Centenário de Henrique de Senna Fernandes: o marco da literatura de Macau

Por Sérgio Pereira Antunes, professor convidado nos cursos de extensão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 08/12/2023 - Publicado há 8 meses
Sérgio Pereira Antunes – Foto: Arquivo Pessoal
Por todo o ano de 2023, vários eventos, em especial, acadêmicos comemoraram o centenário de Henrique de Senna Fernandes, advogado prestigiado e tido como o icônico escritor de Macau – o pequeno enclave no sul da China, administrado por cerca de 400 anos por Portugal e que já conta com 23 anos como uma Região Administrativa Especial da República Popular da China aos moldes do conceito de “um país, dois sistemas” de Deng Xiaoping.

O centenário é oportunidade de celebrar, conhecer e prestigiar a obra desse importante expoente da múltipla e interessante literatura de Macau.

Henrique de Senna Fernandes, nascido em 15 de outubro de 1923, teve formação literária portuguesa: na juventude, no Liceu de Macau, conheceu e se apaixonou pelos grandes escritores portugueses, como Camões, uma referência incontornável, de quem aprendeu o lirismo e a paixão pela escrita em cada verso e cada canto de sua obra, e Eça de Queiroz, de quem absorveu a grandeza da escrita e percebeu o quão vazias – ou ocas, como ele mesmo descreveu – eram as personagens femininas do escritor português. Assim aprendeu que se um dia escrevesse deveria exaltar a dignificação da mulher. Em Coimbra, para onde se deslocou para estudar Direito, teve contato com os escritores brasileiros. Leu Olhai os lírios do campo, de Érico Verissimo, e parte da obra de Jorge Amado. Se Amado tratava da Bahia, Senna Fernandes poderia falar, em sua escrita, de sua terra: Macau.

A estreia literária se deu com seus primeiros contos publicados em um periódico local. Em seguida, o conto “A-Chan, a tancareira” – um hino à maternidade e à dignificação da mulher num contexto do Ocidente em face do Oriente – foi premiado em Coimbra (Prêmio Fialho de Almeida dos Jogos Florais da Queima de Fitas de 1950, da Universidade de Coimbra). Com ele, o autor trazia importantes características que lhe marcariam toda a carreira, entre outras: personagens femininas fortes e paixão por falar de sua terra natal.

Diplomado em direito, estabeleceu-se em Macau como conceituado advogado cuja habilidade garantiu-lhe a independência financeira para poder se dedicar a sua grande paixão: a escrita. Assim, no conforto da bem-sucedida carreira jurídica, Senna Fernandes publicou, em 1978, uma coletânea de seus primeiros escritos sob o título Nam Van: contos de Macau, incluindo o premiado “A-Chan, a tancareira”. Em seguida, escreveu, em Macau, dois romances com características marcantes: Amor e dedinhos do pé (1986) e A trança feiticeira (1993), cujos enredos densos agradaram a crítica e foram quase que prontamente adaptados para o cinema.

Em 1997, em entrevista concedida à Helena Balsa na televisão portuguesa (RTP), Henrique de Senna Fernandes ressentia-se de não ser conhecido como escritor em Portugal. No entanto, sua obra já havia atravessado as fronteiras do pequeno enclave: o escritor já era um ícone da literatura de Macau.

Em 1998, publicou Mong-Há, mais uma coletânea de contos ao modo que gostava de produzir. Trazia ali as histórias com as quais entretinha os amigos por horas em seus encontros nos elegantes salões do restaurante da Pousada de excelente serviço e excepcional culinária no monte de Mong-Há. As conversas e as histórias contadas à mesa resultaram em mais um livro de qualidade literária.

Nos anos 1990, no Brasil, Benilde Justo Caniato, na Universidade de São Paulo, em seu grupo de estudos sobre a literatura de Macau, destacava várias obras e já se debruçava sobre Henrique de Senna Fernandes, Rodrigo Leal de Carvalho e tantos outros. Em 1999, no mestrado, Agueda de Araújo Bacchi Galante apresentava o trabalho Henrique de Senna Fernandes: um discurso revelador da literatura e língua de Macau. Apenas a academia ocupava-se, no Brasil, sobre essa literatura. A produção literária de Macau não tinha publicação no território brasileiro e era de difícil obtenção, fatos que afastavam esses trabalhos literários do leitor brasileiro.

