A posse de Lula e o protocolo como linguagem

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 06/01/2023 - Publicado há 2 anos

Na Idade Média, cada estamento social se diferenciava do outro por meio de símbolos visuais. Distinções de vestimenta, do lugar na procissão, da possibilidade, ou não, de usar um cavalo. A figura de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, representam bem a época.

Já nos tempos modernos, os símbolos visuais sofrem alterações. Aristocratas e burgueses vão progressivamente criando e disputando objetos, símbolos capazes de expressar nobreza, poder e riqueza. O intuito era, e ainda é, separar uns dos outros, possuidores e despossuídos, de tradição, dinheiro ou autoridade.

Bordar monogramas para diferenciar a propriedade de objetos são costumes de uma nova sociedade (moderna) com reflexos nos dias de hoje. A utilização de marcas, grifes, de distintivos, capazes de caracterizar diferenças sociais, cresceram em frequência e importância. Onde você mora? Onde estudou? Qual a marca do seu carro? são alguns exemplos.

O protocolo assim como a etiqueta e os mais diferentes rituais são formas de letramento visual, gestual, sonoro, instrumentos de comunicação. As imagens, os adereços, as roupas, o cabelo, a cor, a música falam. Servem para aproximar ou separar as pessoas. Servem para diminuir ou aumentar as diferenças, para organizar ou hierarquizar os indivíduos, favorecendo ou desfavorecendo contatos e negociações entre pessoas, comunidades ou culturas distintas.

Em um mundo marcado pelos conflitos, o protocolo se torna uma arte, um tipo de letramento ritualizado, inventado para favorecer o diálogo, a comunhão entre povos e, principalmente, para a resolução de conflitos. O responsável pelo protocolo, o anfitrião e os profissionais da matéria têm habilidades semelhantes à do maestro na orquestra: calibra os detalhes. Mais destaque para as cordas, abrandem os metais, acentuem a percussão. Na orquestra, os vários instrumentos possuem pesos distintos na elaboração do concerto, mas a beleza do resultado, da harmonia, depende do conjunto todo.

O protocolo também procura a harmonia. Visa a concórdia entre os humanos em torno de objetivos políticos, econômicos ou culturais. O protocolo, ou mesmo a etiqueta, não é feito para humilhar, desqualificar ou hierarquizar aqueles que não navegam bem entre as regras propostas. Ao contrário, a arte do protocolo envolve maleabilidade criativa e respeito pleno aos convidados e, especialmente, aos adversários.

A formatação dos ritos, dos encontros, das negociações, em geral, gera tensão. O protocolo serve para facilitar, organizar os convivas favorecendo um encontro, uma comemoração ou uma negociação harmoniosa. Incidentes ocorrem. A arte é adequar o rito à circunstância mantendo a consonância necessária com os fins últimos a serem alcançados.

O número de pessoas e a presença de usos e costumes variados, em rituais de comemoração com delegações de países e culturas distintas, muitas vezes exigem sugestivas adaptações. A definição do traje, a boa administração dos espaços, dos contatos corporais, a percepção dos campos de conflitos entre determinados atores e o respeito genuíno pelos convidados, envolve sensibilidade complexa e clareza de objetivos para impedir constrangimentos.

Uma boa negociação/comunicação, em espaço ritualizado, só se realiza quando os negociadores, por um instante, se reconhecem como interlocutores. Trata-se de minimizar as diferenças e encontrar os pontos possíveis de aproximação, sem jamais humilhar ou desqualificar os participantes da cerimônia. Todos devem, na medida do possível, se sentir à vontade, por um instante, interlocutores respeitosos entre si.

A arte do protocolo visa a produção do sentimento de semelhança da condição humana e da comunhão entre os povos. Jamais, diante de um desvio no ritual, qualquer uma das partes deve produzir um olhar crítico, irônico, superior ou nomear um erro. A construção da paz entre os indivíduos pressupõe uma fagulha de “amizade/philia”, entre as partes, ainda que em conflito.

