Sobre cogumelos atômicos, números e palavras

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP*

 13/03/2024 - Publicado há 4 meses

Para os professores dos 5.568 municípios brasileiros

Andam dizendo por aí, em alto e bom som: matemática, no mundo do trabalho, vale dinheiro. É verdade. Faltam vocacionados para os números. Uma simples relação entre a oferta e a procura joga os salários lá em cima. Por menosprezo do humano esqueceram de explicar a potência avassaladora dos números se manipulados por seres movidos pelo ódio, pela inveja ou pelo poder. Os números só existem na abstração produzida no cérebro de humanos. Portanto, seu uso depende dele.

Alguns humanos sozinhos, ou seja, o número 1, têm poder avassalador. Se apertarem um botão, destroem o planeta.

Como reconhecer a presença, em um universo repleto de humanos, daqueles poucos, içados à vida política, dispostos a apertar o botão do fim do mundo? Os afeitos à vida e os afeitos à destruição são igualmente números.

É possível reconhecer antecipadamente os subterrâneos dos números vocacionados para os diversos tipos de barbárie? Identificar no número a pessoa possuidora do espírito assassino, do autoritarismo extremista, da índole exterminadora da liberdade? Como ver por baixo das aparências numéricas tendências de seres humanos específicos?

Pasmem.

O oráculo grego, por meio de sinais dirigidos para os seus intérpretes, os artistas, os poetas, os literatos, os músicos (entre outros), informa antecipadamente a tragédia, o caos e o infortúnio. Intermediários artistas reconhecem o caos e a incerteza como um fato. Veem longe. Lendo as vísceras dos animais sacrificados, percebem indícios sobre o que é joio ou trigo, prudência ou excesso, ódio ou amizade. Quantificam a emoção + razão contidas, em doses diferenciadas, nos seres humanos. Oferecem indícios do futuro.

Diz o oráculo:

A análise do fígado do animal, apresentado para o sacrifício, informa o lugar do perigo. Observem as vísceras do animal evitando hipóteses apressadas. O raciocínio matemático pode ser ou não ser o principal indício profético. Seja ele culpado ou inocente, o importante é evitar a separação entre o ilustre Sr. Raciocínio Matemático com a digníssima Sra. Palavra e seus congêneres, os artistas, as escritoras e os poetas. As evidências são claras: só juntos tecem a felicidade, dão significado humano para as abstrações e teorias, autorizando o exercício pleno da ciência pura. As diferenças de salários entre o Sr. e a Sra., citadas atualmente com frequência, sugerem a separação do casal, prenúncio da tragédia.

Péssimo indício.

Tanto o número como a palavra (e seus amigos) têm certeza da existência do caos. Juntos são cuidadosos. O número é vaidoso. Sabe física. De um jeito despojado é captado muitas vezes pela arapuca da vaidade do conhecimento complexo. Como todo humano ele é estimulado pelos altos salários das empresas de tecnologia e do mercado financeiro. Falta mão de obra nestas áreas.

Embora indiscutivelmente competente, ele pode fazer bobagem das grandes, caso a Sra. Palavra esteja distante, um milímetro, dos seus membros superiores e inferiores. Sabe como são os homens. Vivem no mundo da lua, dos números, da astronomia, da relatividade. Enxergam tão longe e ao mesmo tempo deixam escapar o fato, miúdo, contido nas palavras. Como demonstrou a Sra. Probabilidade, suas habilidades foram comprovadas em Hiroshima e Nagasaki (de 6 a 9 de agosto de 1945). Em pouco tempo, morreram por volta de 210 a 250 mil pessoas (no dia do lançamento da bomba e, posteriormente, pelos seus efeitos).

Cogumelos atômicos destroem o planeta. Atualmente, França, Reino Unido, EUA, Rússia, China, Índia e Coreia do Norte possuem o cogumelo assassino (embora tenham assinado um acordo de não proliferação de armas cogumelescas). Israel possui armamento nuclear e não assinou o tratado. No caso do Irã, as informações são imprecisas.

Nem todos os países possuem cogumelos, mas todos possuem malucos.