Em Portugal, o acesso às publicações e lançamentos da literatura de Macau continuava facilitado pela Delegação de Macau, em Lisboa, onde funcionava uma livraria especializada. Outrossim, a Feira do Livro de Lisboa anualmente apresentava um estande das publicações de Macau, divulgando escritores já reconhecidos e outros de vanguarda.

Encontros acadêmicos internacionais, como o Simpósio Mundial de Estudos da Língua Portuguesa (Simelp), que literalmente correram o mundo, e outros eventos, como os Festivais de Artes de Macau, trouxeram interesse pelos escritores locais, pela literatura e até mesmo para o seu dialeto de léxico português, o patuá. Esses eventos tinham importante repercussão internacional com o condão de tornar a literatura de Macau conhecida e estudada em outras partes do mundo, em especial, o lusófono.

No Brasil, na virada do século, aparecem novos trabalhos acadêmicos, como a tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro por Mônica Simas Margem do destino: a literatura em língua portuguesa na locação da cultura de Macau, em 2001. Anos mais tarde, essa tese deu novos frutos: era a vez dessa estudiosa trazer os resultados de seu pós-doutoramento em Macau para incrementar os estudos, em especial, de pós-graduação na Universidade de São Paulo com reflexos em outras instituições universitárias brasileiras.

Em 2008, o mercado editorial brasileiro lançava pela Editora Gryphus a primeira coletânea de contos de Henrique de Senna Fernandes (Nam Van) e seus dois romances (A trança feiticeira e Amor e dedinhos do pé). Essa iniciativa abriu o mercado editorial brasileiro de forma mais ampla no meio acadêmico, mas também viabilizando o acesso do público leitor à apreciação dessa curiosa literatura.

Henrique de Senna Fernandes veio a falecer em 4 de outubro de 2010, coroado por uma obra marcante para a identidade macaense e sua terra. Postumamente foram publicados ainda dois romances: Os dores, em 2012, inacabado, e A noite desceu em dezembro, em 2015.

Entre 2010 e 2015, no Brasil, até mesmo na área de extensão universitária, a literatura de Macau e seus escritores angariavam interessados em minicursos vinculados, de forma inusitada, aos Departamentos de Letras Orientais tanto da Universidade de São Paulo como da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Por suas características, Henrique de Senna Fernandes alicerçou-se na literatura de Macau e a crítica abraçou-o, como afirma Mônica Simas, na obra Contributos para o estudo da literatura de Macau: trinta autores de língua portuguesa, editada pelo Instituto Cultural de Macau, em 2016: “Este escritor é, sem dúvida, o maior romancista macaense, considerado por muitos críticos, com justeza, o grande guardião da memória de Macau”.

No Brasil, a difusão da literatura de Macau continuava, e como fruto dos estudos e divulgação por cursos universitários, inclusive a nível de extensão, em 2018, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, uma tese de doutoramento especificamente sobre Henrique de Senna Fernandes foi defendida por Bruno Tateishi, intitulada Vozes de Macau: identidade e memória no romance de Henrique de Senna Fernandes.

Em 2022, a administração chinesa inaugurou a Casa da Literatura de Macau que, em exposições permanentes e temporárias, aos moldes do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, trata, por sua vez, com carinho do patrimônio da atraente literatura de Macau. A Casa da Literatura de Macau, como instituição, tem por missão: a) criar a história da literatura de Macau; b) preservar obras literárias, materiais de valor histórico e relíquias culturais de Macau; c) apresentar o cenário literário de Macau; e d) investigar e promover o desenvolvimento da literatura de Macau. Como não poderia deixar de ser, a Casa da Literatura marcou o ano de 2023 com a exposição online 100º aniversário do nascimento de Henrique de Senna Fernandes.

Em 2023, pelo menos dois encontros acadêmicos se dedicaram integralmente ao estudo da obra de Henrique de Senna Fernandes. Em Macau, Lembrando Henrique de Senna Fernandes: jornadas em torno da identidade macaense, e, em Veneza, 100 anni di Henrique de Senna Fernandes: Macao: l’identità, le memorie e la traduzione culturale. Ambos os eventos, quase que complementares um ao outro, reuniram estudiosos da obra de Senna Fernandes dos quatros cantos do mundo: Brasil, Portugal, Itália, Inglaterra, Singapura e Macau.

O centenário de Henrique de Senna Fernandes, portanto, é alento para a continuidade e renovação dessa pujante literatura.

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