De Gil Gomes ao True Crime, uma breve história do jornalismo policial

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 07/07/2023 - Publicado há 1 ano

Desde o começo do século 20, quando os jornais se popularizaram e começaram a levar informação sobre os acontecimentos frenéticos das cidades, a reportagem policial foi uma fonte inesgotável de histórias. O consumo das notícias de crime, ao mesmo tempo que mexia com as emoções dos leitores, parecia servir como uma vacina para que eles se sentissem mais protegidos diante da imprevisibilidade do mundo moderno.

Se essas histórias aguçavam o medo do inesperado, no decorrer da apuração, também revelavam o desfecho do caso, especulavam suas causas e apontavam os culpados. Oferecia, dessa maneira, fatos objetivos que aumentavam a sensação de controle e de ordem, como se o conhecimento dos riscos ajudasse na antecipação das surpresas cotidianas. E a modernidade dos centros urbanos em formação era um mundo repleto de novidades.

Não havia lugar melhor do que as delegacias para os jornalistas colherem essas ocorrências que fugiam à normalidade. Brigas entre amantes e casais, envolvendo ciúmes, crueldade, paixão, desejo de posse, em ações praticadas por assassinos frios, ladrões gananciosos, despertavam a curiosidade e o pavor. Levantavam milhares de perguntas, que os casos policiais ajudavam a escarafunchar.

Ainda no começo do século, dois crimes da mala chocaram São Paulo e entraram para a história a partir dos registros na imprensa. Primeiro, em 1908; depois, em 1928. Os casos envolviam intrigas entre imigrantes de outros continentes que tentavam a sorte no Brasil. A trama levou os autores a esquartejarem suas vítimas e tentarem se livrar de seus corpos despachando a bagagem, até serem descobertos. Em 1938, o massacre de quatro pessoas em um restaurante chinês também foi acompanhado pelos jornais como uma novela. Foi o tema do livro O crime do restaurante chinês – carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30, do historiador Boris Fausto, que a partir do resgate do crime buscou compreender a cultura da época na cidade.

A vida bandida ainda era um caminho excepcional, associada aos desajustados, vistos como desviantes, que não se enquadravam por causas de traços individuais e de personalidade. Como o ladrão italiano Gino Meneghetti, uma das lendas do crime paulista. Chegou a São Paulo em 1913, aos 35 anos e mereceu diversas biografias. Ganhou fama de ser o maior gatuno da América Latina. Registrou fugas cinematográficas, correndo pelos telhados da cidade. Entre idas e vindas à prisão, roubou até os 80 anos e se tornou um ícone da rebeldia.

As reportagens policiais e as histórias de crime eram atraentes porque ajudavam a pensar sobre a tensa relação entre desejos, escolhas, autocontrole e civilidade. Conforme as religiões perdiam influência na vida pública, a racionalidade do direito e da Justiça deviam ocupar seu papel no controle dos comportamentos. Foi assim desde a primeira metade do século 19, nos contos protagonizados pelo primeiro detetive de ficção da literatura, monsieur C. Auguste Dupin, que solucionava os mistérios criados por Edgar Alan Poe. Cinco décadas depois, Dupin serviria de inspiração para Arthur Conan Doyle criar Sherlock Holmes, que seguiu influenciando escritores e cativando leitores até os dias atuais.

A perspicácia desses heróis parecia celebrar o triunfo das luzes sobre os desejos mais sombrios. Nenhum impulso bestial parecia capaz de escapar dos limites impostos pelo conhecimento. Se todos estavam sujeitos à loucura repentina, a inteligência e a lógica usadas por Dupin e Homes seriam o remédio para produzir bom senso e evitar o caos. Esse otimismo, não demoraria muito tempo, se revelaria exagerado, junto com o crescimento da violência das cidades brasileiras.

A dinâmica da imprensa e da sociedade se transformaram com o passar das décadas, na velocidade do Brasil que se urbanizava. Nas metrópoles superlotadas que cresciam de forma improvisada, o medo da desordem crescia junto com os homicídios e os crimes patrimoniais. O ato criminoso não era mais visto como um rompante pessoal e excepcional, mas como um problema social a ser controlado com urgência e firmeza. Os migrantes, vindos das zonas rurais empobrecidas, que chegavam em busca do sonho da ascensão social, representavam essa ameaça à segurança pública.

Os jornais populares que surgiram no período refletiam parte desse sentimento emergente. Foram criados com objetivos políticos, para posicionarem seus donos no novo ambiente eleitoral democrático que surgia com o fim do Estado Novo. O Última Hora, de Samuel Wainer, foi criado em 1951 para apoiar o trabalhismo de Getúlio Vargas. No mesmo ano, Chagas Freitas e Adhemar de Barros criaram O Dia. Em 1954, o deputado Tenório Cavalcante criou o Luta Democrática, que chegou a ser o terceiro maior jornal do Rio. Tenório sonhava governar a Guanabara e fazia oposição a Getúlio. Era conhecido como o Homem da Capa-Preta, tinha fama de pistoleiro e andava com uma metralhadora lata-de-goiabada a tira colo, apelidada de Lurdinha.

Em São Paulo, o Notícias Populares foi inaugurado em 1963 pelo deputado Hebert Levy, que era proprietário da Gazeta Mercantil e foi convencido pelo jornalista romeno Jean Mellé a investir em um jornal popular para reduzir as chances de uma revolução comunista no Brasil. A fórmula para atrair o interesse geral era a mesma: publicar corpos baleados e histórias policiais na capa, fotos de mulheres sensuais, notícias de futebol e novidades sobre temas sindicais.

