A Vale em Brumadinho: a quem interessa a sustentabilidade das empresas?

Solange Garcia é professora de Contabilidade e Responsabilidade Social Corporativa da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP;
Fabiano Guasti Lima é professor de Finanças da FEA-RP da USP

 27/02/2019 - Publicado há 6 anos

Solange Garcia – Foto: Arquivo pessoal

Fabiano Guasti Lima – Foto: Arquivo pessoal
A tragédia em Brumadinho nos traz mais uma vez a reflexão sobre qual é o significado da tão propalada ‘sustentabilidade’ corporativa. Em uma visão mais ampla, a sustentabilidade está ancorada em três pilares, lucro, pessoas, planeta (3Ps em inglês, profit, people, planet). Uma combinação mais equilibrada destes três pilares pode produzir empresas que se sustentam por um longo tempo, ou seja, que tenham lucro, reputação, credibilidade, crédito.

Teoricamente, empresas sustentáveis são aquelas capazes de gerar lucro ao mesmo tempo em que protegem o meio ambiente e as pessoas; seriam, assim, muito bem-vindas por toda a sociedade. Neste conceito, a prosperidade não se limita à sustentabilidade financeira mostrada nos números da contabilidade, contudo não podendo prescindir da mesma para sustentar uma vida saudável em todos os aspectos.

Na vida real, desde o dia da tragédia, as pessoas têm expressado com indignação o paradoxo que existe entre os três pilares teóricos da sustentabilidade, reconhecendo a importância da atividade econômica para gerar empregos, renda para as famílias, receitas para o município, lucros para os seus donos, mas não reconhecendo, em hipótese alguma, que ela possa gerar vidas humanas perdidas e devastação ambiental. Este é o senso comum quando nos defrontamos com a dramática realidade de tantos mortos e desaparecidos e é, também, a representação teórica da interconectividade que existe entre impactos ambientais, sociais, humanos, econômicos e financeiros.

Como infelizmente temos apreendido a partir de desastres de grandes proporções, impactos adversos ao meio ambiente levam a impactos humanos e sociais e levam a impactos econômicos e financeiros e vice-versa. São riscos de diversas naturezas que se materializam e podem afetar a todos, tanto os shareholders, proprietários e investidores, como os demais stakeholders, onde se incluem os gestores, empregados, outras categorias de trabalhadores, fornecedores, grupos vulneráveis, comunidades locais, organizações públicas e a sociedade civil.

Para os investidores e agentes do mercado interessa ter elementos para obter uma percepção de risco e, então, fazer uma adequada avaliação das perspectivas de uma empresa no curto e no longo prazo. Embora a lógica de mercado continue perversa, privilegiando o apetite por lucros, os novos tempos têm mostrado que determinados segmentos de investidores estão preocupados com os impactos ambientais, essencialmente pelos riscos que podem afetar o desempenho financeiro. Em uma pesquisa que estamos conduzindo na FEA Ribeirão Preto, os resultados demonstram que as práticas de responsabilidade social corporativa são capazes de mitigar o risco de crédito das empresas brasileiras, possibilitando ganhos aos seus investidores.

São diversos efeitos pós-tragédia que terão consequências desastrosas na vida das pessoas e no meio ambiente e também trarão reflexos que podem comprometer as perspectivas da empresa, como a sua imagem e reputação, a avaliação de crédito pelas agências de ratings, a sua capacidade de geração de caixa devido à paralisação de operações, a acessibilidade a novas linhas de créditos.

A Contabilidade é em essência uma ciência da informação que proporciona uma série de relatórios que ajudam a formar a percepção sobre o desempenho econômico e financeiro de uma empresa. Nos últimos tempos o conteúdo das informações tem sido ampliado para incluir também informações sociais e ambientais. Na última edição do Manual de Contabilidade Societária, publicado no início de 2018, foi incluído um capítulo sobre o “Relato Integrado”. É uma forma de reporte que deve mostrar como uma empresa gera valor no longo prazo a partir dos seus capitais tradicionais, como o financeiro e a infraestrutura, mas também considerando que ela pode agregar valor a partir do capital natural, social e de relacionamento com as comunidades no seu entorno. Esta é uma demonstração de que a profissão contábil reconhece a importância do tripé da sustentabilidade para avaliação das perspectivas de uma empresa.

Também existem os denominados relatórios não financeiros, ou relatórios de sustentabilidade, que podem ser divulgados de forma separada ou em conjunto com as informações financeiras. Tais relatórios buscam mostrar para os investidores, em particular, quais são os possíveis impactos da atividade da empresa e como os riscos estão sendo gerenciados. Para os demais públicos de interesse as informações servem ao propósito de accountability de suas ações.

Os relatórios de sustentabilidade têm sido uma prática voluntária das grandes empresas no mundo todo preocupadas em demonstrar a sua responsabilidade social e o seu engajamento com questões sociais e ambientais. Para auxiliar a preparação dos relatórios existem atualmente dois principais protocolos internacionais, o GRI (Global Reporting Initiative) e o mais recente Relato Integrado.

Mas a pergunta que fica é: como o assunto “barragens de rejeitos” foi considerado imaterial pelos stakeholders da Vale apenas dois anos após a tragédia de Mariana?

Desde 2012 a B3 mantém em seu site um banco de dados com links para os relatórios de sustentabilidade das empresas listadas na Bolsa de Valores. Esta é a denominada iniciativa Relate ou Explique, onde as empresas não são obrigadas a publicar o relatório, mas caso não o divulguem devem explicar as suas razões. Esta iniciativa também demonstra o reconhecimento da importância das informações sociais e ambientais pelas instituições de mercado.

