Silêncios estridentes: as contribuições de duas cientistas para nossa consciência ambiental

Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP

 04/06/2024 - Publicado há 2 meses

Tantas vezes o silêncio comparece no campo do Direito que talvez mereça uma disciplina própria*. O “direito ao silêncio”, consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, tanto na Constituição Federal como no Código de Processo Penal, é direito fundamental (ainda que não absoluto), que protege qualquer pessoa da eventual produção de provas contra si mesmo. Temos as popularmente denominadas “leis do silêncio”, previstas em leis orgânicas e códigos de conduta municipais, destinadas a evitar que ruídos, sons e vibrações perturbem o sossego de munícipes.

Um conceito interessante é o do “silêncio eloquente”, que é uma omissão consciente do legislador. Difere da “lacuna” que, embora seja também omissão, caracteriza uma deficiência técnica legislativa. E é curioso haver na Constituição Federal um desestímulo ao “silêncio do presidente da República” (artigo 66, parágrafo 3º), eis que os nossos presidentes habitualmente são verbosos por si sós. Até nas relações contratuais prosaicas o silêncio está presente, ainda que implicitamente: por exemplo, a ausência de contestação sobre uma cobrança durante um período determinado pode implicar em aceitação da dívida. A expressão popular associada é “quem cala, consente”.

O silêncio aparece com vigor também em outros contextos. Assim, diferentes agrupamentos religiosos dão elevado valor ao “voto de silêncio” como parte da dedicação a uma vida monástica. E estendem o reconhecimento para mais além dos institutos da vida consagrada – incluem a existência eremítica de fiéis que decidem se apartar do espaço mundano e praticar o silêncio na solidão. Mas o silêncio pode ser também uma punição. É o caso do “silêncio obsequioso”, uma sanção disciplinar prevista no Direito Canônico da Igreja Católica que consiste na proibição a um clérigo de pregar, publicar escritos ou realizar qualquer outra atividade pública que confronte a doutrina ou a disciplina.

Numerosas obras tratam dos sons do silêncio. Longe de ser um oxímoro, tratam de temas relevantes, entre eles a arte. É o caso do livro As Vozes do Silêncio, do notável pensador francês André Malraux (1901-1976), que em seu tempo foi um ativo militante da resistência antinazista. É uma síntese brilhante e bem documentada da história da arte, assim como uma meditação filosófica sobre a arte como uma expressão suprema da criatividade, que permite ao ser humano transcender os estreitos limites da sua própria condição. O mérito destacado de Malraux é reconhecido pela USP, que lhe concede, em 1959, o título de Doutor Honoris Causa.

Não poderia faltar neste conciso rol de referências a célebre canção da contracultura estadunidense Sound of Silence, lançada pela inesquecível dupla Paul Simon e Art Gurfinkel em 1964, há exatos 60 anos.

Nesse mesmo ano e país falece uma bióloga que, ao introduzir o silêncio sob uma perspectiva inovadora, torna-o uma alavanca de transformação da atitude para com a natureza de parcela expressiva da sociedade global. O livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson (1907-1964), publicado inicialmente como uma série de artigos na revista de grande circulação The New Yorker, evidencia impactos, frequentemente danosos, das ações dos seres humanos sobre o mundo natural.

A obra documenta os numerosos efeitos nocivos ao meio ambiente decorrentes do uso indiscriminado de pesticidas. Argumenta que esses produtos deveriam ser chamados de “biocidas”, pois impactam organismos diferentes daqueles que são os responsáveis pelas pragas alvo. Especificamente, ela nota a devastação que o DDT inflige às populações de aves e alerta sobre uma primavera futura caracterizada pela ausência de canto de pássaros.

“Primavera Silenciosa” é uma expressão tocante, inspirada em poema de um autor inglês. Por sugestão da agente literária da autora esse título, que era originalmente o nome do capítulo específico sobre os danos às aves, passa a ser o título da obra. Rachel não era a única pessoa que expressa preocupação com os efeitos deletérios do DDT. O que a singulariza é a combinação de “conhecimento científico e escrita poética”, junto com a capacidade de descrever processos químicos complexos em linguagem acessível ao público cientificamente leigo e a exemplificação de casos reais, o que impulsiona a inesperadamente copiosa divulgação do livro.

