Ode a Brecht, Odebrecht*

José Carlos Marques é professor integrante do Ludens, do Departamento de História da FFLCH

 05/05/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 09/05/2017 as 16:01

 

José Carlos Marques – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Bertolt Brecht, importante dramaturgo e encenador alemão do século 20, marcou a cena cultural no Ocidente por meio de seus trabalhos artísticos e teóricos, que deixaram marcas profundas no teatro contemporâneo. Uma das principais proposições de Brecht é a de que o público de um espetáculo teatral deveria tirar da peça algum ensinamento, e não apenas identificar-se emocionalmente com ela; o ator, por sua vez, deveria ser capaz de sair do próprio personagem e refletir sobre sua interpretação.

O ator brechtiano manteria assim uma posição crítica – e política – a respeito de seu papel na sociedade. Sua relação com a plateia tentaria mostrar que ele, ator, não é o personagem da peça, mas apenas um agente da representação do personagem.

Para Brecht, os espectadores deveriam, acima de tudo, absorver a mensagem dos atores e não confundir a ficção com a realidade. Isto seria possível por meio de um afastamento emocional – e não físico – com o espetáculo, mantendo-se uma postura crítica diante da trama desenvolvida sobre o palco.

Tudo o que ocorre ali é uma mentira deliberada, e o público deveria resistir à “anestesia” que poderia advir da encenação, conservando-se “intelectualmente ativo” e capaz de assumir uma postura crítica diante daquilo que lhe é apresentado. Por último, ator brechtiano deveria saber que, em cena, ele não é nem Otelo, nem Hamlet, nem Lear – mas sim alguém que tenta interpretar esses personagens do melhor modo possível.

Estas breves reflexões me vieram à mente após a recente revelação das “delações premiadas” do clã Odebrecht, conglomerado brasileiro de empresas da área de construção civil e engenharia.

Às vésperas da Páscoa de 2017, o ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a abertura de inquérito contra dezenas de políticos brasileiros, dos quais se destacam ministros de Estado, governadores, senadores, deputados e ex-presidentes. Os inquéritos são o resultado dos depoimentos de diferentes diretores e ex-diretores da Odebrecht, além das delações de Marcelo Odebrecht (herdeiro do grupo) e seu pai, Emílio Alves Odebrecht.

Assim, como Brecht, a família Odebrecht também tem suas raízes na Alemanha. Não sei se há alguma relação hereditária entre os dois sobrenomes – para tanto, seria necessária uma pesquisa genealógica a que não me arrisco fazer no momento. Mas arrisco-me a dizer que, ao ouvir os depoimentos dos executivos da Odebrecht, estamos diante da mais pura encenação brechtiana, ou seja, numa grande Ode a Brecht.

Uma das principais proposições de Brecht é a de que o público de um espetáculo teatral deveria tirar da peça algum ensinamento, e não apenas identificar-se emocionalmente com ela; o ator, por sua vez, deveria ser capaz de sair do próprio personagem e refletir sobre sua interpretação.

A naturalidade com que o meio privado assume a prática da corrupção nos poderes da nossa república repete a postura crítica que Brecht defendia diante daquilo que é apresentado ao público. É como se esses executivos dissessem para nós, cidadãos: “Não somos corruptos, nós apenas representávamos um personagem corrupto porque isso era parte do jogo”.

Marcelo Odebrecht afirmou que “não há político brasileiro eleito nas últimas décadas que não tenha recebido caixa dois”. Ou seja, os políticos não são corrompidos, apenas representam o papel de quem se corrompe porque isso faz parte do espetáculo.

As respostas dos “denunciados” são outra aula de representação brechtiana: “minhas contas foram aprovadas pela justiça eleitoral”, “nunca recebi dinheiro de caixa dois” e “as declarações dos delatores são falsas, são peça de ficção”. Isto é, se houve corrupção, isso foi obra do personagem, não da pessoa física do político delatado. “Eu sou honesto, eu luto pela democracia, eu sou exemplo de hombridade – quem recebeu propina foi a minha ‘entidade’, que não sou eu”. A política brasileira mostra, assim, que tudo não passa de uma grande encenação, de um espetáculo fictício, de faz-de-conta.

