Democracia no Brasil é para negros?

Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 05/04/2024 - Publicado há 8 meses

O golpe militar de 1964 completou 60 anos. Instituiu uma ditadura por 21 anos, só encerrada com a transição de acordos que culminou com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney por via indireta em 1985. A Constituição promulgada em 1988 instituiu de vez o arranjo institucional democrático que vigora até os dias de hoje.

Entre final de 2022 e início de 2023, o Brasil viveu na iminência de um novo golpe de Estado com a ação de grupos defensores do ex-presidente Jair Bolsonaro que tentaram derrubar o governo eleito em 2023. As instituições agiram e estão agindo para punir os que tentaram esta aventura.

Estes dois fatos relatados são a base para um momento em que a “defesa da democracia” como um valor universal no Brasil ganhe corpo no debate público contemporâneo. Ampliando um pouco mais, observa-se que há um nítido crescimento de forças autoritárias em todo o mundo – partidos de inspiração nazifascistas ganhando eleições em nações europeias (e até na vizinha Argentina), medidas autoritárias sendo aprovadas em Parlamentos, entre outras.

O que falta refletir em um país como o Brasil é se uma defesa abstrata da democracia é suficiente. Isto porque o que se observa é que essas ideias extremistas têm apoio em parcelas significativas da sociedade. E é um erro considerar que tal apoio decorre unicamente de “ignorância”, “disseminação de fake news”, “ausência de uma consciência democrática”, entre outros. A pergunta é: até que ponto esta “democracia” tem um significado substantivo na vida das pessoas?

Segundo o último censo do IBGE, o Brasil possui 45,3% da sua população autodeclarada como “parda”, 43,5% como brancos, 10,4% pretos, 0,8% indígenas e 0,4% amarelos. Entretanto, a Câmara dos Deputados – um dos órgãos máximos do Poder Legislativo federal e eleito proporcionalmente pelos eleitores – possui 72% de brancos, 20,8% de pardos, 5,2% de pretos, 0,9% de indígenas e 0,6% amarelos. O Supremo Tribunal Federal não tem nenhum ministro negro. Isto apesar de, segundo o TSE, nas eleições de 2022, o número de candidaturas pretas e pardas ser aproximadamente 47%.

Por outro lado, as estatísticas mudam quando se trata da população encarcerada. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 68% da população carcerária no Brasil era composta de negros (pretos e pardos) contra 30,4% de brancos. Já o Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) aponta que 65% dos mortos pela polícia em 2022 eram pessoas negras. A Polícia Militar da Bahia, Estado com o maior porcentual de pessoas negras do Brasil, foi a que mais matou civis em 2022: 1.465, com 95% deles sendo negros (a população negra no Estado é de 80%).

Assim, a “democracia” brasileira construiu perversamente um sistema representativo “branco” e uma criminalização do ser “negro” em proporções inversas à própria composição da sua população. Pode-se dizer que a maioria é criminalizada e perseguida pelas estruturas de segurança pública e uma minoria é representada nos aparelhos institucionais.

Tal distorção é estrutural e foi fortalecida por conta da trágica coincidência de agendas no período da redemocratização do Brasil. No final dos anos 1980, ao mesmo tempo que ocorria a reconstrução da democracia no Brasil, avançava um novo ordenamento socioeconômico no capitalismo mundial – o neoliberalismo – que aprofundou a concentração de renda, instituiu relações de trabalho precarizadas, ampliou a subordinação da economia nacional ao circuito global do capitalismo. Por isto, a Constituição de 1988 desde a sua promulgação vem sendo vilipendiada, alterada, modificada na maior parte das vezes com a remoção ou limitação de direitos sociais. Houve, em média, 3,7 emendas constitucionais aprovadas por ano desde a promulgação da atual Constituição.

Importante ressaltar que, no processo de transição do regime autoritário para a democracia, o movimento negro no final dos anos 1970, particularmente com a fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR), apontava que os aparatos repressivos da ditadura também eram voltados para reprimir violentamente os jovens negros da periferia. O assassinato de Robson Silveira da Luz, em 4 de maio de 1978 em uma delegacia no bairro de Guaianazes, zona leste da capital paulista, foi um dos impulsionadores do ato que fundou o MNUCDR nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em julho do mesmo ano.

No ano de 1980, este mesmo movimento apresentou uma tese no Congresso Brasileiro da Anistia. Nesta tese afirmava que a polícia exercia duas funções em relação ao negro. A primeira era mantê-lo subordinado ao “exército de reserva de mão de obra barata”, uma vez que a pessoa que não comprovasse estar empregada estaria “sujeita a sanções” do Estado com penas que variam do espancamento na rua até a detenção para averiguação. A segunda é quebrá-lo psicológica e organizativamente, ao persegui-lo em qualquer lugar e a todo momento, fazendo-o “ter vergonha da sua raça e se isolar do seu grupo”.

Já em 1988, a Escola Superior de Guerra, think tank das Forças Armadas durante a ditadura militar, publicou um documento intitulado Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI – 1990/2000 Década Vital para um Brasil Moderno e Democrático, no qual defende que as forças de segurança no período “democrático” deveriam conter dois focos potencialmente desestabilizadores do poder e da ordem: os chamados “menores” abandonados e os cinturões de miséria. Por isso apontavam que os poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – poderiam solicitar “o concurso das Forças Armadas para enfrentar esta horda de bandidos, enfrentá-los, neutralizá-los e até mesmo destruí-los para ser mantida a Lei e a Ordem”. O papel das Forças Armadas como instituição que pode ser mobilizada para manter a “lei e a ordem” foi instituído no artigo 142 da atual Constituição Federal por pressão de setores mais radicalizados dos militares.

O Brasil passou quase ⅔ da sua existência com a vigência da escravização de negras e negros. A abolição de 13 de maio de 1888 não foi acompanhada de mudanças significativas que permitissem a inserção plena da população negra. E, nos dias atuais, em que se busca defender a “democracia”, estes gargalos persistem. Quem mora em bairros periféricos, está acostumado a ver invasões de domicílios sem mandados judiciais, prisões ilegais, execuções por parte de forças policiais. E um Congresso majoritariamente branco e elitista discute medidas que querem recrudescer ainda mais o sistema punitivista que, como os dados mostram, tem como alvo prioritário a população negra. Se não se pensar que democracia não se limita apenas a mecanismos procedimentais e formais, ela terá pouco sentido para a população negra e da periferia. Daí não é de se espantar que saídas autoritárias se apresentem como alternativas e ganhem apoio.

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