Na Idade Média, cada estamento social se diferenciava do outro por meio de símbolos visuais. Distinções de vestimenta, do lugar na procissão, da possibilidade, ou não, de usar um cavalo. A figura de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, representam bem a época.
Já nos tempos modernos, os símbolos visuais sofrem alterações. Aristocratas e burgueses vão progressivamente criando e disputando objetos, símbolos capazes de expressar nobreza, poder e riqueza. O intuito era, e ainda é, separar uns dos outros, possuidores e despossuídos, de tradição, dinheiro ou autoridade.
Bordar monogramas para diferenciar a propriedade de objetos são costumes de uma nova sociedade (moderna) com reflexos nos dias de hoje. A utilização de marcas, grifes, de distintivos, capazes de caracterizar diferenças sociais, cresceram em frequência e importância. Onde você mora? Onde estudou? Qual a marca do seu carro? são alguns exemplos.
O protocolo assim como a etiqueta e os mais diferentes rituais são formas de letramento visual, gestual, sonoro, instrumentos de comunicação. As imagens, os adereços, as roupas, o cabelo, a cor, a música falam. Servem para aproximar ou separar as pessoas. Servem para diminuir ou aumentar as diferenças, para organizar ou hierarquizar os indivíduos, favorecendo ou desfavorecendo contatos e negociações entre pessoas, comunidades ou culturas distintas.
Em um mundo marcado pelos conflitos, o protocolo se torna uma arte, um tipo de letramento ritualizado, inventado para favorecer o diálogo, a comunhão entre povos e, principalmente, para a resolução de conflitos. O responsável pelo protocolo, o anfitrião e os profissionais da matéria têm habilidades semelhantes à do maestro na orquestra: calibra os detalhes. Mais destaque para as cordas, abrandem os metais, acentuem a percussão. Na orquestra, os vários instrumentos possuem pesos distintos na elaboração do concerto, mas a beleza do resultado, da harmonia, depende do conjunto todo.
O protocolo também procura a harmonia. Visa a concórdia entre os humanos em torno de objetivos políticos, econômicos ou culturais. O protocolo, ou mesmo a etiqueta, não é feito para humilhar, desqualificar ou hierarquizar aqueles que não navegam bem entre as regras propostas. Ao contrário, a arte do protocolo envolve maleabilidade criativa e respeito pleno aos convidados e, especialmente, aos adversários.
A formatação dos ritos, dos encontros, das negociações, em geral, gera tensão. O protocolo serve para facilitar, organizar os convivas favorecendo um encontro, uma comemoração ou uma negociação harmoniosa. Incidentes ocorrem. A arte é adequar o rito à circunstância mantendo a consonância necessária com os fins últimos a serem alcançados.
O número de pessoas e a presença de usos e costumes variados, em rituais de comemoração com delegações de países e culturas distintas, muitas vezes exigem sugestivas adaptações. A definição do traje, a boa administração dos espaços, dos contatos corporais, a percepção dos campos de conflitos entre determinados atores e o respeito genuíno pelos convidados, envolve sensibilidade complexa e clareza de objetivos para impedir constrangimentos.
Uma boa negociação/comunicação, em espaço ritualizado, só se realiza quando os negociadores, por um instante, se reconhecem como interlocutores. Trata-se de minimizar as diferenças e encontrar os pontos possíveis de aproximação, sem jamais humilhar ou desqualificar os participantes da cerimônia. Todos devem, na medida do possível, se sentir à vontade, por um instante, interlocutores respeitosos entre si.
A arte do protocolo visa a produção do sentimento de semelhança da condição humana e da comunhão entre os povos. Jamais, diante de um desvio no ritual, qualquer uma das partes deve produzir um olhar crítico, irônico, superior ou nomear um erro. A construção da paz entre os indivíduos pressupõe uma fagulha de “amizade/philia”, entre as partes, ainda que em conflito.