No entanto, a qualidade dos relatórios de sustentabilidade tem sido criticada pelos pesquisadores acadêmicos no mundo todo, não é um problema exclusivo de algumas organizações ou das empresas nacionais. Os aspectos de qualidade analisados nos relatórios incluem a aderência aos protocolos de divulgação, a acurácia e a utilidade das informações reportadas, o balanceamento de aspectos positivos e negativos e a possibilidade de comparabilidade do desempenho de um período para outro.

No caso da Vale, ela optou por divulgar seu relatório de sustentabilidade de acordo com a última versão do protocolo GRI, que é o GRI Standards. No Relatório de 2017, última versão publicada, a Vale não reportou o tema GRI-306, que trata justamente de efluentes e resíduos, porque o tema não foi considerado material, ou seja, relevante para ser incluído no relatório.

Como a publicação do relatório de sustentabilidade é uma prática voluntária, as empresas têm discricionariedade para escolher os temas que publica. Contudo, o guia GRI orienta a forma de priorização desses temas, que deve considerar a capacidade do relatório de informar os impactos significantes que uma organização tem na economia, meio ambiente e sociedade, bem como a influência desses impactos sobre os seus diversos stakeholders. Segundo o guia, a reflexão sobre os dois eixos, impacto e influência, pode ser realizada com a ajuda de uma matriz de materialidade ou outras técnicas que a organização escolher. No entanto, este processo de definição do conteúdo do relatório deve necessariamente ser feito com escuta dos interesses e expectativas dos vários grupos de interesse, incluindo empregados, comunidade local e grupos vulneráveis, e ainda, contar com opinião de especialistas.

A Vale destaca a priorização de 11 temas no Relatório de Sustentabilidade de 2017, incluindo a gestão de impactos ambientais, sociais e econômicos e a gestão de resíduos minerais. Contudo, ela não reporta o tema GRI-306 que, caso fosse considerado material, deveria seguir instruções mandatórias para a divulgação. O relatório deveria trazer informações sobre a forma de disposição de seus resíduos, os métodos empregados, como os métodos são determinados, o peso ou volume desses rejeitos. Também o relatório deveria informar como a organização gerencia os seus resíduos, quais são seus possíveis impactos e quais suas expectativas e interesses dos stakeholders em geral sobre este tema.

Não há dúvida de que este é um conjunto de informações que ajudaria a responder às indagações perplexas que temos ouvido diariamente na televisão, de especialistas, investidores, ONGs ambientais, imprensa, sobreviventes e do público em geral. É claro que interessa aos trabalhadores e à população local saber quantas toneladas de lama estão acima de suas cabeças; interessa aos grupos ambientalistas saber qual é a dimensão do estrago para rios, nascentes e espécies animais e vegetais em caso de acidentes; interessa aos investidores em geral saber quais são os reservatórios ativos, inativos, descomissionados, bem como qual é a magnitude dos seus riscos para a saúde financeira dos negócios.

Contudo, a mineradora Vale não deixa de prestar informações sobre a gestão de barragens e resíduos minerais no capítulo “Planeta” do relatório, mas não segue os princípios que poderiam dar qualidade a esta divulgação e proporcionar informações mais úteis e abrangentes para os principais interessados. Ela também relata a utilização de painéis de especialistas para a definição de temas importantes e suas licenças ambientais, bem como pareceres de auditorias e consultorias independentes.

O Parecer de Asseguração independente sobre o relatório de sustentabilidade da Vale atesta que seu conteúdo está alinhado com o que sugere o protocolo GRI Standards. Os processos para elaboração do relatório e os dados apresentados pela Companhia foram apropriadamente definidos, seguindo os princípios e procedimentos propostos no guia. O Parecer traz também recomendações relacionadas justamente à necessidade de trabalhar as informações de forma mais direcionada a cada público de interesse, “dependendo da materialidade relacionada a cada stakeholder e dos canais de comunicação que a empresa já possui junto a eles”. Sugere ainda que a Vale utilize as informações coletadas em seu sistema de Stakeholders, Demands e Issues (SDI) para explorar os aspectos materiais trazidos nas interações que a companhia realiza ao longo do ano com seus públicos interessados.

Mas a pergunta que fica é: como o assunto “barragens de rejeitos” foi considerado imaterial pelos stakeholders da Vale apenas dois anos após a tragédia de Mariana? A SASB (Sustainability Accounting Standards Board) divulga um mapa sobre tópicos financeiramente materiais e que necessitam de comunicação por parte das grandes empresas. A SASB é uma consultoria internacional cuja missão é ajudar as empresas a reportar temas de sustentabilidade com importância para a maioria dos investidores. O tema Waste&hazardous and non-hazardous Materials aparece no mapa como uma questão com alto nível de probabilidade de afetar a condição financeira ou o desempenho operacional de empresas da indústria de metais e mineração.

Ao que parece, mesmo os stakeholders financeiros que teoricamente possuem maior poder de influência em uma companhia podem não ter sido privilegiados na escuta da Vale ou, talvez, eles estão muito pouco conscientes ou informados sobre o que significa gerenciamento de riscos. Outra possibilidade é o efeito da falta de uma distribuição mais igualitária de riscos, a qual é um pressuposto importante da sustentabilidade corporativa. Aqueles que se sentem mais afetados têm preocupações genuínas com o gerenciamento e mitigação dos riscos e aqueles que se supõem menos afetados agem com imperícia, negligência, imprudência ou até de forma criminosa, buscando obter vantagens e benefícios pontuais e de curto prazo.

 


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