É inadmissível que, em pleno século 21, um jovem brasileiro, eleito deputado estadual, tenha feito públicamente apologia ao nazismo segurando um exemplar do livro Mein Kampf (Minha Luta), de autoria de Adolf Hitler. Esse livro tem história e não é assinado por um autor desconhecido. Publicado em dois volumes em 1925 e 1926, o livro somente caiu em domínio público em 2015 podendo assim ser comercializado livremente na Europa e no Brasil. Chegou a ser apregoado como um “livro tabu por definição” por alguns dos seus defensores na Europa, abrindo caminho para sua reedição, comentada ou não. No entanto, tal posição não dá a qualquer cidadão de sã consciência o direito de apresentá-lo como um “modelo” a ser seguido.
Mein Kampf deve ser definido como um livro maldito, um breviário danoso cujos tons inflamados incitavam (e ainda incitam) a violência e o ódio aos judeus. O fato de ter sido adotado como a “Bíblia do Terceiro Reich” não justifica a retomada dessa fé que é venenosa, pois expõe as teorias antissemitas que fundamentaram o nazismo e o Holocausto. Seu conteúdo, além de lançar as bases ideológicas para o fortalecimento dos nacional-socialistas, expressa todos os tipos de maldades emanadas do cérebro doentio de Hitler que, certamente, divagou entre a loucura e a criminalidade. Cada uma das palavras ali inscritas comprova que o autor era um sujeito inescrupuloso, antissemita, sedento por poder e vingança. Enfim, somente faz elogios a Mein Kampf aquele cidadão ou aquela cidadã que ignora o papel criminoso representado por Hitler na história da Humanidade. Será que nunca estudaram sobre as práticas genocidas adotadas por Hitler que culminaram no Holocausto?
Imagino que o tal deputado ignora o conteúdo da Lei 7.716/89 que determina que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. Mein Kampf é um livro potente, com credenciais para a prática do mal sem limites, pois justifica aos seus leitores a necessidade emergencial de extermínio dos “indesejados”, marcados para morrer.
Mein Kampf tem importância histórica enquanto um documento-testemunho da barbárie que culminou com o assassinato de mais de seis milhões de judeus, milhares de ciganos, testemunhas de Jeová e outros tantos inimigos do regime. Carrega consigo, nas linhas e entrelinhas, o capital simbólico da intolerância e do genocídio, e como tal deve ser analisado e criticado. Os argumentos expõem claramente a ideologia racial que moveu o seu autor a adotar o antissemitismo como política do Estado alemão.
Tanto a obra apócrifa Os Protocolos dos Sábios de Sião como Mein Kampf cumpriram com o seu papel panfletário ao ampliar o medo aos judeus com a acusação aos comunistas que “agiam nas sombras e nos becos escuros da sociedade”. Tais mitos, ao serem reabilitados neste século 21 sob o prisma das conspirações mundiais, expõem (novamente) a lógica acusatória cujas raízes remontam ao século 15 com a criação do mito ariano, como muito bem demonstrou Leon Poliakov em seus estudos sobre pureza de sangue.
Sintetizando: apesar das atrocidades cometidas pelos nazistas e seus colaboracionistas, apesar das dezenas de memoriais alertando para que o “Holocausto não aconteça nunca mais”, uma parte do mundo continua sendo “hospedeiro” das propostas racistas sustentadas pelo Terceiro Reich, recicladas. Portanto, devemos acreditar na força da educação que defende os Direitos Humanos e prepara os nossos jovens para uma coexistência pacífica e harmoniosa em sociedade. Nossa luta deve ser atemporal e apartidária, fincada no conhecimento científico, nos ideais de justiça e na experiência humana adquirida até o presente momento. Uma coisa é certa: da mesma forma como os mitos alimentam o racismo, a ignorância histórica serve como terreno fértil para a propagação dos discursos de ódio.
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