O uso do cogumelo permite a eliminação de todos e de tudo: os números, as palavras, a razão, a política, os gabinetes, as emoções (ódio ou amor). Com o cogumelo vai embora a lógica, a demonstração, a objetividade, o realismo e o sagrado raciocínio matemático. Tudo corre o risco de desaparecer pela vontade explosiva de Um.

Só Um humano.

Notaram por que o casal não pode se separar sequer por um instante, nem na educação, nem em uma narrativa jornalística ou nas redes?

Ciências humanas e ciências exatas

Diante da ameaça, pedi apoio para um amigo, morador do planeta das exatas, para dar uma ajuda no combate. Juntos teremos mais força para demonstrar, logicamente, o perigo. A demanda é singela: explicar as razões de não separar o casal, jamais. Manter, sem exceção, os exatos e os humanos juntos: cabeça, tronco e membros. Ideia construtora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, vinculada carnalmente no seu desenho inicial à história da Segunda Guerra Mundial.

O acaso.

O acaso aproximou o Sr. Número da Sra. Palavra. Faz tempo. Os gregos já sabiam da importância desse amor visceral.

O oráculo avisou: Cuidado, se se separarem estaremos no final dos tempos, do planeta.

De fato, ela, a Sra. Palavra, é ansiosa e ganha pouco. Muitos dizem ser, a razão da desigualdade, ela viver perdida na alma humana. Ele, diferente dela, prefere a reta. Ele afirma ter certeza, apesar das diferenças que, no infinito, se encontram. Coisas da reta. Falam línguas distintas, possuem energias diferentes, mas choraram juntos as Hiroshimas, de ontem e de hoje.

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa de Hiroshima (…)

(Vinicius de Moraes, 1954. A Rosa de Hiroshima)

Atualmente, muita gente tem feito todo o esforço para separá-los. Falam de dinheiro para produzir indiferença, ele por ela.

Esquecem o aviso do oráculo: a separação é o fim do planeta.

Ela, com a sua capacidade literária, descreve o subsolo da alma humana, o escuro. Ele compreende a relatividade, atento à velocidade da luz.

Amorosa, preocupada com os caminhos da humanidade, deixou um bilhete para ele, na mesa do café, alertando perigo iminente, relembrando a massa da qual é feita a humanidade.

Reproduzo:

Sou um homem doente (…) Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais sou supersticioso ao extremo; bem ao menos bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.
Fiodor Dostoiévski, Memórias do subsolo

A barbárie, a guerra, diz ela, vive no buraco negro da alma humana.

Determinismo e evolução x acaso e incerteza

A palavra, narrativa, muito utilizada pela Sra. Palavra, separa autor de narrador. Na atualidade, a palavra passou a ser empregada nas entrevistas na TV, no rádio, na vida política e nas análises científicas. O uso excessivo nem sempre representou cuidado com as fronteiras porosas entre os acontecimentos, fatos, e a forma de contar e inventar histórias e Histórias.

As mudanças na linguagem corrente atual carregam a crítica ao determinismo, a ideia de evolução e a existência de apenas uma perspectiva para se analisar um objeto. O raciocínio antigo, determinista, era similar àquele que explica o progresso a partir de uma sequência de causas e consequências, mudanças sucessivas apontando um só caminho: o progresso. O resultado esperado de antemão pressupunha uma evolução linear de tudo e de todos. Um único lugar de observação para avaliar as transformações ocorridas no mundo.

A física, a antropologia, as ciências exatas e humanas, juntas, explodiram o determinismo. Ensinaram a enxergar as coisas a partir de espaços e tempos diversos. No caso da física, a velocidade da matéria alterando a relação entre o sujeito e a velocidade do objeto em deslocamento.

Os avanços do pensamento moderno demonstraram os limites da razão, por meio da incerteza e do acaso.

O acaso, a biologia e a loteria

O paleontólogo Stephen Jay Gould enfatizou: o sucesso da cadeia evolutiva que culminou nos vertebrados e no homem dependeu apenas de uma loteria, não de uma necessidade. Venceu o acaso.

