Entender as affordances das plataformas e seus usos em campanhas políticas, especialmente no contexto da ascensão de líderes autoritários no mundo inteiro, o que coincide com a adoção em massa das plataformas digitais das big techs (Facebook, Twitter, agora X, Instagram, TikTok e outras) e o nomeado “populismo digital”, tem sido uma tarefa importante para vários pesquisadores.
Em 2024, em conjunto com pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP e que já pesquisavam eleições no ambiente digital, Natasha Bachini Pereira e Pablo Almada, publicamos o artigo Monitoramento das eleições brasileiras de 2022: affordances das plataformas YouTube, Instagram, TikTok, Twitter e Facebook e os usos em campanhas digitais. O objetivo era entender como cada plataforma foi usada pela campanha dos então candidatos à presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. Uma das conclusões do texto é que a única plataforma a captar um maior engajamento de Lula no segundo turno, o que se traduziu em votos e na sua eleição, foi o Twitter, como um espaço de “esfera pública automatizada”, enquanto Bolsonaro, com um perfil de “influencer digital”, dominava TikTok e Instagram e tinha números altos de seguidores, mas não engajamento nas discussões sobre a eleição. O jornalismo profissional teve um papel decisivo para o crescimento de Lula no Twitter na relação com a “segunda tela”, a televisão (vou ler a citação do artigo):
Consideramos que o Twitter tem, em sua vocação, a affordance social, como um emulador da esfera pública. Esta affordance pode ser confirmada, a uma certa altura, quando houve o crescimento de uma presença mais qualificada do então candidato Lula e sua melhora de desempenho na reta final da campanha. A participação de Lula no Jornal Nacional converteu-se nas duas hashtags que mais geraram interações: #LulaNoJN e #LulaNaGlobo. Este fato evidencia a combinação de uma affordance social e uma affordance comunicativa que é estudada há algum tempo: a relação entre TV e Twitter/X como segunda tela.
Na campanha deste ano para prefeitura e vereadores em São Paulo, que gerou quatro relatórios, usamos o software Fan Page Karma para o monitoramento, que por sua vez privilegia as affordances das plataformas geradas por métricas de engajamento por perfil de candidato.
Em 2022, também no debate da Rede Bandeirantes, monitorei com o pesquisador de pós-doutorado Pablo Almada, do NEV, a repercussão no Twitter do ataque do então candidato Bolsonaro à jornalista Vera Magalhães. Naquela ocasião, ele adotou uma atitude “respeitosamente agressiva e violenta”, não atacando explicitamente o gênero da jornalista (estava justamente com rejeição das eleitoras mulheres), mas cunhando a hashtag #veravergonhadojornalismo, que se espalhou na sua bolha de retuítes. Em 2018, Bolsonaro não poupou agressividade nos ataques a Patrícia Campos Mello, mas naquela ocasião contava com o ineditismo da primeira eleição e de uma popularidade pré-pandemia.
O que se nota nestes monitoramentos é como há várias maneiras de atacar a imprensa e jornalistas. Existem padrões, é claro, mas também variações que atendem melhor a determinados interesses em momentos pontuais. Falamos do padrão de Marçal na coluna de setembro. Ele se diz defensor das mulheres pois se casou com a primeira namorada, não pode usar o expediente de atacar jornalistas mulheres, sempre alvos fáceis na misoginia reinante no Brasil, e alvos para propagação de desinformação. Como também já usa a imagem do provocador por excelência e antissistema, não pode forçar a mão em ataques explícitos contra a imprensa e jornalistas. Assim, inclui em suas declarações um discurso mais brando e subterrâneo de deslegitimização do jornalismo, falando que o “jornalismo não mostra, esconde”. Este discurso não é menos nocivo, pois visa também descredibilizar o trabalho e a importância do jornalismo para a democracia. Ele deixa para a sua militância na internet “fazer o trabalho sujo”, que aí direcionam agressões aos veículos jornalísticos e a jornalistas ativos nas eleições.
Desta maneira, consegue isolar sua bolha de seguidores da cobertura jornalística profissional, especialmente a investigação da sua carreira de golpes na internet. Contra os veículos e jornalistas que cobriram este passado criminoso do candidato, Marçal já atacou, mas fora da internet e na surdina, ao iniciar uma série de grande número de processos a veículos e jornalistas que falaram de seus envolvimentos criminais – uma nova série de assédio judicial, ou, em inglês, Slapp (Strategic Lawsuit Against Public Participation).
Para responder à pergunta feita no início do título, o que notamos nestes três anos de monitoramento de eleições no Brasil é que a arquitetura das plataformas privilegia políticos com vocação populista de extrema direita, ao mobilizar seus seguidores em bolhas que, organicamente mas também pela atuação dos candidatos, atacam sistematicamente veículos e jornalistas empenhados na atuação em debates na TV e na cobertura das eleições. Se, posteriormente, isso se traduz ou não em votos, é outra questão. Bolsonaro perdeu as eleições de 2022 e Pablo Marçal não passou para o segundo turno em São Paulo por 56.853 votos.
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