O que tudo isto tem a ver com o futebol ou com o esporte brasileiro? Tudo – e mais um pouco. A prática encenatória da corrupção assumida pelos “atores” da Odebrecht não é apanágio apenas da Odebrecht, mas de inúmeras outras construtoras que atuam no País – as mesmas que estiveram envolvidas em todas as obras de infraestrutura e de construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. E a acusação de corrupção de que são alvo os políticos brasileiros atinge, em igual medida, os dirigentes esportivos, alguns deles já presos ou impedidos de sair do País, como o último ex-presidente da CBF (José Maria Marin) e o atual presidente (Marco Polo del Nero). Mas todos negam as denúncias, todos se dizem inocentes, ninguém assume o personagem corrupto – como se instruídos pelo método do teatro épico brechtiano.

Os relatos acerca da construção do estádio do Corinthians no bairro de Itaquera (SP) são o exemplo mais acabado de como se decidem as ações em nosso país: em encontros privados entre políticos e empresários, solicitam-se favores e definem-se as prioridades. Depois, unem-se os poderes federal, estadual e municipal para que esse estádio seja o palco de abertura da Copa, contrariando o próprio projeto do estádio, concebido para um público menor do que o necessário.

Marcelo Odebrecht afirmou que “não há político brasileiro eleito nas últimas décadas que não tenha recebido caixa dois”. Ou seja, os políticos não são corrompidos, apenas representam o papel de quem se corrompe porque isso faz parte do espetáculo.

O Itaquerão inovou a corrupção entre futebol, governos e iniciativa privada? Lógico que não. Basta ver como foram construídos o Maracanã (e todas as suas reformas), o Morumbi, as arenas durante a ditadura militar e por aí vai. Isso pra não falar da relação promíscua entre patrocinadores, empresas que gerem as transmissões esportivas, a forma como se dá a política nas entidades que gerem o esporte brasileiro etc.

Nesse jogo de espelhos em abismo, nessa encenação infinita, falta ao público assumir o papel do espectador brechtiano, fugindo à armadilha de identificar-se emocionalmente com o espetáculo. Mas o público parece não conseguir reagir ao processo de anestesia e letargia provocado pelos espetáculos.

Cansamos de denunciar as mazelas e falcatruas que antecederam a realização da Copa do Mundo de 2014 – mas bastou começar a competição para que o clima de festa e de confraternização invadisse o solo pátrio, na congregação com os “povos irmãos” que aqui vieram.

Um ano depois, a Fifa é assolada por denúncias graves de corrupção na venda de direitos televisivos e na escolha de sedes dos Mundiais de futebol, mas continuamos assistindo aos torneios de todo o mundo pela TV e comemorando as vitórias de Tite à frente da Seleção Brasileira (a Globo, por sua vez, até vinheta em russo criou a fim de celebrar a classificação para a Copa de 2018).

A anedota popular diz que os políticos denunciados em três inquéritos já poderiam “pedir música no Fantástico”, lembrando e mimetizando uma prática da TV Globo de unir suas transmissões futebolísticas com a própria programação. Pois há políticos que estão denunciados em seis, nove inquéritos. Para esses será possível solicitar logo uma ópera inteira, e não apenas uma música.

E assim continuamos a rir de nós mesmos, a rir das tragédias que assolam nossa realidade envolta numa ficção sem fim. Os depoimentos dos “atores” da Odebrecht ouvidos recentemente me dão a sensação de que vivemos numa bolha de representação: nada disto é real, tudo é um grande espetáculo de máscaras. Este texto também não é meu, quem o escreveu foi o Zeca Marques, eu sou o José Carlos Marques, e o Ludopédio não é o Ludopédio.

* Texto originalmente publicado no portal Ludopédio (http://www.ludopedio.com.br/).

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