O que é acaso? O que é contingência? A ciência estuda o acaso?

Um exemplo explica:

Caminhando por uma calçada, para ir à livraria onde trabalha, Antônio, que está atrasado, passa sob uma janela, da qual cai um pequeno vaso sobre sua cabeça. Ele vai parar no pronto-socorro, em vez de chegar ao trabalho.

Antônio, depois de medicado, disse: foi um acaso.

Então o acaso não seria uma série de acontecimentos independentes, cada um deles necessário e perfeitamente explicável? É uma contingência. Houve um conjunto de condições ou circunstâncias que determinam um fato, não previsto inicialmente.

Seria o acaso apenas uma ocorrência singular incapaz de afetar as leis universais da natureza?

O termo acaso sempre esteve associado aos jogos de azar, como cara ou coroa, roleta, jogos de cartas ou de dados. Desde o século 17, matemáticos e pensadores como Pascal, Leibniz, Newton e, posteriormente, Fermat, conheciam ou desenvolveram estudos sobre cálculo de probabilidades, estudo do aleatório, do acaso. Em cada um desses jogos é possível calcular quantos e quais são os resultados possíveis e as respectivas probabilidades.

O acaso e a biologia

Por longo tempo, se pensou que o câncer decorria de duas origens principais: a hereditariedade e o ambiente (poluição, radiação ultravioleta da luz solar, fumo, ingestão de gorduras, excesso de peso, entre muitas outros). Mas isso não é totalmente verdadeiro. Usando simulações de computador e modelos matemáticos, pesquisadores (geneticistas) da Universidade Johns Hopkins desenvolveram um macroestudo e concluíram que esses fatos, hereditariedade e ambiente, são responsáveis por apenas um terço dos cânceres. Os outros dois terços de casos de câncer decorrem de erros aleatórios no processo de replicação do DNA.

Dois terços (66%) das mutações que levam as células a se tornarem cânceres têm origem aleatória, por erros no momento da duplicação celular. É o que publicaram Cristian Tomasetti, Lu Li e o geneticista Bert Vogelstein, da Universidade Johns Hopkins, na última edição da revista Science.

As outras alterações que originam um câncer vêm de fatores ambientais, como sol, poluição, consumo de certos alimentos e fumo (29%), ou são hereditárias (5%). Esses números são uma média para 32 tipos de tumores.

Ao analisar cada tecido específico, há variações. No caso da doença no pulmão, por exemplo, 70% das mutações em homens são relacionadas ao ambiente – principalmente fumo. Já nos cânceres de osso, 99% das alterações são aleatórias, chamadas também de replicativas.

Sabe-se hoje que uma célula normal ao se dividir e replicar seu DNA, para gerar duas novas células, pode cometer erros. O genoma humano tem três bilhões de bases e, embora a fidelidade do sistema de replicação seja bastante alta – probabilidade inferior a um erro em um milhão –, há muitas possibilidades para gerar mutações aleatórias e perigosas.

Vocês percebem?

O acaso pode, em uma sociedade detentora da bomba ou armas atômicas, permitir a um só insensato, de índole assassina, destruir um determinado grupo social ou mesmo toda a humanidade.

A Sra. Palavra sabe disto e, por amor, sempre protege o Sr. Número. Avisa. Fala, escreve, canta. O duro é ele, sob o efeito sedutor do conhecimento e da conta bancária, demorar para dar ouvidos à sua mulher. Não se deve esquecer que

 A bomba não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer.
Carlos Drummond de Andrade, 1945, A Bomba, Rosa do Povo.

O determinismo, o acaso e o medo

No século 19, a ciência considerava essencial reconhecer as relações causais, necessárias ao se analisar os diversos fenômenos da natureza. Era este o pressuposto do conceito de determinismo: princípio para o qual os fenômenos da natureza estão ligados entre si por rígidas relações de causalidade e leis universais, excluindo o acaso e a indeterminação.

O determinismo naturalizou a relação causa e efeito, entre tipo de conhecimento e o salário. Produziu cultura nesta direção.

