensações prazerosas (euforia).

Neste contexto, é muito importante a avaliação dos riscos de uso abusivo, concomitante de álcool e outras substâncias de abuso (p.ex.: cocaína, heroína), condição psiquiátrica (ansiedade grave) que requer uso prolongado de ansiolíticos.

Por outro lado, poucos usuários crônicos que recebem ansiolíticos nos tratamentos, abusam dessa medicação quando comparados àqueles em estado ansioso ou com insônia, indicando a importância da personalidade do paciente. Além disso, as propriedades reforçadoras relacionadas à autoadministração de benzodiazepínicos são discretas quando comparadas a outras substâncias de abuso. Nas doses terapêuticas usuais por períodos não superiores a quatro semanas, o risco da dependência é reduzido.

Não há duvidas de que os transtornos de ansiedade são os mais comuns nos dias atuais e a revolução dos benzodiazepínicos representou o ponto de viragem entre os ansiolíticos e sedativos, para o uso terapêutico por serem mais seguros e eficazes. Contudo, o uso abusivo e o potencial de dependência desses medicamentos e outras substâncias de abuso não podem ser negligenciados, segundo a OMS, por se tratarem de sérios problemas mundiais, tanto na esfera da Saúde Pública como no nível socioeconômico.

 


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