Esse fato leva a se concentrarem em Rachel as reações, algumas das quais truculentas, de grupos econômicos que veem os seus interesses privados contrariados. Uma ilustração é o alerta dado por cientistas vinculados a uma grande corporação para a desgraça que acometeria a sociedade humana se acatasse a tese de Rachel: “Se o homem seguisse os ensinamentos da senhora Carson, voltaríamos à Idade das Trevas, e os insetos, as doenças e os vermes voltariam a herdar a Terra”.

Mesmo afetada por um câncer, do qual pereceria meros dois anos após a publicação do livro, Rachel confronta representantes de poderosas indústrias químicas incumbentes, acusando-os de disseminar informações que são contrariadas pela pesquisa científica. Também repreende altos funcionários do governo de seu país por aceitarem acriticamente as reivindicações dessas empresas de que os seus produtos são seguros. Relativiza a eficiência imediata do uso de pesticidas como evidência de que são bons para a humanidade, alertando para o resultado negativo no prazo mais longo. E chama a atenção para o fato de que os insetos envolvidos nas pragas alvo tendem a desenvolver imunidade, enquanto os riscos para os seres humanos e o meio ambiente aumentam à medida que os inseticidas se acumulam nos organismos, inclusive no dos seres humanos, causando danos irreversíveis à sua saúde.

Ao contrário de críticas reiteradas que lhe são feitas, Rachel esclarece não estar defendendo a proibição ou a retirada completa de pesticidas do mercado, mas sim o seu uso responsável, adequadamente supervisionado e consciente do seu impacto nos ecossistemas. Conceitualmente, questiona a premissa de controle da natureza pelos seres humanos, que afetava o então paradigma dominante do progresso científico.

Um dos efeitos tangíveis imediatos da obra Primavera Silenciosa é impulsionar a jornada que leva à institucionalização de um robusto sistema regulatório em seu país. Nele se destaca a criação, em 1970, da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (conhecido pela sigla EPA do seu nome em inglês Environmental Protection Agency), ente federal encarregado de salvaguardar a saúde humana e a totalidade do meio ambiente (ar, água e terra). Retratando o impacto duradouro sobre as mentalidades, em 2012 a Primavera Silenciosa é designada como marco histórico nacional da Química pela American Chemical Society, por seu papel no desenvolvimento do movimento ambiental moderno.

O Brasil embarca em jornada análoga pouco tempo depois, institucionalizada pelo estabelecimento, em 1973, da Secretaria Especial do Meio Ambiente no Governo Federal. Seu primeiro e longevo titular é o professor da USP Paulo Nogueira Neto (1922-2019). Coetânea de Paulo, a eminente engenheira-agrônoma tcheco-brasileira Johanna Döbereiner (1924-2000) se torna referência nacional e internacional ao desenvolver na Embrapa uma tecnologia, alinhada com o pensamento de Rachel Carson, que aproveita as associações entre plantas e bactérias. Sua pesquisa gera as bases da fixação biológica do nitrogênio para a nutrição das plantas, que substitui com expressivas vantagens, inclusive econômicas, o uso de adubos minerais importados.

A primeira aplicação em grande escala se inicia na mesma década de 1960 em que a Primavera Silenciosa vem à luz. Trata-se da introdução da cultura extensiva da soja no Brasil, que demonstra sobejamente ser a proposta de Johanna, poupadora de divisas preciosas e mitigadora do impacto sobre o meio ambiente. Como acontece com inovações, essa solução tem que superar as fortes resistências do conservantismo, partidário da reprodução pura e simples do modelo adotado nos Estados Unidos para aclimatação e melhoramento da soja.

Rachel Carson e Johanna Döbereiner são hoje amplamente reconhecidas, a primeira apenas post mortem e a segunda ainda em vida. Ambas são um modelo para a ciência honesta em geral e para as mulheres cientistas em especial. Comemoramos em 2024 os aniversários redondos (seis décadas da morte de Rachel e um século do nascimento de Johanna) dessas duas personalidades que tanto contribuíram para a consciência ambiental contemporânea lembrando um provérbio de origem remota: “As palavras são de prata, o silêncio é de ouro”.

* O autor agradece ser informado sobre a sua eventual existência em algum dos quase dois mil cursos de Direito registrados no Cadastro e-MEC.

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