Cultura machista do Sr. Número, originalmente ligada a estratégias de guerra, tendeu a considerar a Sra. Palavra (literatura e artes) inferior. A explicação considerada singela e supostamente verdadeira seria a palavra, por natureza, privilegiar as mazelas da vida emocional, as questões biológicas e as crianças. Emotivas, elas deveriam ganhar menos. Já os realistas, em razão de serem realistas por natureza, deveriam ganhar mais.

Pura fantasia.

A partir desta lógica, malucos dedicados aos números deveriam ser igualmente superiores.

Delírio.

Então, o que significa a desigualdade salarial, comprovada estatisticamente?

O número pode servir a diversos senhores ao mesmo tempo, a favor ou contra a destruição da vida e do planeta. Tudo depende da circunstância. Ele calcula as chances dos acertos e dos erros. Só. São apenas números. A palavra qualifica as tendências, descreve o perigo dentro da margem de erro e, ao mesmo tempo, desenha a negociação. A negociação, fruto da palavra, pode evitar tragédias ou salvar o planeta. Em razão da imprecisão do objeto, a margem de erro é sempre maior.

Mas, afinal, qual é a relação entre o determinismo e a separação do casal?

Mantê-los unidos permite um preparo maior para o enfrentamento do campo do caos e da incerteza. A palavra, por não temer as gentes, invade a alma humana, percebendo insanidades e avisando a todos por meio de uma sirene de palavras.

Socorro, por exemplo.

A palavra compreende e respeita o fato dos conceitos e procedimentos estatísticos serem necessários para vários campos das ciências da natureza, como na química. No estudo dos gases, por exemplo, constata-se que o número de moléculas é muitíssimo grande (6,02×1023 moléculas por mol) e que as relações de causa e efeito só podem ser estabelecidas estatisticamente, pelo cálculo de probabilidades.

Mesmo com esses conceitos, o acaso é recusado e os dois princípios do determinismo, causa e efeito, permanecem válidos, embora, no caso dos fenômenos microscópicos, a noção de frequência estatística substitua a de causa.

Para o Sr. Determinismo Universal, arrogante dono da verdade, seu maior desejo é evitar que a frequência estatística substitua a causa. A causa criada pelo Sr. Autoritário, desejoso do pensamento único.

Premissa perigosa.

Evolução, progresso ou diferentes postulados?

Quando comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana com as não euclidianas, estamos diante de duas teorias diferentes. A questão está no quinto postulado: por um ponto fora de uma reta, em um plano, passa uma única paralela à reta dada. Se ele for aceito, temos a geometria euclidiana. Caso não, temos as não euclidianas: a de Lobatchevsky (por um ponto fora de uma reta passam pelo menos duas paralelas à reta dada e não uma única, como diz Euclides) e a de Riemann (por um ponto fora de uma reta não há reta alguma paralela à reta dada, diferente de Euclides que diz que há uma paralela e apenas uma).

Essas geometrias não se confundem. Não se trata de três fases sucessivas da mesma ciência geométrica. Trata-se sim, de geometrias diferentes, com postulados, conceitos, objetos, demonstrações e resultados diferentes. Não há evolução ou progresso de uma para outra, pois não são geometrias que se sucedem, uma aperfeiçoando a outra.

Quando comparamos as físicas de Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física. Elas não têm a mesma ideia de natureza, empregam métodos distintos e, sobretudo, em cada uma delas o que se deseja conhecer ocorre em contextos diferentes. Aqui também não encontramos evolução, mas reflexões com origem em diferentes observações, perguntas, indagações diversas e criativas.

O que fazem os cientistas, mediante uma pergunta não respondida ou de um fenômeno ainda não explicado?
– Utilizam o modelo ou o paradigma científico existente, ou seja teorias, métodos e tecnologias disponíveis.

E se descobrem que o paradigma disponível não explica o fenômeno ou o fato novo?
– Tentam conceber um outro paradigma, ainda inexistente, que não fora percebido como necessário pelos pesquisadores.