Como as fontes de informação vinham das delegacias, os jornalistas acabavam assumindo o discurso dos policiais, que dialogava com o senso comum. Na cidade descontrolada, cercada pela miséria, o medo dos roubos e da violência se tornavam um dos temas principais das conversas e ganhava dimensão inédita. Mais do que fazer investigações minuciosas contra desajustados, ao estilo Dupin, os policiais precisavam entrar em guerra contra uma parte da população, que tinha endereço, raça e origem cultural comuns: os migrantes e seus descendentes empobrecidos, negros e moradores das favelas, morros e periferias. A civilização urbana precisava se defender dos bárbaros que a cercavam. Eles eram suspeitos e perigosos, a não ser que conseguissem provar o contrário.

A guerra ao crime deu o tom das histórias relatadas nas páginas dos novos jornais populares, em que os esquadrões da morte e diversos grupos de extermínio ganharam destaque ao eliminarem suspeitos no Rio, em São Paulo e em outros estados do Brasil. Muitos desses grupos eram inventados e produzidos por jornalistas. Aumentar ou criar histórias fazia parte do sensacionalismo na profissão, o que incluía colocar cartazes ao lado do corpo das vítimas, batizar gangues de extermínio inexistentes, para atrair a atenção dos leitores. Foi o caso do Mão Branca, matador inventado por um redator, que era apontado como suposto autor de homicídios na Baixada Fluminense dos anos de 1980. A guerra do bem contra o mal não podia faltar nas páginas dos jornais populares.

Movimento parecido foi puxado nas rádios e na televisão em busca de audiência. Entre 1962 e 1969, Jacinto Figueira Júnior inaugurava a fórmula dos primeiros programas sensacionalistas da tevê brasileira e sua trajetória é relatada no livro O Homem do Sapato Branco – A vida do inventor do mundo cão na televisão brasileira, de Maurício Stycer. A fórmula seria replicada depois por outros programas, como O Povo na TV, Aqui Agora, Cidade Alerta, Balanço Geral, entre outros. Nas rádios, a partir de 1968, Gil Gomes inventaria um jeito próprio de apimentar os crimes mais dramáticos, com sua voz de Conde Drácula e músicas de terror ao fundo. Afanásio Jazadji repetiria o sucesso no programa Patrulha da Cidade nos anos de 1980. Os policiais, fontes dessas histórias, se reafirmavam como os heróis do cotidiano paulista.

A estrutura básica do jornalismo policial se reinventava, mas mantinha sua essência. Por meio do sensacionalismo, que apelava para a emoção com fotos ou descrições de cenas explícitas de crime, as histórias atraíam a atenção dos ouvintes e telespectadores. A novidade era que os apresentadores, nas rádios e tevês, davam credibilidade ao programa e ditavam a visão de mundo que legitimava a guerra diária da polícia contra os suspeitos. Muitos desses âncoras acabaram partindo para a política.

Passei a trabalhar com o tema no jornalismo e na academia desde o final dos anos de 1990. O cenário já havia mudado em diversos sentidos. A reportagem policial continuou relevante, assim como os dramas por trás de cada ocorrência. Sem perder essas histórias de vista, tentei trabalhar dando enfoque ao tema da segurança pública, tentando observar de forma crítica as ações policiais, o funcionamento do sistema de justiça e penitenciário e o universo criminal. Busquei acompanhar o sobe e desce dos homicídios no Brasil e as transformações do mundo do crime, puxadas principalmente pelos negócios bilionários da venda de drogas.

As gangues brasileiras se estruturaram e passaram a funcionar como uma fonte de recursos para promover outras atividades ilegais. Deixaram a venda no varejo para assumir o atacado, transformando o Brasil em um corredor estratégico para a venda internacional de drogas. Facções, como o Primeiro Comando da Capital, que surgiram dentro de prisões superlotadas, se espalharam pelo país e inventaram formas inovadoras para governar esses negócios ilegais bilionários. Havia uma história a ser contada que ia muito além dos casos isolados de crimes. O maniqueísmo que enaltecia a polícia também precisou ser deixado de lado, considerando o surgimento de diversas gangues fardadas, caso das milícias, que passaram a desempenhar papel fundamental na cena criminal do Rio de Janeiro e de outros estados. Cabia ao jornalismo, assim como às ciências sociais, entender e descrever esses movimentos com todas suas nuances.

As ocorrências espetaculares continuaram a ganhar ares de novelas na cobertura policial feita pela imprensa, em crimes como o praticado por Francisco Assis Pereira, o Maníaco do Parque, Eliana Matsunaga, Suzane Richthofen, entre outros. Com o passar dos anos, eles invadiram os streamings, em podcasts e séries de true crime que, curiosamente, passaram a ser produzidas principalmente por mulheres, voltada sobretudo ao público feminino. Qual o papel social que exercem? Como se conectam com a história do jornalismo policial? Não sei ao certo, mas buscarei entender melhor no próximo semestre, junto com alunos do curso de jornalismo da FAAP, em que darei aulas sobre o tema. É possível contar histórias de crime que, além de entreter, ajudem a levantar questões sobre a cultura e os traços individuais por trás dessas ações. O podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo, sobre o assassinato de Ângela Diniz e sua repercussão à época, é um modelo a ser seguido.

Dois de nossos maiores escritores, Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca, produziam obras de arte a partir de histórias de crime. Nelson, em uma entrevista para o Ciclo de Teatro Brasileiro do Museu de Imagem e do Som, foi categórico: “todo meu teatro tem a marca de minha passagem pela reportagem policial”. Já Fonseca, antes de começar a escrever, foi comissário de polícia. Ambos conseguiram resvalar na profundidade do espírito humano e tratar dos desafios de viver em sociedade a partir de casos de violência.

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