Como a cobertura jornalística reconfigura a narrativa e os desdobramentos do conflito entre Palestina e Israel

Por Vitória Paschoal Baldin, mestranda, e Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP

 08/02/2024 - Publicado há 3 meses
Vitória Paschoal Baldin -Foto: Arquivo pessoal
Daniela Osvald Ramos – Foto: Lattes

 

No epicentro da conturbada relação entre Palestina e Israel, além das disputas territoriais e políticas, a influência da mídia noticiosa transformou significativamente a dinâmica do embate. As entrelaçadas relações entre mídia, estratégias político-comunicativas e o panorama do conflito revelam como a cobertura jornalística reconfigurou a narrativa e os desdobramentos dessa longa e complexa disputa, e como a cobertura jornalística atualmente tem se mostrado mortal para os jornalistas.

O conflito entre Israel e Palestina é mais do que uma narrativa de hostilidade territorial. É uma teia complexa na qual política, sociedade e comunicação convergem, moldando e sendo moldadas por eventos que ecoam além das fronteiras geográficas. A mídia é um campo de batalha crucial nesse conflito, influenciando as percepções globais sobre a questão. Os lados envolvidos buscam legitimidade e apoio internacional, fazendo da narrativa uma ferramenta essencial. Entender a relação entre mídia e conflito nesse cenário não é apenas analisar o conteúdo dos meios de comunicação, mas reconhecer uma interação complexa e interdependente entre eles. Assim, os materiais noticiosos são elementos ativos na construção, interpretação e perpetuação desses conflitos.

A década de 1980 marca uma mudança significativa no movimento nacional palestino, incorporando à sua narrativa o ideal de justiça social. Inspirados por figuras como Gandhi e Martin Luther King, os Territórios Palestinos Ocupados (TPO) testemunharam um movimento de resistência, inicialmente pacífico, alimentado por um acúmulo de raiva e frustração, desafiando o domínio do Estado de Israel. A reação violenta do governo israelense despertou um intenso interesse midiático, transformando a revolta em uma ferramenta de amplificação para a causa palestina.

A mídia noticiosa internacional torna-se no período uma frente essencial na disputa pela legitimidade dos atores envolvidos, utilizando imagens do sofrimento da população civil para pressionar negociações. No entanto, a mudança na narrativa midiática a partir dos anos 2000 impactou significativamente os esforços de estabelecer processos de paz.

Nos primeiros anos do novo milênio, a população palestina, inicialmente esperançosa com os Acordos de Oslo, viu-se desiludida pela falta de mudanças práticas. A mídia israelense, transformada após a Primeira Intifada, passou a apoiar fervorosamente o aparato estatal e militarista, narrando os conflitos em termos existenciais de vida e morte. Diante da miséria econômica e da ausência de transformações significativas, um clima de revolta similar ao período pré-Primeira Intifada emergiu. A Segunda Intifada, iniciada em 2000, contrastou com a primeira, marcada por confrontos sangrentos, resultando em milhares de mortes, impactando profundamente a vida da população civil.

A mídia desempenhou um papel crucial na representação do conflito, mas a intimidação de jornalistas durante a Segunda Intifada favoreceu a aceitação fácil de informações oficiais israelenses. A falta de atenção jornalística pró-Palestina na Segunda Intifada, devido a restrições de acesso aos Territórios Palestinos Ocupados (TPO), permitiu que a narrativa israelense prevalecesse. Jornalistas palestinos enfrentaram desafios ao apresentar perspectivas independentes, muitas vezes coagidos a incluir declarações oficiais israelenses em detrimento dos fatos observados. Os dados sobre violações à liberdade de imprensa nos TPO, predominantemente cometidas por autoridades israelenses, revelam a difícil prática jornalística em um cenário de conflito. Impedimento de acesso, agressões físicas e restrições a contas em plataformas digitais demonstram os desafios enfrentados pelos jornalistas na região. O assassinato de Shireen Abu Akleh, jornalista com dupla nacionalidade (americana e palestina), em maio de 2022, reforça a dificuldade da cobertura naquela região. Segundo dados do Comitê de Proteção para Jornalistas (CPJ), foram 20 jornalistas mortos por forças militares israelenses em 22 anos.

