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Produzidos pelas grandes civilizações que aqui viviam antes da chegada dos colonizadores, os códices são manuscritos feitos em cascas de figueiras, fibras de cacto ou pele de animais, onde se encontram relatos históricos e ideológicos dos povos ameríndios. Para a embaixadora do México e titular da Cátedra José Bonifácio da USP, Beatriz Paredes, “os códices são um pedaço de nossa pele, da pele da América Latina”.
Por isso, a catedrática, em conjunto com o Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos (Cema) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, inaugurou no dia 23 de maio a exposição Códices Mexicanos: imagens, escritura e debate.
A mostra conta com reproduções dos códices pré-coloniais e coloniais produzidos pelos povos da Mesoamérica — astecas, maias e náuas — que viviam na região da América Central, abrangendo parte do território do México, Guatemala, Honduras e Nicarágua. A exposição estará em cartaz no Prédio da História e Geografia da FFLCH até o dia 30 de julho.
“Os códices, além de carregar nossa pele, carregam a nossa alma, e ensinam que a alma mesoamericana era uma alma que se comunicava com o cosmos. São as crônicas de nossas guerras, de nossas ascensões, de nossas memórias, de nossas derrotas, mas, sobretudo, são a consciência de que, desde então, o ser humano queria deixar gravada a sua memória”, reflete Beatriz.
Uma outra forma de pensar
Feitos pelas elites dirigentes das civilizações mesoamericanas, os códices eram usados para registrar acontecimentos importantes desses povos, fazer prognósticos sobre a sorte de cada ano, listar cidades e tributos conquistados e contar sua cosmologia.
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“Cada cidade ou vila da Mesoamérica tinha vários desses ‘livros’, mas, entre os códices pré-hispânicos, só sobraram 12”, informa Eduardo Natalino dos Santos, professor da FFLCH e um dos coordenadores do Cema. Com a chegada dos colonizadores europeus, a destruição de registros pré-coloniais foi uma violenta estratégia empregada para mudar a forma de pensar dos povos nativos que, então, eram catequizados.
“Os povos ameríndios têm um sistema de pensamento muito diferente do nosso”, diz o professor. “Estudar esses povos sem simplesmente projetar os nossos valores sobre eles é um grande exercício de alteridade. Porque geralmente nós pensamos que essas culturas são equivalentes às nossas, mas, na verdade, elas possuem diferenças muito radicais.”
Para esses povos, por exemplo, os deuses eram personificados em pessoas da elite dirigente e essas pessoas poderiam deixar de ser ou se tornarem deuses. “E isso muda muita coisa de lugar, porque torna essa fronteira entre homens e deuses muito mais permeável, muito mais transitável. A convivência com esses deuses era muito mais cotidiana, pois aquelas pessoas não representavam um deus impalpável, elas eram um deus”, explica. “Quando a gente começa a entender essas diferenças, isso ajuda a entender muitas outras coisas dessa sociedade.”
Outra característica que desafia os conceitos ocidentais é o sistema de escritura dessas civilizações. Nele, a iconografia podia ter valores tanto ideográficos — que representam uma ideia — quanto fonéticos — que representam como uma palavra deve ser pronunciada. Dependendo do povo que a utilizava, essas imagens poderiam ter usos mais ideográficos ou mais fonéticos, ou até mesmo misturavam um pouco dos dois.
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Para se referir a pessoas ou lugares, os ameríndios usavam formas genéricas, os topônimos, adornadas com símbolos que representassem suas particularidades ou a pronúncia de seus nomes. Assim, se uma montanha, o topônimo utilizado para se referir a uma cidade, era acompanhada por um sol e uma esteira, isso poderia significar que estas eram as características que a faziam ser reconhecida ou que seu nome era semelhante à pronúncia de “sol-esteira”.
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Esse tipo de escritura foi sendo modificado no período colonial, que, apesar de haver a destruição em massa de registros pré-coloniais, também foi um período de intensa produção de novos códices, os códices coloniais.
“É um período ambíguo”, classifica Natalino. “Os missionários cristãos se interessaram pelo saber ameríndio, mas não tinham um interesse pela sua preservação, tinham interesse pela manutenção do poder.” A produção de códices coloniais foi feita em interface com os colonizadores como forma de reforçar o domínio sobre os povos nativos.
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Nessa nova produção, as imagens começaram a ser acompanhadas de “traduções”, que sinalizavam aos colonizadores como os nomes eram escritos na língua nativa. Até mesmo o formato dos códices foi modificado. Antes da chegada dos europeus, eles tinham formato de biombo. A partir da colonização, começaram a ser feitos também em grandes telas, os lienzos, e alguns chegaram a ter formato de livro. Os traços dos desenhos mesoamericanos também começaram a ser mais europeizados.
As réplicas das coleções da Biblioteca da FFLCH, do Cema e da catedrática Beatriz Paredes que estão expostas na exposição reúnem as principais características de cada fase dessa parte da cultura ameríndia.
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A exposição Códices Mexicanos: imagens, escritura e debate estará em cartaz até o dia 30 de julho de 2017, no Prédio de História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A visitação pode ser feita de segunda a sexta-feira, das 10h às 21h. Visitas guiadas ocorrem às terças-feiras, às 18h. Escolas ou grupos podem agendar um horário através do e-mail: cema@usp.br