A dificuldade que o próprio autor do texto enfrenta ao tentar decidir por uma única alternativa suscita questionamentos não apenas sobre o modelo de avaliação por itens de múltipla escolha, como também sobre a própria leitura. Existiria a “leitura correta”? Alguém pode decretar o que um texto quer dizer?
A construção do sentido não é via de mão única
Em artigo anterior publicado aqui no Jornal da USP, discutimos por que não se pode facultar ao autor a primazia da última palavra sobre os sentidos de seu próprio texto, por mais contraintuitivo que isso possa parecer. Estudiosos de Linguística Textual sustentam que a intencionalidade é sim um dos fatores de textualidade, porém não a colocam acima de outros mais palpáveis e relevantes, como a coesão (que diz respeito ao manejo de formas linguísticas que dão unidade ao texto) e a coerência (que, grosso modo, corresponde à unidade semântica entre as partes do texto, bem como à unidade de sentido entre o texto e o universo – real ou fictício – em que ele se insere).
Nessa perspectiva, a própria textualização (algo como a construção de significados por meio de textos) não é entendida como uma criação individual totalmente autônoma, como se o enunciatário (leitor/ouvinte) apenas recebesse conteúdos depositados em sua mente pelo enunciador. Antes, nos termos de Luiz Antônio Marcuschi, “um texto é uma proposta de sentido e ele só se completa com a participação do seu leitor/ouvinte”.
Em outros termos, os sentidos do texto não existem in vitro e somente se realizam quando o leitor/ouvinte pode mobilizar conhecimentos linguísticos e culturais para reestabelecer a coesão e a coerência propostas pelo autor. Desse modo, além de “querer dizer”, o enunciador utiliza recursos linguísticos disponíveis na língua para orientar seus interlocutores nessa tarefa de recorrer a um conhecimento partilhado e, assim, construir significados. Se não existe sentido sem colaboração, o autor não pode ser visto como o “todo poderoso senhor de seu texto”.
Gabaritos de exames: a regra é a convergência
Ainda tratando da última edição do Enem, os gabaritos extraoficiais publicados após o exame são um interessante indício de que é sim possível elaborar questões que avaliem a competência leitora dos estudantes. Antes da divulgação do gabarito oficial, diferentes grupos educacionais analisam os itens e publicam suas respostas. Embora as resoluções sejam realizadas por diferentes professores, em distintas regiões do País e sem acesso à resposta esperada, a regra é a convergência – normalmente sacramentada posteriormente pelo Inep, órgão responsável pela prova.
Como não poderia deixar de ser, contudo, são as eventuais divergências que costumam chamar atenção. No caso do item que envolvia as canções de Caetano Veloso, os gabaritos extraoficiais previam a alternativa B como correta, o que se confirmou no gabarito oficial. Em outro item, porém, ocorreu fenômeno curioso: todos os gabaritos extraoficiais previam uma mesma resposta, posteriormente contrariada pelo gabarito do Inep. Trata-se desta questão:
Embora diversos grupos educacionais previssem a alternativa B (possivelmente entendida como a “menos ruim”), foi indicada a opção C como “correta”. Nesse caso, alguns talvez lamentem não podermos contar com o vaticínio do escritor Olavo Bilac, que nos deixou no distante ano de 1918. Ainda assim, recorrendo a elementos textuais (do texto-base e da alternativa), podemos argumentar com segurança que, salvo melhor análise, há um equívoco na elaboração do item.
Essa discordância em relação ao gabarito oficial se deve a elementos textuais bastante palpáveis, por serem recursos linguísticos exaustivamente estudados pela tradição gramatical: o uso do artigo e os graus do adjetivo.
Conforme a alternativa C, o texto de Bilac anteciparia “o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social” (grifo nosso). Por mais que seja sutil, há diferença entre “apagamento de marcas” (sem uso de artigo) e “apagamento das marcas”. No primeiro caso, a ausência de artigo faz com que o substantivo “marcas” não assuma um referente específico, sugerindo assim que algumas marcas esparsas desapareceriam – o que seria uma leitura aceitável, embora redutora em relação ao texto e ao que solicita o enunciado do item. No entanto, tal como está redigida a alternativa, o artigo definido atribui ao substantivo uma referência específica e, estando no plural, tal referente seria a totalidade das ditas “marcas da escravidão” – as quais, segundo o gabarito, desapareceriam no futuro, na visão de Bilac. Tal interpretação é pouco plausível se confrontada com o primeiro parágrafo do texto, que menciona uma certa memória do período, a ser registrada até mesmo em museus.
É também obstante a essa leitura – que, a nosso ver, poderia ser revista pelo Inep – o início do segundo parágrafo. Tal passagem se inicia por este período, no qual destacamos o grau comparativo do adjetivo: “Mas a sua indignação nunca poderá ser tão grande como a daqueles que nasceram e cresceram em pleno horror […].” O excerto defende a impossibilidade de a indignação futura atingir a mesma intensidade daquela experimentada pelos que viveram a escravidão, porém, ao fazê-lo, o enunciador assume que haverá sim indignação. Isso impede o leitor de inferir, com base no fragmento, que o texto de Bilac destaca as mazelas do período escravagista ao “antecipar o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social”.
Exceções confirmam a regra
Dada a importância de uma prova como o Exame Nacional do Ensino Médio, é mais do que desejável diminuir ruídos como o que comentamos acima. No entanto, isso não pode ser confundido como uma crítica geral ao exame: pelo contrário, deve ser celebrada uma prova de Linguagens que privilegia amplamente a compreensão de textos e as variações linguísticas, induzindo currículos de educação básica a seguirem o mesmo caminho.
Além disso, a predominante convergência entre os gabaritos extraoficiais e o gabarito oficial reforça o ponto central deste artigo: a materialidade do texto faz com que o ato de ler seja uma atividade menos subjetiva e intuitiva do que, por vezes, sugere o senso comum.
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