Logo, a ciência não se desenvolve linearmente de modo contínuo. Constata-se, assim, descontinuidade e uma diferença entre as teorias científicas, e não uma evolução da prática científica. Trata-se de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de criar métodos e de utilizar ou criar tecnologias.

Por que temos esse sentimento, essa tendência, olhando a história, de pressupor evolução e progresso?

Quantas vezes ouvimos elogios sobre a evolução do mundo, citando as maravilhas da internet?

Talvez os humanos prefiram o conhecido, e não o desconhecido. Prefiram a certeza da maioria, e não a incerteza da vida diante do universo ou frente a qualquer desconhecido. A maior parte das pessoas tem medo do novo. Pode ser uma nova teoria ou um autor desconhecido no mercado editorial ou, ainda, medo de um vizinho com origem em um país pobre. O medo é do erro, do insucesso ou da frase “Quem mandou confiar em desconhecido”. Esquecem o fato de que para um acerto são necessários muitos erros. Vale a pena errar para, às vezes, acertar. O acerto pode salvar bilhões de vidas.

Vacinas nascem assim.

Pensar no progresso é uma forma de não pensar na finitude dos recursos naturais e da vida. Um encontro de um asteroide com o planeta Terra, dependendo do tamanho da pedra, pode acabar com o planeta, com a vida. Probabilidades existem.

Mas, se eu ponho fogo na mata e penso no progresso, nos avanços da civilização, sinto um alívio. Durmo melhor. Sem sonhos de asteroides destruindo o planeta, sem seca, sem enchentes ou cobranças aparecendo no meu celular, povoando a minha cabeça. Zero probabilidades de impacto devastador impedindo uma noite de sono.

Hipóteses, todas prováveis, apagadas pela ideia de progresso.

Temos muitos argumentos para justificar o progresso: os resultados tecnológicos das ciências permitem a produção de objetos facilitadores da vida humana, como meios de transporte e de comunicação. Avanços científicos aumentam a esperança de vida, como novos remédios e transplantes e, no topo dos avanços tecnológicos, observamos a energia nuclear e as viagens espaciais. Essas descobertas são anunciadas pelas empresas e governos como sinais de crescimento contínuo, retilíneo. Além dessas conquistas, o conhecimento é considerado a melhor maneira de combater o medo e as superstições. Este são alguns dos argumentos utilizados para demonstrar os avanços da matemática, da endeusada tecnologia e a destruição dos povos originários.

Mas, afinal, qual a importância do acaso na relação entre o número e a palavra?

Por acaso uma só pessoa pode matar muita gente, destruir o planeta. Simples. Basta dar a ela poder. A história já demonstrou e muita gente morreu na mão de um ou alguns insanos.

Tragédias ocorrem, apesar da razão.

Existe remédio para evitar a incerteza, o caos e os desatinos humanos?

Incerteza e indeterminação de um fenômeno

Na Física clássica, conhecendo a posição inicial e a velocidade de um corpo é possível determinar seu comportamento nos instantes futuros. Sim, a Física clássica é determinista. Dessa maneira, seria possível calcular posições posteriores, determinando sua trajetória, valores de aceleração, velocidade e energia. Porém, isso não é verdade no nível atômico! Esse fato é um dos vários que abalaram a Física clássica: o princípio de incerteza ou da indeterminação, trazido pelos estudos do físico Heisenberg, enunciado pela primeira vez em 1927.

Heisenberg verificou que, no nível atômico, não é possível medir simultaneamente e com precisão grandezas diretamente relacionadas, como velocidade e posição de uma partícula. Ou seja, quando se conhece a posição de uma partícula atômica, não se consegue conhecer sua velocidade, e quando esta é determinada, não se consegue conhecer a posição. O que se consegue é conhecer uma probabilidade de sua localização. Há, portanto, incerteza, indeterminação do fenômeno.

Outro fato que abalou o determinismo universal foi a teoria da relatividade, elaborada no início do século 20 por Einstein. Cabe ressaltar que a ciência moderna se desenvolveu e se organizou tendo como pressuposto a separação entre o subjetivo e o objetivo, adotando o princípio de observação-experimentação em que um dado fenômeno estudado será sempre o mesmo e obedecerá às mesmas leis, seja quem for o sujeito observante.