Além disso, a invasão americana ao Afeganistão e ao Iraque também desviou a atenção midiática da Segunda Intifada, comprometendo seu espaço na cobertura internacional, especialmente nos veículos de língua inglesa. Essa relação entre o jornalismo internacional e os eventos de mobilização social é crucial para o sucesso político e comunicativo desses movimentos. A natureza da mobilização, o acesso aos eventos e a atenção midiática desempenham um papel crucial nos resultados das Intifadas.

Em meio a essa complexidade, a mídia continua sendo uma arena de batalha, em que a representação do conflito é moldada por narrativas estratégicas, disputando a simpatia do público internacional, e de maneira ainda mais acirrada quando pensamos na circulação de imagens e vídeos em plataformas digitais, sem a devida checagem sobre suas origens e veracidade. Depois da guerra que eclodiu a partir dos ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023, a complexidade de interpretação crítica deste conflito histórico atinge um nível de polarização no qual o debate é às vezes literalmente interditado, como no caso do professor Michel Gherman, ocorrido em 10 de outubro de 2023 no Instituto de Relações Internacionais da PUC (Pontifícia Universidade Católica), no Rio de Janeiro. A atual fase do conflito também virou combustível para a guerra cultural nos Estados Unidos, com a convocação e posterior pedido de renúncia de reitoras (todas mulheres) de universidades norte-americanas, como Harvard e a Universidade da Pensilvânia.

A falta de contexto histórico e o uso de estereótipos na representação dos palestinos têm sido observados em diferentes graus. Os estudos ressaltam o papel das fontes de notícias, com fontes israelenses sendo mais frequentemente utilizadas e consideradas confiáveis, enquanto as fontes palestinas têm menos visibilidade, contribuindo para o viés na cobertura. Também este fato atinge um ponto crítico na atual fase, evidenciada por uma alta na mortalidade de jornalistas palestinos e estrangeiros que buscam diversificar a angulagem da cobertura em Gaza. Na contagem do CPJ, “79 jornalistas e trabalhadores da mídia foram confirmados como mortos: 72 palestinos, quatro israelenses e três libaneses; 16 jornalistas ficaram feridos; três jornalistas foram dados como desaparecidos; 21 jornalistas foram presos, e ocorreram múltiplas agressões, ameaças, ataques cibernéticos, censura e assassinatos de familiares”.

Este número exacerbado, em pouco espaço de tempo, faz emergir a busca pela diversidade de pontos de vista nesta cobertura como um paradigma mortal para a segurança de jornalistas que cobrem áreas de conflito, fazendo-nos pensar também em como a “palestinização do mundo”, como apontam Juliana Carvalho e Cláudio Coração, agrava a já deteriorada segurança dos profissionais da informação em um cenário de desinformação e emergência de novos atores de violência contra estes profissionais, como o cidadão comum, no Brasil, no período 2019-2022. A Palestina geográfica é quase impossível de ser acessada sem perigo de morte para jornalistas, mas se reterritorializa em eventos como o 8 de janeiro de 2023 na invasão do Congresso Nacional, por exemplo; ou, ainda antes, no 6 de janeiro de 2022, na invasão do Capitólio, nos protestos do Black Lives Matter, nas manifestações nacionalistas brasileiras – os exemplos são vastos, infelizmente.

A análise desses elementos ressalta a complexidade da relação entre jornalismo, terrorismo, terrorismo de Estado, guerra e conflitos sociais. Compreender esses fatores é crucial para uma visão crítica da representação midiática e para a avaliação das dinâmicas políticas e comunicativas envolvidas. Nos eventos recentes, como os ataques em Gaza, a mídia continua a desempenhar um papel fundamental na disseminação das narrativas, refletindo a urgência de compreender a influência desses meios no entendimento global do conflito palestino-israelense.
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