Escolha de Sophia sempre está presente na vida. Só precisamos perceber

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 16/11/2022 - Publicado há 2 anos

Em 1982 o filme A escolha de Sophia foi premiado, com Oscar de Melhor Atriz para Meryl Streep, que arrasou. A cena-chave do filme era uma situação em que a Sophia, mãe de duas crianças, estava frente a um soldado que exercia a função de porteiro, controlando a mobilidade das pessoas em plena II Guerra. Ela tinha que escolher qual das crianças passaria e seria salva e qual não passaria e não sobreviveria. O sonho da mãe sempre direcionou por salvar as duas crianças, que era o que a personagem queria e todos podemos nos colocar no seu lugar sentindo o terrível conflito. Por outro lado, ao querer salvar ambas, perderia as duas, o que ela, definitivamente, não suportaria. A irreversibilidade da decisão afetaria a vida de Sophia de forma implacável, dada a situação de extrema crueldade.

A emoção transmitida no filme foi reconhecida e Meryl Streep recompensada, pois, além do Oscar e do Globo de Ouro, teve outras premiações. O filme foi tão marcante que, décadas depois, a expressão A escolha de Sophia é utilizada para retratar decisões muito difíceis, que incluem ganhos, mas com perdas que podem trazer muita dor e mesmo questionamento sobre supostos benefícios. A vida imita a arte e a arte reproduz a vida no sentido de que enfrentamos situações de conflitos complexos com relativa frequência.

Normalmente aceitamos (arriscado dizer isso em ambiente acadêmico) que é fundamental que as pessoas saibam o que querem para si e para as organizações. Verdade, isso é muito importante na vida das pessoas e no ambiente das organizações. Afinal, saber o que se quer direciona as ações, os recursos e, principalmente, os sonhos. Simplificaria dizendo que dá força, proporciona energia para as nossas ações e é estrategicamente saudável. Precisamos disso, embora possa ser algo mutável e/ou ajustável no tempo, de acordo com os contextos.

Entretanto temos que levar em conta que, além de ter clareza do que se quer, é muito importante saber… o que não se quer. O que seria mais difícil decidir? Depende. Muitas vezes o que se quer pode parecer mais fácil e acomoda as mentes e o nível do que pode ser insuportável. Em muitas situações o esforço demanda nível de energia que parece gerar tanto desgaste que estimula o desinteresse em olhar o lado difícil do futuro, que é assumir o que não se quer. No final das contas, as duas devem se integrar para evitar a inércia. Para ter clareza a reflexão pode ser complexa e para evitar que oportunidades futuras sejam antecipadamente barradas. Particularmente a dificuldade pode estar ligada ao normal descasamento do que se quer e o que não se quer no horizonte de tempo. Além disso, o risco aparece como um fator importante quando o que se quer tenha relativa baixa possibilidade de ocorrência e o que não se quer pode ter quase uma certeza implícita.

O tema pode ser entendido e aplicado nas organizações, nos projetos e… na vida dos indivíduos. A inspiração proporcionada no entendimento das pessoas é muito útil e poderosa para validar ideias, teorias e abordagens. Nesse sentido, Robert Simons, no campo organizacional, trouxe uma contribuição relevante ao desenvolver um modelo a ser aplicado na gestão, em que uma das alavancas é propulsora de decisões estratégicas que estimulam o avanço da organização (definindo o que se quer, o que nos impulsiona, no paralelo de Simons seria o Yang da tradição chinesa). A outra alavanca limita esse desenvolvimento evitando riscos, aventuras e dispersão de energia (deixando claro o que não se quer, colocando limites e que Simons compara com o complemento do Yang, que é o Yin).

Na sua abordagem Simons estimula a identificação do que não se quer em termos de oportunidades estratégicas, questões morais, legais, políticas, de postura, bem como limitações da amplitude de atuação dentro de uma organização. Importante dizer que tanto o que se quer quanto o que não se quer devem ser revisados ao longo do tempo em função das mudanças contínuas e das alterações no ecossistema da organização. Sem a palavra aprendizado não é possível olhar adequadamente para o tema e aí a evolução do cenário no tempo tem o poder de proporcionar benefícios.

Alguns ingredientes são necessários para que a escolha de Sophia seja otimizada. Uma delas é a vida útil do impacto da decisão e a outra é a sua reversibilidade no tempo. Reversibilidade indica que a decisão pode ser alterada, ajustada e mesmo aperfeiçoada em algum momento e em algum grau. Em algumas circunstâncias deixamos de perceber essas possibilidades e seu alcance, o que torna a tensão no momento da decisão ainda maior do que seria necessário. Este aspecto se torna ainda mais importante com a variabilidade e instabilidade dos cenários presentes e futuros para os quais as decisões forem pensadas.

O tempo é essencial em tudo na vida das pessoas e organizações e, em algumas situações, ele pode ser gerenciado, quando aguardamos os melhores momentos para tomar a decisão, quando escolhemos os melhores momentos para implementar, quando dividimos a decisão em várias etapas e mesmo quando podemos esperar resultados para avançar. É verdade que nem sempre isso será possível, mas cabe nos questionar o que perdemos se a variável tempo for administrada, em detrimento da necessidade, algumas vezes, insana do ativismo de respostas imediatas, que se tornou um dos males do milênio.

O risco de não ocorrência do que se quer é um ponto de partida importante confrontado com o risco do que não se quer. Para isso, o grau de entendimento do cenário em que os eventos ocorrerão é vital. Ter informações razoavelmente confiáveis nesse mundo cada vez mais volátil se torna um ingrediente fundamental para o processo decisório, mas sabemos que a validade das informações no horizonte temporal alongado também é parte da dificuldade na escolha de Sophia.

O objetivo desta reflexão foi oferecer a lógica de que a decisão do tipo A escolha de Sophia sempre existirá, quer nós tenhamos consciência de sua amplitude ou não. Ao olhar para trás podemos perceber se as escolhas foram calcadas em elementos razoáveis e adequados e, se desejarmos, teremos algum aprendizado. No final sempre seremos Sophias ou poderemos influenciar Sophias, individualmente ou grupalmente nas organizações privadas e públicas.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.