O protocolo é parte significativa da arte da negociação política. Suas raízes estão na diplomacia, no direito internacional, cujas origens remetem a discussões teológicas dos séculos 16/18. O objetivo último é proteger os direitos universais em favor da vida, da paz, da comunhão entre os povos.

Explico.

Os humanos brigam muito entre si. Não faltam guerras, disputas por poder, dinheiro e mesmo brigas em família. Em meio às discordâncias, a diplomacia e seus ritos surgem como a arte da negociação. Numa contenda econômica, em meio a uma guerra, ou negociações familiares as pessoas, as comunidades ou os países em confronto provavelmente ocuparão lugares desiguais embora, todos, façam parte da mesma comunidade humana. A arte do protocolo é amainar as diferenças facilitando o campo da negociação. Evidentemente como se trata de um tipo de letramento também pode ser utilizada para humilhar, separar, discriminar, embora não seja este o seu objetivo maior.

A posse de Lula foi uma aula de adequação do protocolo frente a uma tentativa de ruptura de uma tradição democrática: o antigo presidente eleito deveria, como de costume, passar a faixa presidencial para o novo presidente eleito. A passagem da faixa presidencial, símbolo nacional, representa o funcionamento do sistema democrático, a alternância do poder. Metáfora da democracia, do respeito à diferença, do exercício da polidez e da civilidade a faixa presidencial expressa as qualidades éticas e políticas necessárias ao bom funcionamento da vida democrática.

Rituais marcados pela comunhão das gentes, de povos e nações, rituais de revezamento do poder não combinam com governantes vocacionados para a construção de regimes autoritários. Estes preferem outros rituais, em geral marcados pelo culto à personalidade, realizados em espaços majestosos onde a cenografia pretende que se veja apenas um: o ditador. O objetivo da representação nos Estados autoritários é o culto ao líder apenas. O filme O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin, está repleto dessas imagens. A lógica totalitária exclui ritos de transferência do poder, personagens singelos e delicadezas cenográficas. O foco da cena é um. A meta é criar invisibilidades no tecido social, apagar e hierarquizar os atores sociais relativizando a participação política. O autoritarismo se reveste da valorização da agressividade (armas), da rusticidade retórica e da monumentalidade. A perspectiva, o ponto de fuga, é único e centralizado.

A posse do presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva), desenhada por Janja (Rosangela Lula da Silva), foi admirável do ponto de vista político e cenográfico. A representação democrática venceu a representação autoritária. Janja atualizou o papel da mulher usando calça comprida, desenhou um novo protagonismo para a personagem feminina, colocou na rampa do palácio o Brasil como ele é, com trajes usuais. Deu a Lula um presente consoante com a sua história e com a história de vida da maior parte dos brasileiros. Mostrou o Brasil por diversos ângulos e perspectivas, um Brasil multiétnico e multilateral.

A linguagem visual utilizada na posse de Lula quebrou os estereótipos introduzindo na cena política personagens invisíveis ou pouco considerados na história brasileira (cacique Raoni Metuktire, o menino Francisco, Wesly Viesba Rodrigues Rocha, Murilo de Quadros, Ivan Baron, Jucimara Fausto dos Santos, Flávio Pereira).

Janja, estimulada pelo impasse – Quem passaria a faixa para o presidente eleito? –, criou um novo protocolo, um ritual em que a faixa presidencial foi entregue a Lula por uma trabalhadora, catadora de materiais recicláveis, de nome Aline de Souza, incluindo, por meio dela, personagens tradicionalmente invisíveis na cena política.

Afinal a democracia é governo do povo, para o povo.

Simples.

O povo subiu a rampa.

E, mais, a chave de ouro: a cachorrinha, Resistência. Assim como Baleia, de Graciliano Ramos, ela expressou as velhas e novas contradições da história brasileira.

Vida longa para Resistência.

E para Baleia, muitos sonhos. Sonhos de um “mundo cheio de preás. […] (Baleia) lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se esponjariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”. (Graciliano Ramos, Vidas Secas)

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