No entanto, Einstein brilhantemente argumentou que na velocidade da luz, o espaço “encurva-se”, “dilata-se”, “contrai-se” de modo a afetar o tempo para observadores diferentes. Assim, alguém viajando com velocidade próxima à da velocidade da luz atravessaria num tempo mínimo um espaço imenso, mas para aquele que estivesse com velocidade bem menor, sentiria o tempo escoar lentamente. Para a primeira pessoa, teriam se passado algumas horas ou dias, mas para o segundo, anos, séculos.

A Física contemporânea precisou, portanto, abandonar a ideia (sugerida pelo bom senso e aceita como postulado pela Física clássica) de que o passar do tempo e a simultaneidade entre dois eventos tenham significado absoluto, independente do observador. Assim sendo, leis da física não são universais e necessárias em si mesmas, mas exprimem o ponto de vista do sujeito.

A teoria da relatividade tem ainda outras consequências difíceis de compreender ou de aceitar, mas confirmadas por dezenas de experiências. Uma das consequências trata da equivalência entre massa e energia, segundo a qual a massa de um corpo que absorve uma quantidade de energia E aumenta de uma quantidade Ec2, em que c é velocidade da luz no vácuo. Em outras palavras, “a massa é uma forma de energia”, pois ela pode se transformar em energia. Massa, energia e velocidade da luz relacionam-se pela famosa equação E=m.c2. Se uma massa, por menor que seja, se desintegrar, a energia produzida será fabulosa, pois essa massa será multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz, em m/s (3×108)2=9×1016.

Na velocidade da luz, toda matéria se transforma em energia, deixando, portanto, de possuir massa e volume. Do ponto de vista da velocidade da luz, a teoria da gravitação universal, baseada na relação entre movimento, massa, tempo e velocidade, não tem valor, embora continue verdadeira para os movimentos que não sejam medidos pela velocidade da luz.

Assim, a Física nos traz um problema: a existência de três teorias físicas simultâneas regidas por conceitos e métodos diferentes, excluindo-se umas às outras e todas elas verdadeiras para os fenômenos que explicam: física newtoniana; física quântica; física da relatividade.

Ora, a Física oferece três diferentes paradigmas científicos à ciência contemporânea e não apenas um, único!

A dupla assassina de maior sucesso na atualidade é o determinismo no piano e o pensamento único na bateria.

O relógio do apocalipse

A revista O boletim dos cientistas atômicos, publicada pela Universidade de Chicago, em funcionamento desde 1947, criou um relógio artificial movido por um Conselho de Ciência e Segurança. Seus ponteiros marcam variações em minutos e segundos. Pela representação gráfica, a meia-noite é o momento da catástrofe final, do apocalipse. Os critérios de avaliação envolvem guerra nuclear, aquecimento global, engenharia genética, ciberataques e IA, inteligência artificial.

Como sempre ocorre, existem discordâncias quando ao horário. Mas a tendência é esclarecedora. As palavras podem ajudar explicando onde mora o perigo.

Resumo da ópera

Analisando os problemas levantados, observa-se a importância de manter o casal unido. O pensamento único, seja ele criado e educado pelos cientistas exatos, pelos biológicos ou pelos humanos, sozinho, representa risco para a vida e para a duvidosa felicidade humana.

Um louco e seus aliados podem acabar com o planeta. Não apenas uma vez, mas várias vezes. O caos e a incerteza existem, assim como sempre existiram lunáticos. A novidade agora é estarem organizados em redes mundiais em torno de uma mesma ficção: dinheiro, poder e projeto para apressar a redenção com vistas ao Juízo Final.

Se a hipótese for verdadeira, a tendência indica possibilidade de destruição do planeta.

Pelos motivos elencados, aposto na união do casal.

Existem parceiros na hipótese? David Brooks expressou ideias similares em um artigo com o título A arte contra uma sociedade raivosa.

Existe tempo?

Fração de segundos.

* Artigo escrito em coautoria com Ruy Cesar Pietropaolo

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