Ailton Krenak, uma voz indígena na Academia Brasileira de Letras

Por Alexandre Macchione Saes, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 11/10/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 19/10/2023 às 18:01

A indicação de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma notícia que revela novos tempos na definição do perfil dos imortais desse espaço de celebração da produção literária e social brasileira. Uma transformação que aceita o diálogo da ABL com questões tão centrais travadas por nossa sociedade contemporânea, promovendo e reconhecendo vozes até então apagadas no cânone nacional.

Uma instituição que, em capítulos de sua história, teve dificuldade de enfrentar seu conservadorismo, ou melhor, o conservadorismo da própria sociedade brasileira. A criação da ABL, em 1897, se deu a partir da nomeação de 40 membros fundadores da academia, todos homens. Evidentemente que a formação não representava a verdadeira produção literária do período, excluindo expressivas autorias femininas. O ilustrativo caso da escritora Júlia Lopes de Almeida deve ser lembrado.

Autora de livros muito difundidos no alvorecer do Brasil republicano, tais como o afamado A falência, de 1901, Júlia não somente foi personagem importante na idealização da ABL, como chegou a figurar entre os imortais que seriam reconhecidos na fundação da academia. Sua indicação, todavia, não foi sufragada, por deliberada decisão dos fundadores de manter a confraria fechada às vozes femininas.

Como é pior a emenda do que o soneto, a lista ficaria sem Júlia, mas com o poeta e dramaturgo Filinto de Almeida, marido da imortal “por direito”. A primeira autora a integrar a Academia Brasileira de Letras seria Raquel de Queiroz, somente 80 anos depois, momento em que finalmente o regimento da ABL passaria a aceitar a presença de mulheres na academia. Essa história está devidamente narrada pelo trabalho de Michele Asmar Fanini, Fardos e fardões: mulheres na academia brasileira de letras (1897-2003), apresentada em 2009 no programa de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Mais recente polêmica nas indicações da ABL ocorreu em 2018. Naquela altura, a candidatura da escritora Conceição Evaristo, cuja produção ressaltava a dimensão da discriminação racial e de gênero, tinha o peso de levar a primeira autora negra a figurar entre as cadeiras da ABL. Mesmo com uma campanha por diversidade disseminada na mídia e levada a cabo pela sociedade civil, a defesa do nome de Conceição Evaristo não sensibilizou os membros da ABL.

A indicação de Ailton Krenak, nesse sentido, permite abrir as portas da academia para uma obra representativa que se formou distante dos cânones literários. Sendo o primeiro indígena na academia, a chegada de Krenak para ocupar a cadeira que pertencia ao historiador José Murilo de Carvalho permite que novas ideias, novos saberes, novas formas de representação estejam presentes nesta centenária instituição.

Um movimento que amplia as fronteiras da ABL, entre a literatura e a sociedade. Uma indicação que sugere uma possível mudança de rumo numa academia aparentemente mais conectada com os desafios da contemporaneidade, seja na indicação de nomes como Fernanda Montenegro e Gilberto Gil, em novembro de 2021, no contexto em que a existência da cultura vinha sendo desafiada, ou de Heloísa Teixeira, em abril de 2023, que reforçou o discurso contra a desigualdade de gênero dentro da academia e na sociedade brasileira.

A trajetória do líder indígena Ailton Krenak é bastante conhecida, tendo assumido protagonismo na Constituinte no final da década de 1980. Sua produção literária é mais recente, com oito livros publicados nos últimos quatro anos, sendo Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019) possivelmente o mais disseminado. Uma narrativa crítica sobre os descaminhos do capitalismo, da agressiva relação entre a natureza e o sistema de produção e consumo da civilização ocidental.

Em 2022, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) realizou a exposição 200 livros para pensar o Brasil. Partindo dos clássicos da literatura nacional, como também pelos chamados intérpretes do Brasil, a seleção não podia deixar de reconhecer obras que têm pautado a produção literária e social nas últimas décadas.

Ao lado de Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, a exposição trazia a autoria indígena com Daniel Munduruku, Kaka Werá e Márcia Wayna Kambeba; vozes femininas e negras com Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Conceição Evaristo; vozes da periferia com Racionais MC’s, Ferréz e Sérgio Vaz, entre tantos outros autores e autoras que ampliavam a representatividade das autorias e as propostas de análise sobre o Brasil.

Assim, ao abarcar não somente os autores canônicos e recorrentes em qualquer lista dos “intérpretes do Brasil”, a listagem dos 200 livros da BBM percorreu a vasta literatura brasileira, encontrando novas abordagens, personagens e autores que, apesar de menos reconhecidos pela crítica, traziam vigorosas ideias para entender o País.

A inédita indicação de uma voz indígena para a ABL, num contexto em que a sobrevivência dos povos indígenas vem sendo ameaçada, é uma forma de reconhecer sua contribuição para a formação da sociedade brasileira. E olhando para o futuro, ao incorporar os saberes e as críticas de autores como Krenak ao padrão de vida urbano-industrial, que elevou a exploração e a degradação do meio ambiente a patamares críticos, temos a oportunidade de amplificar as dúvidas sobre o modelo de organização social contemporâneo.

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