Música, dança e ancestralidade: estratégias da resistência negra

Livro “Desde que o samba é samba” mostra como ritmo carioca surgiu num espaço de segregação

 10/07/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 21/08/2018 as 17:03

Na obra Desde que o samba é samba, a ancestralidade revela-se como base da organização social, cultural e política de um povo que propõe uma maneira própria de viver na sociedade brasileira – Foto: via Artsy Bee / Pixabay / CC0 Public Domain

A história política e cultural negra no Ocidente é o ponto de partida para o estudo da obra Desde que o samba é samba, livro que trata da relação entre vida, arte e ancestralidade africana, e que “evidencia um trajeto de lutas e resistências permeado pela produção e uso da música em sua potência estética e política”, conta-nos Luciana Mongim, em artigo recém-publicado na revista Opiniães. As raízes negras do samba são vistas pelo olhar da ancestralidade, “entendida como princípio norteador da vida dos afrodescendentes e de produções discursivas identitárias do povo que sofre a diáspora e o preconceito racial”.

O livro conduz o leitor pelas ruas do Rio de Janeiro dos anos 20, mais precisamente pelo bairro do Estácio de Sá, com suas zonas de prostituição, terreiros de candomblé e casas de umbanda, relatando como a  presença dos morros e favelas foram relacionados à pobreza e à criminalidade, “fazendo da favela o lugar da violência, da malandragem, da pobreza e da propagação de doenças”, pois lá viviam os mais pobres, à margem da ordem social estabelecida. É justamente nesse espaço de segregação que a tradição do povo negro expressou-se pela criação de um  ritmo e de uma melodia inovadores: o samba carioca.

Malandros, operários, sambistas, prostitutas e mães de santo tinham consciência de sua função como agentes de resistência – Foto: via Paul br 75 / Pixabay / CC0 Public Domain

A trama da história se dá em torno de dois sambistas da época – Brancura e Ismael Silva, também personagens em um resgate histórico do Brasil e sua música. Para Mongim, o  narrador denuncia o preconceito racial, a repressão e a violência da polícia que perseguia as manifestações da cultura e da religião de tradição africana, contando como personagens  “malandros, operários, sambistas, prostitutas, mães de santo, roda de batucada, do terreiro do candomblé, da umbanda, do jongo”, os quais, ao contrário do que propaga o preconceito, são pessoas que “amam, trabalham, produzem, cantam, dançam e, sobretudo, resistem à condição de exclusão e segregação a qual foram submetidas e têm consciência de sua função como agentes de resistência”, afirma Mongim.

No livro, o papel da arte é enfatizada como bálsamo que ameniza a dor das mulheres obrigadas à prostituição, “recuperando o passado de escravidão e uma história que negou a cultura dos negros e a rotulou como atrasada, folclórica, primitiva, bárbara”. Segundo Mongim, a música e a dança são modos de expressão da resistência, preservação e disseminação cultural de um povo para quem vida e arte se misturam. A ancestralidade, na obra, revela-se como base da organização social, cultural e política de um povo que propõe uma maneira própria de viver na sociedade brasileira, superado seu caráter religioso, já que o candomblé, por exemplo, “sintetiza variadas expressões religiosas africanas e aspectos civilizatórios de matriz africana“, considerado um dos principais focos de resistência cultural e religiosa dos negros brasileiros.

No Rio de Janeiro da segregação, a tradição do povo negro expressou-se pela criação de um ritmo e de uma melodia inovadores – Foto: via Numbercfoto / Pixabay / CC0 Public Domain

Na obra de Paulo Lins, segundo Mongim, a presença africana é notada nas figuras dos orixás, as práticas religiosas nos terreiros e nas casas de umbanda, onde reinam as mães de santo e onde esses lugares são “espaços de conhecimento, de atuação política e cultural, marcando a participação do negro na história nacional”. Desde que o samba é samba fala da potência desse ritmo de música marcado pela presença do negro na literatura brasileira, expressão única da potência desse povo capaz de “virar a mesa” e  estimular uma nova sociedade – “o novo mundo achando o seu lugar”.

Luciana Marquesini Mongim – Doutoranda do curso de Pós-Graduação em Letras na área de concentração Estudos Literários da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). luciana.marquesini@gmail.com

MONGIM, Luciana Marquesini. Conhecimento e atuação política: a arte e a ancestralidade africana no livro Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. Opiniães, São Paulo, n. 10, p. 18-29, jun. 2017. ISSN: 2525-8133. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2525-8133.opiniaes.2017.122208. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/view/122208>. Acesso em: 20 jun. 2017.

Margareth Artur/ Portal de Revistas do Sibi


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