Caminhos de Cervantes: o povoado de Esquivias, inspiração fundadora do romance “Dom Quixote”

Por João Eduardo Hidalgo, pós-doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 22/09/2023 - Publicado há 10 meses
João Eduardo Hidalgo – Foto: Arquivo pessoal

 

O romance Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), é considerado um marco iniciador do romance moderno, no qual o protagonista não é um herói clássico como Hércules, Ulisses ou o Rei Arthur, mas um homem comum com suas mazelas, desejos, inseguranças e percepção não mais ubíqua da realidade. O romance é dividido em duas partes, a primeira foi publicada em 1605 e a segunda em 1615.

Miguel de Cervantes faz uma paródia das novelas de cavalaria, um gênero que carrega valores distorcidos, pois são representantes da alta e anacrônica burguesia medieval. Um cavaleiro andante tem sempre procedência nobre, sem a qual ele não tem o direito de ser armado como tal, deve ser jovem, ter habilidade guerreira e, sobretudo, ter uma donzela para amar. Cervantes subverte todo o modelo: Alonso Quijano não tem procedência nobre relevante, é um fidalgo com poucas posses, tem mais de cinquenta anos, não tem habilidades com as armas, tem a mania da leitura e sua donzela é apenas uma (suposta) agricultora do povoado de El Toboso, na região de La Mancha. As referências visuais em Dom Quixote são abundantes, seu escudeiro é Sancho Panza, um obeso pançudo; ele próprio é caracterizado por este escudeiro como o Cavaleiro da Triste Figura. Durante trabalho de campo de minha pesquisa pós-doutoral desenvolvido no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, nos meses de fevereiro e março de 2022, revisitei alguns pontos centrais da chamada Rota do Quixote, na Espanha, lugares onde o personagem vive aventuras e nos quais sabemos que Miguel de Cervantes viveu muitas das suas.

Um nome pouco associado ao grande personagem Dom Quixote é o do povoado de Esquivias, a 44 quilômetros ao sul de Madri e a 45 quilômetros ao norte de Toledo. Sabemos da casa de Cervantes em Madri, que ficava nas vizinhanças da moradia de seu desafeto prolífico, Lope de Veja (1562-1635), que escreveu mais de 1500 obras de teatro, gênero no qual Cervantes tentou se fixar, sem sucesso. Também é amplamente conhecida a Casa Museu Cervantes de Alcalá de Henares, 40 quilômetros ao nordeste de Madri, onde ele provavelmente nasceu, uma casa muito modificada, segundo o pesquisador Luis Astrana Marín (1889-1959), o maior cervantista que a Espanha já teve. Acompanhei uma última modificação nessa casa, que foi a colocação de uma estátua de Quixote e outra de Sancho Panza num banco na frente da fachada para servir à era da selfie e companhia. Essa casa em Alcalá é muito atuante em fazer exposições de primeiras edições e eventos, ajudada pelo fato de ser (provavelmente) localizada na cidade natal de Miguel de Cervantes. A certidão de batismo de Miguel de Cervantes foi encontrada em 1748 em Alcalá e sobreviveu à Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Consta que, em Esquivias, Miguel de Cervantes viveu entre 1583 e 1587, inclusive casou-se, em 1584, com uma fidalga do lugar, de nome Catalina de Salazar y Palácios (1565-1626), e viveram na casa de um tio dela de nome Dom Alonso Quijada de Salazar, de quem ela era herdeira, hoje Casa Museu Cervantes. Este senhor Alonso Quijada era um rico proprietário de terras, que tinha um amor pela leitura de livros de cavalaria e era conhecido no povoado por esta excentricidade. O cervantista Astrana Marín (entre outros) acredita que ele serviu de inspiração para o personagem mais nomeado da literatura ocidental, Dom Quixote, que, segundo Cervantes, era o fidalgo Alonso Quijada ou Quijano, de um povoado que ele não queria lembrar-se. Quando casa com Catalina, Cervantes, com 37 anos, já tinha ficado prisioneiro dos berberes (árabes) no norte da África durante cinco anos, quando retornava da batalha de Lepanto, na Grécia, ao comando de Juan de Áustria; tinha publicado poemas, obras de teatro e alguns relatos. Consta que, em outubro de 1584, apenas dois meses antes de seu casamento, teve uma filha natural de nome Isabel com Ana Franca de Rojas, uma senhora casada de Madri; até onde sabemos, essa filha não deixou descendentes.

Na igreja de Nuestra Señora de la Asunción de Esquivias, está registrado o casamento de Cervantes e Catalina, no dia 12 de dezembro de 1584. Nessa mesma igreja, compilam-se certificados de batismo e de morte de alguns moradores do povoado que irão inspirar os personagens de Dom Quixote. Destaco alguns: em 20 de junho de 1569, nasce Sancho, filho de Hernando de Gaona e Luisa de Godoi; em 10 de janeiro de 1582, foi batizado Juan, filho de Juan Carrasco e de Juana de Ujena; em 15 de março de 1588, morreu Diego Ramirez, que, ao casar-se com Juana de Isaba, conhecida como a Vizcaína, passou a ser nomeado como o Vizcaíno; Juana de Isaba era parente de Catalina Palácios. Sancho, Carrasco e Vizcaíno;, todos são personagens que aparecem na narrativa cervantina de Dom Quixote.

