Nesta semana, pesquisadores das ciências humanas no Brasil se surpreenderam com uma nova denúncia pública de assédio sexual e moral contra um renomado professor, autor de inúmeros trabalhos e referência para muitas pesquisas no Brasil. Não pretendo discutir este caso específico, que deve ter muitos desdobramentos. Entretanto, como tenho estudado o tema das agressões atravessadas por gênero nas universidades, numa abordagem da antropologia, pretendo contribuir com políticas de boas práticas na vida acadêmica.
O caso apresenta, na sua denúncia, alguns elementos comuns a outros desse tipo que temos encontrado em nossas pesquisas – como a pesquisa sobre desigualdades de gênero nas universidades Carolina Bezerra e eu estamos fazendo. Menos que pensar nos mecanismos de como estas agressões acontecem – já escrevi sobre isso na coluna de dezembro e na do mês passado – penso aqui o que é preciso fazer para apurar os casos e propor medidas de prevenção. Na Rede Não Cala USP temos refletido sobre e, assim, agradeço às colegas que participam da rede.
É preciso pensar em pelos menos três estruturas diferentes: uma para acolher as pessoas que se sentiram agredidas, oferecer apoio e encaminhar atendimentos médico, psicológico, de assistência social; outra para que a queixa se transforme em denúncia e seja efetivamente investigada e, se procedente, que o autor de agressões seja responsabilizado; e por fim políticas de prevenção, educação e informação.
Para o primeiro atendimento das vítimas, diversas universidades têm apresentado um programa de atendimento psicossocial. Num local adequado, é preciso ter pessoas capacitadas para acolher e encaminhar a vítima seja em termos de atendimento psicológico, mas também de encaminhamento no nível jurídico. A Rede Não Cala USP já apresentou à reitoria, em 2017, uma proposta de um “centro de referência” que pudesse centralizar os atendimentos na USP em São Paulo, semelhante ao CAV-Mulheres (Comissão para Apurar Violência contra Mulheres e Gênero) do campus de Ribeirão Preto.
Quanto a formalizar uma denúncia e demandar reparação, como a grande maioria dos casos de assédio refere-se a situações de abuso de poder e ameaças, é preciso considerar especificidades para abrir uma sindicância. Primeiro, a denúncia deve ser ouvida, e os casos devem ser investigados, e não simplesmente abafados, como se fossem sempre acusações já consideradas injustas de antemão. Os modelos de sindicância e processo administrativo que ora temos nas universidades públicas, estaduais ou federais, tornam-se inadequados quando a denúncia tem relação com crimes como estupro ou assédio sexual, e mesmo em casos de assédio moral e outras agressões e discriminações. Os regimentos atuais precisam ser revistos: pessoas especializadas no problema que participem destas comissões, idealmente contando com docentes de fora da unidade em que a agressão aconteceu, e mudança (pelas regras atuais) no embate frente a frente entre quem acusa e quem é acusado.
Queria destacar um ponto aqui. Muita gente fala em protocolos. O atendimento psicossocial e o encaminhamento jurídico podem e devem estar articulados a protocolos de atendimento, mas a mera existência destes, sem pessoal treinado e espaços adequados não é suficiente.
Por fim, a conscientização do problema e programas de prevenção. A universidade é atravessada pelas desigualdades sociais – de classe, raça, gênero, sexualidade, deficiência – e tendeu a manter essas desigualdades. Naturalizou-se, de um lado, a existência de docentes vistos como “galanteadores” insistentes, e de outro, um modo de debater em que a agressividade nas palavras e a humilhação era incorporada como se fosse apenas “exigência intelectual”. A abordagem sexual entre docentes ou de docente para aluna ou entre servidores que se torna obrigatória e recorrente, formando um hábito de predação sexual, constitui uma forma de assédio sexual e moral. A relação desigual de poder faz com que alunas, docentes ou servidoras não saibam como evitar um professor ou superior insistente em sua abordagem, ou aquele que ameaça – ainda que de forma velada. Docentes e chefes precisam entender que a relação desigual de poder com alunas e servidoras não permite uma relação de “paixão” comum; que um docente ou chefe não pode usar suas verbas de pesquisa como método de barganha para troca de favores sexuais, ou para exigir mais e mais trabalho de estudantes, bolsistas ou servidores; que não se pode incluir nessas relações “brincadeiras” que promovem humilhação e constrangimento.
Como mudar esse modo de pensar e agir é o grande desafio. Para tanto: treinamentos, cursos, debates, textos como este, um código de ética que explicite o problema, e regulamentos que tratem explicitamente da questão.
Por fim, nesse ponto da prevenção e da mudança, deve ser objetivo explícito da reitoria, diretorias e chefias o enfrentamento do problema. A Universidade deve se posicionar de modo enfático ao lado do combate ao assédio moral e sexual, promovendo uma mudança de modo amplo e reiterado em seus documentos e na postura pública de seus dirigentes e docentes.