A transição democrática: uma obra inacabada

Por Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 07/11/2022 - Publicado há 1 ano

As eleições presidenciais brasileiras do segundo turno de 2022 se encerraram com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), com 50,9% dos votos válidos. Com um pouco mais de 2 milhões e 100 mil votos de diferença entre Lula e Jair Bolsonaro, nos próximos dias começa o desafio mais importante de uma democracia, que, de acordo com cientistas políticos como Adam Przeworski, trata da sua capacidade de realizar a alternância de poder entre opositores. Como insiste Przeworski, mesmo que eleições se tornem eventos persistentes, o fato delas acontecerem não significa necessariamente que a democracia perdurará.

A primeira vez na história republicana do Brasil em que um governo em exercício transferiu pacificamente o poder para a oposição ocorreu em 1960 quando o presidente Juscelino Kubitschek, do Partido Social Democrático (PSD), cedeu o cargo para Jânio Quadros, da União Democrática Nacional (UDN). Desde a redemocratização até o atual momento, a transferência de poder para a oposição após a realização das eleições presidenciais ocorreu apenas em 1990 e 2003.

O primeiro caso foi quando José Sarney, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), cedeu o poder para Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução Nacional (PRN), em 15 de março de 1990, após as primeiras eleições diretas para presidente desde a redemocratização. A vitória eleitoral de Collor de Mello contra Luiz Inácio Lula da Silva ocorreu em uma eleição caracterizada por elevadas incertezas políticas e econômicas. Além das persistentes crises inflacionárias, houve também vários escândalos políticos, incluindo o sequestro do empresário Abílio Diniz no dia da eleição do segundo turno daquele pleito.

O segundo caso foi quando Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, cedeu a presidência para Luiz Inácio Lula da Silva Lula, do PT, em 1º de janeiro de 2003. O segundo mandato do presidente FHC foi menos exitoso que o primeiro. Na eleição de 2002, em um contexto de baixo crescimento econômico, a campanha eleitoral caracterizou-se pelas frequentes acusações de que a eleição do candidato da oposição levaria à instauração de uma economia socialista. Em sua Carta ao Povo Brasileiro, Lula mais do que buscou aliviar os temores do eleitorado com relação à transição. A carta foi divulgada para acalmar as preocupações do empresariado e do mercado mediante sua perspectiva de vitória eleitoral.

Nos outros casos de sucessão presidencial, não houve transferência de poder para o opositor. Ao contrário, neles houve transferência para um aliado ou reeleição. Foi o caso quando Itamar Franco cedeu o cargo para Fernando Henrique Cardoso (PSDB), seu ministro da Fazenda, ou os casos das eleições onde o mandatário ou seu partido foi reeleito como a eleição de 1998 de FHC, a reeleição de Lula em 2006, a eleição de Dilma, sucessora do mesmo partido que Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, e sua reeleição em 2014.

Outro caso relevante é o da eleição de 2018, porque a vitória de Bolsonaro não foi uma derrota da situação. Naquele ano, podemos afirmar que houve uma alternância no poder entre o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido Social Liberal (PSL), mas não houve alternância de poder entre a situação e a oposição. Michel Temer, do MDB, cedeu o poder para Jair Bolsonaro, que foi eleito presidente sendo naquele momento filiado ao PSL. No primeiro turno, o MDB lançou Henrique Meirelles como candidato à Presidência. O Meirelles, candidato da situação, ficou em sétimo lugar. No segundo turno, o MDB ficou neutro.

Este padrão histórico é importante ser destacado para nos lembrar que experiências de alternância de poder são relativamente escassas na história política brasileira desde a redemocratização. As tendências que observamos no nível federal também se afirmam nas transições entre governadores nos Estados da federação. Há poucas instâncias na maioria dos Estados no qual a oposição vence a disputa. O País está aprendendo e amadurecendo com a experiência de ceder o poder para a oposição.

Com a alternância no poder se materializando em 1º de janeiro de 2023, este fato representará um grande momento para a democracia brasileira. Será apenas a terceira vez que isso acontece desde a redemocratização. Porém, como insiste a ciência política, a posse de Luiz Inácio Lula da Silva não significa a consolidação do processo democrático. Pelo contrário, significa continuar a transição democrática e, como tal, se trata de uma obra em andamento. Afinal, logo após sua terceira vitória eleitoral, na recente campanha eleitoral para presidente do Brasil, Lula afirma: “Chegamos ao final de uma das mais importantes eleições da nossa história. Uma eleição que colocou frente a frente dois projetos opostos de país. E que hoje tem um único e grande vencedor: o povo brasileiro”.


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