Na Plaza de España de Esquivias no Casino Rock Café, pode-se comer um prato tradicional manchego nomeado no Quixotemigas del pastor con huevo frito (pão moído e frito com presunto, verduras e bastante tempero, acompanhado de um ovo frito) por 7,50 euros, ou duelos y quebrantos (ovos com linguiça, panceta e temperos). Tive o prazer de ser aluno em 1990 da grande cervantista Maria Augusta da Costa Vieira; com ela fiz minha primeira leitura do Quixote no original, na minha graduação na FFLCH (já tinha lido e ficado encantado com a versão de Monteiro Lobato), e foi ótimo enviar uma foto do prato de duelos para seu WhatsApp e receber um “que rico”.

Nesse trabalho de campo, fiz um registro fotográfico de uma Rota do Quixote, com a qual eu venho cruzando nos últimos trinta anos, em percursos para visitar familiares em Granada. Também gravei em vídeo uma extensa entrevista com a informada diretora de turismo da Casa Museu Cervantes de Esquivias, Suzana García Moya. Nesta parte me ajudou o doutorado que fiz na Escola de Comunicações e Artes da USP com a ítalo-brasileira Mariarosaria Fabris, especialista na ruptura de linguagem cinematográfica que foi o neorrealismo italiano, e do próprio cinema como arte.

Em Esquivias, me hospedei no Hostal Dulcinea; em Argamasilla de Alba, outro povoado fundamental na obra, no Hostal El lugar de La Mancha, na suíte Dom Quixote; em Consuegra, fotografei no monte Calderico os 12 moinhos de Dom Quixote, mas os moinhos vistos como gigantes contra os quais Dom Quixote se enfrenta também podem ser os moinhos de Puerto Lápice ou do Campo de Criptana. Os de Consuegra são os mais monumentais e foi dos pés do moinho Sancho que fiz uma chamada para a companheira desta investigação, Maria Arminda do Nascimento Arruda. Disse que Dom Quixote não estava por ali, mas que a sua memória é um valor social e cultural imenso, como é imensa a imaginação desbordante de Cervantes, senhor dos sonhos de Dom Quixote.

Alcalá de Henares pode ser a cidade natal de Miguel de Cervantes, assim como Alcázar de San Juan também tem um Cervantes. Qual é o real (importa)? Dulcinea viveu em El Toboso? Esquivias ou Argamasilla de Alba é “um lugar de La Mancha cujo nome não quero me lembrar”? Dom Quixote sonhou com Dulcinea ou com moinhos de vento em Ocaña, Tembleque, Mota del Cuervo, Villarrobledo, Ruidera, Manzanares, Valencia e foi derrotado em uma praia em Barcelona?

Quem sabe tentar localizar um lugar específico seja limitar o caráter multifacetado do texto de Cervantes; todos os elementos referenciais descobertos nos últimos 400 anos mostram como o contexto espanhol do século 16 foi determinante na obra. A trama principal é permeada por episódios menores, a própria autoria é dada como de outro, um sábio árabe Cide Hamete Benengeli, que tem até página no ciberespaço. Por exemplo, a musa Dulcinea del Toboso é um ponto de partida e de chegada de todos os percursos sintagmáticos que o leitor escolha para reconstruir as partes da narrativa, a partir das palavras de Dom Quixote e de outros personagens que a descrevam e a tentem determinar; e que acabam por criar versões complementares e distintas da “original”, que só existe na imaginação de Quixote, pois ela está encantada e nunca se apresenta em primeira pessoa; Dulcinea é um espelhismo fundamental da literatura, assim como deve ser uma musa.

Cervantes estabelece um jogo bastante sofisticado de relação conosco, seu público, já que ele infere que a unidade não é dada por ele (escritor/autor); diz que o importante são os personagens e a história de Dom Quixote, que muitos personagens já conhecem e perguntam ao Quixote se é dele a famosa história publicada. A literatura de cavalaria oferece um modelo para Dom Quixote, nela se retomam heróis lendários, mitológicos, de uma tradição histórica, mas que são objeto de uma desconstrução, paródia irônica centralizada no binômio leitor/obra, que tem como fundo um vasto mosaico da sociedade espanhola decadente/desencantada da época, regida por Felipe III, conhecido como um homem insignificante e um monarca desprezível. A ficção é maior que o registro do real, já que ela contém todos as referências ordenadas pela narrativa de um autor, que joga com a perspicácia de todos nós, seus desocupados leitores.

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