O protocolo é parte significativa da arte da negociação política. Suas raízes estão na diplomacia, no direito internacional, cujas origens remetem a discussões teológicas dos séculos 16/18. O objetivo último é proteger os direitos universais em favor da vida, da paz, da comunhão entre os povos.
Explico.
Os humanos brigam muito entre si. Não faltam guerras, disputas por poder, dinheiro e mesmo brigas em família. Em meio às discordâncias, a diplomacia e seus ritos surgem como a arte da negociação. Numa contenda econômica, em meio a uma guerra, ou negociações familiares as pessoas, as comunidades ou os países em confronto provavelmente ocuparão lugares desiguais embora, todos, façam parte da mesma comunidade humana. A arte do protocolo é amainar as diferenças facilitando o campo da negociação. Evidentemente como se trata de um tipo de letramento também pode ser utilizada para humilhar, separar, discriminar, embora não seja este o seu objetivo maior.
A posse de Lula foi uma aula de adequação do protocolo frente a uma tentativa de ruptura de uma tradição democrática: o antigo presidente eleito deveria, como de costume, passar a faixa presidencial para o novo presidente eleito. A passagem da faixa presidencial, símbolo nacional, representa o funcionamento do sistema democrático, a alternância do poder. Metáfora da democracia, do respeito à diferença, do exercício da polidez e da civilidade a faixa presidencial expressa as qualidades éticas e políticas necessárias ao bom funcionamento da vida democrática.
Rituais marcados pela comunhão das gentes, de povos e nações, rituais de revezamento do poder não combinam com governantes vocacionados para a construção de regimes autoritários. Estes preferem outros rituais, em geral marcados pelo culto à personalidade, realizados em espaços majestosos onde a cenografia pretende que se veja apenas um: o ditador. O objetivo da representação nos Estados autoritários é o culto ao líder apenas. O filme O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin, está repleto dessas imagens. A lógica totalitária exclui ritos de transferência do poder, personagens singelos e delicadezas cenográficas. O foco da cena é um. A meta é criar invisibilidades no tecido social, apagar e hierarquizar os atores sociais relativizando a participação política. O autoritarismo se reveste da valorização da agressividade (armas), da rusticidade retórica e da monumentalidade. A perspectiva, o ponto de fuga, é único e centralizado.
A posse do presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva), desenhada por Janja (Rosangela Lula da Silva), foi admirável do ponto de vista político e cenográfico. A representação democrática venceu a representação autoritária. Janja atualizou o papel da mulher usando calça comprida, desenhou um novo protagonismo para a personagem feminina, colocou na rampa do palácio o Brasil como ele é, com trajes usuais. Deu a Lula um presente consoante com a sua história e com a história de vida da maior parte dos brasileiros. Mostrou o Brasil por diversos ângulos e perspectivas, um Brasil multiétnico e multilateral.
A linguagem visual utilizada na posse de Lula quebrou os estereótipos introduzindo na cena política personagens invisíveis ou pouco considerados na história brasileira (cacique Raoni Metuktire, o menino Francisco, Wesly Viesba Rodrigues Rocha, Murilo de Quadros, Ivan Baron, Jucimara Fausto dos Santos, Flávio Pereira).
Janja, estimulada pelo impasse – Quem passaria a faixa para o presidente eleito? –, criou um novo protocolo, um ritual em que a faixa presidencial foi entregue a Lula por uma trabalhadora, catadora de materiais recicláveis, de nome Aline de Souza, incluindo, por meio dela, personagens tradicionalmente invisíveis na cena política.
Afinal a democracia é governo do povo, para o povo.
Simples.
O povo subiu a rampa.
E, mais, a chave de ouro: a cachorrinha, Resistência. Assim como Baleia, de Graciliano Ramos, ela expressou as velhas e novas contradições da história brasileira.
Vida longa para Resistência.
E para Baleia, muitos sonhos. Sonhos de um “mundo cheio de preás. […] (Baleia) lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se esponjariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”. (Graciliano Ramos, Vidas Secas)
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)